Fonte: Unisinos
Entrevista especial com Neusa Maria Romanzini Pires
Batizada com o nome de Condor para “homenagear” a ave típica dos Andes e símbolo da astúcia na caça às suas presas, a Operação Condor foi uma colaboração entre vários regimes militares da América do Sul.
Foi montada para coordenar a repressão aos esquerdistas, opositores ao regime. Sua função principal era destruir todos aqueles que eram considerados adversários políticos perigosos aos sistemas ditatoriais montados na América Latina.
O primeiro passo da Operação Condor foi executar a imediata unificação de esforços de todos os aparatos repressivos das ditaduras que haviam se instalado. E conseguiram. Foi o que a pesquisadora Neusa Maria Romanzini Pires concluiu em sua tese de doutorado intitulada “Memória da dor - A Operação Condor”.
Na entrevista a seguir, cedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line, Neusa fala do árduo trabalho que teve para fazer um resgate histórico da Operação e concluir que sua criação foi feita aqui no Brasil e só anos mais tarde foi controlada pelos Estados Unidos, através da CIA.
Ela também conta sua própria história, pois descobriu, através da pesquisa, que seu pai foi a primeira vítima da Operação. “Eu acho que 40 ou 400 trucidados não fazem diferença, porque o genocídio é genocídio, holocausto é holocausto. A dor, a desagregação que provoca numa comunidade é igual, não é algo que se meça de forma estatística ou qualitativamente, matematicamente. A dor é uma coisa que não se mede dessa forma”, relata Neusa.
Neusa Maria Romanzini Pires é graduada em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro. Em 1990, conclui sua graduação em Geografia pela Universidade Veiga de Almeida, do Rio de Janeiro. Tem especialização em História da América Latina, em Geografia Regional e em Linguística Aplicada e LIteratura Comparada, toda pela UFRN. Realizou mestrado em Ciências Sociais e em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi em seu doutorado que pesquisou “Memória da dor - A Operação Condor”, titulo obtido pela USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que você traz de experiência pessoal ao trabalhar a “Memória da dor - A Operação Condor”?
Neusa Maria Romanzini Pires – O trabalho não deixa de ser um resgate da minha própria vida, já que sou um personagem desta história, sendo filha de um desaparecido político. Mas o trabalho não tem um cunho memorialista.
A primeira vítima da Operação Condor no Brasil foi o grupo do qual meu pai participava. Por isso, este trabalho foi muito difícil para mim. Eu tive que ter um grande cuidado para manter a neutralidade cientifica e um distanciamento ideológico, pois tive de ouvir as vozes da direita também.
Eu fiz entrevistas com o Coronel Ustra (1), que é apontado como o assassino do meu pai, com o General Fiúza (2), entre outros. Foi uma experiência riquíssima, um mergulho que, de certa forma, inclusive, serviu para montar um quebra-cabeça sobre o seqüestro do meu pai (3).
Agora, fui muito além, porque quando eu comecei o trabalho, o título nem seria esse. Para começar, eu nem imaginava que meu pai tinha sido vítima da Operação Condor. Quando eu terminei o mestrado e decidi por essa pesquisa, já ao iniciá-la comecei a ter surpresas com as entrevistas que fiz no Paraguai, na Argentina e nos Estados Unidos. Então, vi os arquivos dos desaparecidos políticos e fui caminhando nesse sentido até que encontrei a hipótese da tese, que foi o que eu defendi na qualificação.
IHU On-Line – E qual foi a hipótese?
Neusa Maria Romanzini Pires – De que a Operação Condor era realmente uma idéia brasileira e que a lenda da boa ditadura brasileira é lenda mesmo. Na realidade, nós exportamos isso para os outros países, como Chile e Argentina.
O fato de termos tido aqui poucos mortos e desaparecidos não significa nada, porque, ao mesmo tempo, tivemos mais de 30 mil torturados.
Precisamos levar em consideração que isso só demonstra eficiência da repressão brasileira. Demonstra, por exemplo, uma eficiência cirúrgica com que eles eliminaram toda a oposição do governo, tanto a oposição armada quanto a oposição representada pelas idéias. Sabemos que, no Brasil, foi feito de tudo para derrubar a ditadura, do abaixo-assinado à luta armada. Eu encontrei tudo isso na tese.
Alguns outros estudiosos defendiam que a Operação Condor tinha começado em 1975. Depois da minha qualificação na USP, há uns três anos, eles reconheceram que ela teria começado antes, pois o ano em que eu comecei o recorte é 1973. Conseqüentemente, acho que foi uma contribuição muito além do que esperavam. Por isso, repito, não foi um trabalho memorialista, embora saibamos que se o historiador teve a oportunidade de participar dos fatos, tem a obrigação de resgatar sua própria memória também, desde que ele tenha experiência e capacidade de manter neutralidade. Nesse sentido, acho que eu consegui muita coisa. Do ponto de vista científico e acadêmico, eu acho que pude resolver um equívoco histórico e abrir para que outros pesquisadores possam continuar este trabalho.
