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Em 28 de agosto de 1979, o presidente João Figueiredo sancionou a lei 6.683, instaurando no Brasil a anistia para os crimes políticos e eleitorais, além do perdão para cassados entre setembro de 1961 e aquele mês. Estava iniciada a abertura, velhos líderes tornaram ao País, assim como militantes de esquerda.
Nas últimas semanas, o ministro da Justiça Tarso Genro vem defendendo a tese de que a Lei da Anistia não poderia valer para os torturadores que serviram ao Estado.
A reportagem e a entrevista é de Pedro Doria e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 10-08-2008.
“Não pode mesmo”, diz a doutora Flávia Piovesan, professora da PUC-SP e da Universidade Pablo de Olavide, da Espanha. O Brasil é signatário de convenções internacionais que reconhecem tortura como crime contra a humanidade. Segundo a interpretação, nenhum Estado tem o poder de anistiá-la. “O Brasil está isolado até entre os vizinhos.”
Para a professora, todo país que atravessa uma ditadura precisa passar por um processo chamado Justiça de Transição. Ele lida com a divulgação de tudo o que ocorreu, o julgamento dos agentes de Estado acusados de abusos, reparações para as vítimas e reforma das instituições de segurança. O Brasil encarou a reparação. Só. O resultado é que, impune, a tortura aumentou nos porões das delegacias. Nos países que julgaram os agentes de Estado, ela diminuiu, afirma Piovesan na entrevista a seguir.
Eis a entrevista.
A Lei de Anistia, aprovada em 1979, atinge todos que “cometeram crimes políticos ou conexo com estes”. O ministro da Justiça Tarso Genro diz que ela não pode valer para aqueles que praticaram tortura enquanto serviam ao Estado. Qual a sua interpretação?
A chave dessa discussão é a expressão “crimes conexos”. Quer dizer: juridicamente, são crimes que se encadeiam em suas causas. Um crime acontece por causa de outro e assim por diante. O que o ministro está dizendo é que a tortura não é um crime político e, portanto, não haveria conexão. Eu o endosso.
Não é uma questão de qualquer lei brasileira. Há leis internacionais que tratam do assunto e que são muito claras: nada justifica a tortura. Nem guerra, nem grande comoção nacional, nem fato grave. Nada.
A tortura não é considerada um crime contra o indivíduo. É um crime contra toda a humanidade, como o genocídio e a esterilização de mulheres.
O requinte brasileiro de ela ter sido praticada pelo Estado só torna a situação mais grave. O Estado monopoliza o uso da força e da violência. Nós, os cidadãos, nos desarmamos, pagamos impostos e transferimos esse poder ao Estado. Se ele vira delinqüente e tortura aqueles que estão sob sua guarda, falha em uma de suas principais funções, que é a de promotor dos direitos.
A leitura de que o crime de tortura é conexo aos outros não é igualmente legítima? Por ela, também os torturadores foram anistiados.
A interpretação padrão, no Brasil, é de que a Anistia perdoou os dois lados em nome de uma reconciliação nacional. Mas, do ponto de vista do direito internacional, é inaplicável qualquer anistia. A tortura é um crime cuja gravidade impede sua prescrição. É dever do Estado investigar, processar e punir esse tipo de violação dos direitos humanos, sob o risco de a impunidade gerar uma violação continuada da ordem internacional.
O quanto essa sua posição é unânime internacionalmente?
Basta ver entre nossos vizinhos. Se passarmos um pente fino na América Latina, no Cone Sul, o Brasil é um país isolado. Argentina, Uruguai, Chile, Peru e outros tantos lidaram com o que chamamos de Justiça de transição. É um processo importantíssimo que promove a passagem entre o regime ditatorial e a democracia.
Ela serve à demanda da sociedade por verdade, reparação, Justiça e reformas institucionais. Dessas quatro dimensões, o Brasil só enfrentou a questão da reparação.
Não divulgou a verdade, já que mantém os arquivos daquele período trancados. Não fez Justiça.
