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Do jornal Gazeta do Povo
04/04/2011 - O ano de 2011 começou com a promessa de se tornar um marco na luta pela defesa dos direitos humanos no país. A posse de Dilma Rousseff (PT) na Presidência da República - ex-guerrilheira e a primeira mulher no cargo - deu mais esperança a quem defende a abertura dos arquivos da ditadura militar e a instalação da Comissão da Verdade, como a advogada carioca Maria Margarida Pressburger. "Acho que o Brasil cresceu numa falsidade de heróis. Temos de saber quem foi quem. Acho que a Comissão da Verdade é um resgate da história brasileira, que tem de ser contada como realmente ocorreu", diz ela, que desde 2006 preside a Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio de Janeiro - cargo que já havia ocupado entre 1981 e 1992.
Outro fato que vai ocorrer neste ano e pode significar uma mudança no sistema carcerário brasileiro é a inspeção que será feita pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, do qual Maria Margarida faz parte desde o começo de 2011. A atuação e trajetória dela na área abriram caminho para que o Brasil fosse eleito para o órgão, formado por 25 pessoas de 57 países que assinaram a Convenção contra Tortura, de 1984, ratificada pelo Brasil em 1989.
Apenas três países receberão a visita do subcomitê neste ano: Brasil, Ucrânia e a República do Mali. Segundo Margarida, o Alto Comissariado da ONU recebeu denúncias de tortura nas prisões brasileiras. Para ela, essa vistoria pode ajudar o poder público a condenar prática de tortura nas prisões. "Se houver um documento da ONU mostrando as ocorrências, fica mais fácil identificar e punir", afirmou. Como representante do Brasil, ela não participará da vistoria do país, mas foi convocada para analisar a situação na Ucrânia.
Maria Margarida conhece as carceragens brasileiras há mais de 40 anos. O irmão dela foi preso pela ditadura, logo após a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968. A advogada diz que todos os brasileiros têm o direito de saber quem foram os torturadores do período. Ela conversou com a reportagem da Gazeta do Povo na semana passada, quando esteve em Curitiba para participar do 3.º Encontro Estadual da Mulher Advogada, promovido pela OAB do Paraná.
Leia abaixo a entrevista.
Sua trajetória na luta pelos direitos humanos começou com a ditadura militar. Como o tema evoluiu no Brasil desde então?
Em 2006, a OAB do Rio de Janeiro começou uma campanha pela abertura dos arquivos da ditadura e pela apresentação dos mortos e desaparecidos. Vamos recomeçar a campanha e sentimos agora um ambiente mais propício. Estamos muito esperançosos que, com a presidente Dilma Rousseff e a ministra Maria do Rosário [Secretaria dos Direitos Humanos], concretizemos a abertura. É o que as famílias merecem. Ainda que o STF tenha considerado a anistia como definitiva - embora a gente diga que tortura é crime inafiançável e imprescritível -, acho que cada um tem o direito de saber quem torturou seu familiar. Se vai poder acionar [judicialmente] ou não é outra história. Eu, pelo menos, gostaria de olhar a cara do torturador do meu irmão, de poder dizer para quem quer que seja o que ele fez. Porque torturador não é ser humano. Só quem tem prazer é que tortura. Os torturadores daquela época tinham prazer enorme nisso.
A sra. concorda que a Comissão de Verdade verifique também as ações cometidas pela guerrilha?
Há quem diga que os terroristas também precisam ser julgados. Mas eles foram prejulgados, foram torturados, foram mortos. Uma coisa é em um momento turbulento se defender ou praticar ações de guerrilha, outra é a tortura, a prisão gratuita. Quem assaltou banco e foi preso, podia ser julgado e cumprir pena. Mas não foi isso que ocorreu, eram imediatamente torturados, desapareciam. Alguns não resistiam à tortura, morriam. E seus corpos viravam comida de peixe.
A Comissão terá sucesso?
Há uma resistência dos militares da época, da sociedade retrógrada que compactuava com aquilo. Na época eleitoral questionavam: você vai votar em uma terrorista? Por isso acho que a abertura dos arquivos será difícil, mas vai sair. A comissão agora só depende de vontade política, independe do Congresso. Se a comissão vai ter sucesso ou não, vai depender da ajuda que receberemos da sociedade civil.
O que o Brasil tem a ganhar com a abertura dos arquivos?
É um resgate da história. Não podemos ter falsos heróis. Acho que o Brasil cresceu numa falsidade de heróis. Temos de saber quem foi quem. Eu ouvi muita coisa quando criança que agora sei que não é verdade. Então, pelo menos, de 1964 pra cá a história tem de ser contada. Acho que os filhos e netos dos desaparecidos, dos mortos e dos torturados têm o direito de saber quem fez isso aos seus parentes. A America Latina inteira já fez, só falta o Brasil.
Por que a análise da época ditatorial no Brasil é tão difícil?
A gente tem um ex-presidente eleito de forma indireta que ainda hoje manda no país, que é senador. Tem outro que foi cassado, que também é senador. Tenho certeza de que o senador José Sarney não é favorável à abertura dos arquivos, embora ele não tenha dito nada a respeito disso. Mas tenho esperanças que a gente supere isso. Que a gente possa dar às nossas crianças um livro de história com a história do Brasil.
E em outras questões de direitos humanos, como o país evoluiu?
É amplo o leque de coisas que precisam ser vistas. Mas temos uma bancada no Congresso totalmente retrógrada, formada por congressistas pseudoreligiosos. Não tenho nada contra as igrejas evangélicas sérias, mas há igrejas fundadas para ganhar dinheiro, e que pregam um falso moralismo. O Projeto de Lei n.º 122/06, que criminaliza a homofobia, está parado na Câmara. Sobre o aborto nem se fala. A classe média e alta não tem problema com isso, vai para o Uruguai, para os Estados Unidos, para uma clínica luxuosa. A mulher pobre vai para aquelas clínicas horrorosas, imundas. Mas essas questões não podem ser resolvidas com uma medida provisória da presidente, precisam passar pelo Congresso, e não passam.
E as carceragens brasileiras que serão inspecionadas pelo subcomitê da ONU?
Já ouvi de agentes penitenciários e de policiais que a tortura não vai acabar. Dizem que sem tortura ninguém é preso, ninguém confessa, ninguém é condenado. A ministra Maria do Rosário se mostrou satisfeita com a inspeção que será feita ao Brasil, pois será um elemento a mais que poderá usar. O Brasil é muito grande. Não dá para querer que um ministro tenha conhecimento de tudo o que ocorre em todos os municípios. Mas se tiver um documento da ONU, fica mais fácil identificar e de punir. O governo vai ser notificado da inspeção por carta. Mas as cadeias que serão visitadas não saberão. Porque nós, de direitos humanos, quando fazemos as vistorias, só falta encontrarmos preso de terno e gravata nos esperando e flor no vaso na mesa. Vimos horrores.
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