IHU On-Line – Como foram os anos de chumbo para quem enfrentou perdas durante a Operação Condor?
Neusa Maria Romanzini Pires – Quando alguém seqüestra um ente querido de uma família e some com o corpo, desaparece simplesmente com a pessoa, cria um trauma tão grande que praticamente tudo se transforma numa busca. A pessoa não sabe se é órfã, as mulheres não sabem se são viúvas, os pais não sabem se seus filhos estão mortos. Então, a vida toda gira em torno disso.
Eu fiquei grávida do meu primeiro filho e nem percebi, porque eu estava em Brasília tentando criar uma CPI para investigar o desaparecimento do meu pai. A gravidez do segundo filho eu também não percebi, pois eu estava lutando pela anistia. Eu descobri, por ser militante também, que meu pai havia sido assassinado 15 dias depois do ocorrido, no entanto grande parte da minha vida foi dedicada a buscar a verdade sobre meu pai. Tivemos umas duas ou três testemunhas, além da testemunha que a ONU tem. A luta, depois disso, foi para saber em que circunstância isso aconteceu, porque parte da minha família, que não era militante, ficou com a vida paralisada.
Isso é tão traumatizante que muitos filhos, infelizmente, não tiveram nenhuma condição de ter uma vida normal. Agora eu tive sorte, porque morei no Chile, conversei muito com meu pai, morei no exílio com ele e sou militante desde os 13 anos.
Tive sorte porque eu me dediquei à pesquisa, aos estudos para procurar compreender e para continuar a luta dele. Isso porque eu sou, não é segredo para ninguém, comunista marxista. É claro que a perda foi horrível para mim, mas eu compreendo que ele morreu por uma causa na qual eu mesmo acredito.
Eu vi famílias se destruírem, pais e mães morrerem no desespero, além de ter assistido relatos terríveis. Eu acho que o que aconteceu (matar, ferir e depois não entregar o corpo para que a família possa enterrar da sua maneira, ou ver aquele morto para poder acreditar) é de uma covardia terrível. Até Jesus Cristo foi devolvido para seus familiares, não é mesmo?
Então, eu considero de uma brutalidade inadmissível e acho que não devia ser uma luta solitária desses familiares, nem de apenas pesquisadores e militantes: deveria ser uma luta de todos. Eu acho que 40 ou 400 trucidados não fazem diferença, porque o genocídio é genocídio, holocausto é holocausto. A dor, a desagregação que provoca numa comunidade é igual, não é algo que se meça de forma estatística ou qualitativamente, matematicamente. A dor é uma coisa que não se mede dessa forma.
IHU On-Line – Quais foram as memórias da dor com que você ficou desta época?
Neusa Maria Romanzini Pires – É uma coisa que não acaba não tem fim; é tão inexplicável. Eu estou tentando explicar para você e é tão difícil de compreender, porque enquanto outras pessoas estavam comemorando o milagre brasileiro (4), a Copa do Mundo (5), famílias sofriam, andavam desesperadas atrás de seus filhos, maridos, pais. É uma ferida que não cura.
IHU On-Line – E como sua família enfrentou isso?
Neusa Maria Romanzini Pires – Cada um tem uma forma de expressar. Eu acho que a melhor forma de enfrentar isso é ir de encontro a essa dor e vivê-la. Já que não nos deram a oportunidade do luto, eu aconselho a todo mundo que passou por isso a pesquisar, procurar, montar seu próprio quebra-cabeça, acompanhar tudo o que aconteceu até o último instante daquele familiar e sentir essa dor, porque ela faz parte da vida. No entanto, é uma dor que não tem perdão, não há nenhum acordo, indenização, nada que possa recuperar, por exemplo, aquelas mães que morreram sem saber o que aconteceu com seus filhos. É dilacerante.
IHU On-Line – Como você fez o resgate histórico durante sua pesquisa?
Neusa Maria Romanzini Pires – A pesquisa nunca teve um cunho memorialista, o que foi até bom pra mim, porque foi uma casualidade eu ter descoberto que meu pai era a vitima de estréia da Operação.
Eu faço um resgate da seguinte maneira: eu procurei ver qual foi o embrião da Operação. Foi assim que eu cheguei aos oficiais brasileiros e à conclusão de que foi o Brasil que exportou todo o conhecimento que, claro, já foi exportado da “Escola das Américas”, onde muitos oficiais brasileiros foram fazer seus cursos.
Muitos militares não são uns imbecis como muita gente pensa, isto é, eles estudam, saem da academia militar sabendo inglês, francês, alemão. Então, “esses caras” montaram uma operação e a CIA (7) só interferiu em 1975, pela necessidade de derrubar o Salvador Allende (8). Aí ela (quem?) organiza uma operação. Por isso eu consegui tantos dados das vítimas anteriores a 1975.