E acomodou o aparato militar e policial sem enfrentá-lo.
Não fez as reformas institucionais que cabiam.
O Chile levou seu ditador à Justiça.
Em 2005, a Argentina considerou inválidas as leis de Ponto Final e de Obediência Devida, que impediam processar os generais.
Mas Chile e Argentina também fizeram uma acomodação.
Sim, houve acordo político. Mas na Argentina, por exemplo, a Suprema Corte seguiu um precedente internacional para anular a anistia. O Judiciário desfez a acomodação.
Como se deu esse processo?
A Corte invalidou a lei de anistia porque queria compatibilizar a lei doméstica com a lei internacional. O objetivo era se conformar com o caso Barrios Altos, uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que anulou a Lei de Anistia do Peru. (Em 1991, um grupo de militares matou 15 pessoas em Barrios Altos, Lima, durante o governo de Alberto Fujimori. Em 1995, o Congresso anistiou todos os envolvidos. O ex-presidente está sendo julgado por, entre outros motivos, não ter apurado o caso e punido os responsáveis.)
Para nós que lidamos com direitos humanos, essa decisão é um marco. A corte é parte da Organização dos Estados Americanos. Ela considerou que a anistia, no Peru, violava o direito à Justiça.
O Supremo Tribunal Federal não é a última instância no Brasil?
Não. O Brasil ratificou a convenção americana de direitos humanos em 1992 e reconheceu a jurisdição da Corte em 1998. Foi o país que demorou mais para fazê-lo. Desde o fim da Segunda Guerra os direitos humanos se globalizaram. Há o sistema internacional, os sistemas regionais e os nacionais. Esses sistemas falam entre si. As Justiças argentina e chilena se referem muito a decisões internacionais. Aqui isso não acontece muito. Na Europa, é muito comum a corte alemã, por exemplo, citar um precedente da corte européia.
E como se recorre a essa Corte Interamericana?
O Brasil, como signatário de tratados, tem a obrigação de alinhar suas leis com os parâmetros internacionais. Qualquer vítima de abusos que se sinta insatisfeita com os resultados judiciais no País pode recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Já existe um caso tramitando lá que questiona nossa anistia.
É o Caso Araguaia, contra o Estado brasileiro, que cobra a omissão e inoperância do governo por não ter investigado e punido os responsáveis pelos desaparecidos da guerrilha do Araguaia. Esse processo já corria na Justiça do Brasil mas, como estava demorando muito, a ong Centro pela Justiça e Direito Internacional levou à Comissão, que aceitou analisar o caso. No processo, a acusação diz que a Lei da Anistia institucionaliza a impunidade no Brasil.
Se a Comissão decide que a Lei da Anistia viola os direitos humanos, o que acontece?
De duas uma: ou o Brasil cumpre; ou, em caso contrário, a Comissão recorre à Corte, que é a segunda e última instância.
E se a Corte determinar que a Lei da Anistia não é válida?
Aí o Estado brasileiro terá que anular a lei. O risco que o Brasil está correndo é este: uma condenação internacional. Tortura não é um crime anistiável. O Brasil está divorciado dos parâmetros mínimos de respeito aos direitos humanos.
A questão não é só a Anistia. O governo brasileiro parece lidar com os direitos humanos conforme a conveniência. Ora extradita boxeadores cubanos, ora concede asilo a agentes das Farc.
O caso dos cubanos que pediram asilo e foram extraditados durante os Jogos Panamericanos é absurdo. Há incoerência do Brasil, uma seletividade lamentável. Falta protagonismo brasileiro em criticar o governo de Robert Mugabe no Zimbábue. Ou de condenar o governo do Sudão pela crise em Darfur. Em nome de uma solidariedade sul-sul ou de uma simpatia ideológica, ignoram-se os direitos humanos.
O general de reserva Gilberto Figueiredo, presidente do Clube Militar, diz que, no caso da ditadura, os crimes da esquerda estão registrados e os casos de tortura, não. Se a Lei da Anistia cai, o outro lado também não estará exposto?