Quando ela é formalizada e institucionalizada, quando a CIA assume o controle, a Operação começa a ficar mais difícil de localizar os corpos, porque ela começou a ficar mais refinada. Isso tudo “em defesa” de uma reorganização capital da América Latina que, segundo os Estados Unidos, precisava ser feito naquele momento.
Atualmente, estamos passando pelo mesmo problema, enfrentando novamente a necessidade dos Estados Unidos, pois ele está em crise, precisa de uma reorganização está com problemas com os governos daqui. Ninguém sabe o que vai acontecer.
Eu sempre gosto de deixar claro que minha contribuição foi essa: mostrar que a Operação Condor foi iniciada anteriormente à reunião de 1975, não importa o nome que tenha adotado e que foi uma idéia brasileira. Uma idéia do nosso serviço secreto.
E que, em 1975, a CIA assumiu o controle até achar que o perigo tinha acabado e desapareceu na selva da América Central com a derrota do sandinismo (9).
Mas eu quero afirmar uma coisa que eu acho importante: aquilo que criou a Condor só pede um motivo para retornar. Aquilo que criou a Condor só pede uma razão para ser reativada. Porque a estrutura continua existindo...
Notas:
(1) Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra comandou o DOI-Codi de São Paulo de 1970 a 1974. No período que esteve à frente do órgão ligado aos militares foram relatados mais de 502 casos de tortura.
(2) A Repressão teve como Comandante principal o General Fiúza, chefe da 6ª Região Militar, com sede em Salvador/BA. Homem de confiança do Presidente Geisel, foi quem determinou ao Tenente Coronel Oscar, do Exército Brasileiro, a desrespeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção de Genebra e a espécie humana, na medida em que massacrou, alquebrou, humilhou e torturou físico, moral e psiquicamente, homens da envergadura de Wellington Mangueira, Faustino Alves Menezes, Delmo Naziazeno, Rosalvo Alexandre, Pedro Hilário, Bittencourt, Gervázio dos Santos (o Careca), João Santana Sobrinho, Asclepíades dos Santos, Seu Durval, Juca da Leste e tantos outros ilustres combatentes da causa da liberdade de expressão e do livre pensar.
(3) Desaparecido desde 1973, quando tinha 50 anos, Joaquim Pires Cerveira foi Major do Exército Brasileiro passou à reserva pelo Ato Institucional n. 1, de 1964. Conforme documentos encontrados nos arquivos do antigo DOPS/SP foi preso no dia 21 de outubro de 1965 e encaminhado à 5ª Região Militar e entregue ao Coronel Fragomini. Em 29 de maio de 1967, foi absolvido pelo Conselho Especial de Justiça da 5ª Auditoria, da denúncia do processo 324, por crime de subversão. Foi preso novamente, em 1970, com sua mulher e o filho, que foram torturados no DOI-CODI/RJ. Foi banido do país em junho de 1970. Foi preso em Buenos Aires em 11 de dezembro de 1973, juntamente com João Batista Rita, por policiais brasileiros, provavelmente comandados pelo delegado Sérgio Fleury. Ambos foram vistos por alguns presos políticos no DOI-CODI/RJ, quando chegavam trazidos por uma ambulância. Estavam amarrados juntos, em posição fetal, tendo os rostos inchados, esburacados e repletos de sangue na cabeça.
(4) É a denominação dada à época de excepcional crescimento econômico ocorrido durante a ditadura militar, especialmente entre 1969 e 1973, no governo Médici. Nesse período áureo do desenvolvimento brasileiro em que, paradoxalmente, houve aumento da concentração de renda e da pobreza, instaurou-se um pensamento ufanista de “Brasil potência”, que se evidencia com a conquista da terceira Copa do Mundo de Futebol em 1970 no México, e a criação do mote de significado dúbio: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
(5) Em 21 de junho de 1970 O Brasil vence a Copa do Mundo de futebol conquistando a posse definitiva da Taça Jules Rimet. O evento aconteceu no México.
(6) Central Intelligence Agency (em português Agência Central de Inteligência, sigla: CIA) é um serviço de inteligência dos Estados Unidos da América. CIA foi criada em 1947 nos Estados Unidos, pelo Presidente Harry S. Truman (1884 - 1972), para tal, foi editado um Acto Governamental de Segurança Nacional. A criação da CIA para os norte americanos foi uma necessidade estratégica devido ao início da Guerra Fria e o avanço do comunismo. A espionagem estrangeira, o roubo de projetos da área tecnológica, de armamentos, a fuga de informações, estavam causando prejuízos ao país, houve então, a necessidade de vigiar e relatar todos os assuntos referentes à segurança nacional ao Presidente, procurando a melhor forma possível interferir e neutralizar os efeitos negativos oriundos de ameaças externas .
(7) Salvador Allende foi um médico, político e estadista chileno. Foi o primeiro marxista eleito democraticamente presidente de um país da América Latina.
(8) Movimento político que teve por finalidade a derrubada da família Somoza do governo da Nicarágua.
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