Há o risco, mas vale a pena pagarmos esse preço. Não dá para igualar a tortura generalizada e sistemática que aconteceu e que ninguém põe em dúvida com os crimes dos grupos armados que resistiram à ditadura. Eles não eram o Estado. Quem desenhou e implementou este plano foi o Estado. Os agentes que atuaram em nome do Estado devem ser responsabilizados.
Quanto à questão das provas, existem inúmeros testemunhos que citam nomes bem específicos. Há duas semanas, um grupo de procuradores entrou com um processo contra Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, que comandaram o DOI-CODI de São Paulo entre 1970 e 1976. Eles argumentam, com base em testemunhos, que os dois são responsáveis por prisões ilegais, torturas, homicídios, desaparecimentos e ocultações de cadáveres.
Assim, devem ressarcir a União dos gastos com indenizações. Devem devolver o dinheiro. Para que exista Justiça, não basta julgarmos. Precisamos ter acesso aos arquivos do regime. Peter Kornbluh, chefe do Projeto de Documentação Chilena na Universidade de Washington, nos EUA, tem em mãos documentos que mostram que o Brasil era líder na Operação Condor, que interligava os aparatos de repressão no Cone Sul. Acesso a esses documentos é importante para o Brasil, para o julgamento dos crimes e para os países vizinhos.
Outra crítica é que, se a Justiça for atrás dos torturadores, vai pegar o sargento no porão mas não tocará no general. A senhora concorda?
É temerário partir do princípio de que houve desvio de conduta por parte de alguns indivíduos. Por omissão ou ação, o regime avalizava as práticas. Havia anuência implícita ou explícita da hierarquia militar.
No Brasil de hoje, ex-senadores são presos, ex-juízes, banqueiros. Mas o Executivo demonstra receio até de abrir a discussão sobre a revisão da Lei da Anistia. Por quê?
Porque há uma política clara de evitar tensões. Parte da essência de uma democracia é que as Forças Militares devem estar sob crivo civil.
O que mudou, agora, é que há tensão explícita no interior do governo. O ministro Tarso Genro e o secretário de direitos humanos, Paulo Vanucchi, falam claramente que são favoráveis a uma releitura da Lei de Anistia, enquanto o ministro da Defesa, Nelson Jobim, se põe contra.
Mas o presidente não quer mexer, como todos seus antecessores. É importante lembrar que vivemos um momento histórico. Pela primeira vez, ditadores estão sendo levados a julgamento. A impunidade é inaceitável no mundo.
E há outro ponto a destacar.
A Justiça italiana determinou a prisão de 146 sul-americanos, incluindo 13 brasileiros, por participarem da Operação Condor.
Não é hora de olhar para o futuro?
Para construir o futuro precisamos ajustar contas com o passado. Dizem que assim vamos gerar tensão social, injustiça, instabilidade política, debilitar a democracia.
Tive um aluno, delegado, cuja tese de doutorado teve por tema a tentativa de explicar por que a tortura persiste sendo o método tradicional de obtenção de informações numa delegacia. É um delegado afirmando isso, partindo dessa premissa. É assim que se investiga no Brasil. Por que isso acontece? Porque houve um continuísmo autoritário na ordem democrática. Nós não conseguimos romper com o passado.
A professora Kathryn Sikkik, da Universidade de Minnesota, fez um levantamento dos países que passaram por ditaduras e fizeram o processo completo de Justiça de transição. Na América Latina, pega Argentina, Chile, Guatemala, Paraguai, todos.
Os que levaram seus torturadores à Justiça viram diminuir drasticamente a tortura nos porões.
No Brasil, isolado, aumentou. Alguns daqueles que serviram aos porões da ditadura estão ainda na ativa. Outros são nome de rua, de praça, ocupam cargos públicos. É preciso passar a mensagem para a população de que não toleramos a tortura. A tortura, sim, deve ficar no passado. Seria pedagógico para as novas gerações que entram nas Forças Armadas e na polícia perceber que os que se desviaram no passado foram punidos.
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