quinta-feira, 21 de abril de 2011

DO CONTEXTO AO TEXTO: A DITADURA MILITAR E A OBRA “COLONIZAÇÃO E CATEQUESE”



Amarilio Ferreira Jr.*

íntegra em PDF - do site História, Sociedade e Educação no Brasil

O declínio da ditadura militar e a ascensão da teologia da libertação

A partir de 1978 o crepúsculo da ditadura militar já estava anunciado. Iniciava-se o período denominado, por muitos cientistas políticos, de “transição democrática”.

Foram três os acontecimentos que marcaram o princípio do fim do regime político instalado após o golpe de Estado de 1964:
(a) a crise econômica que se arrastava desde 1974 com a denominada “crise do petróleo”;
(b) a vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), agremiação política de oposição aos governos militares, nas eleições parlamentares de 1978; e
(c) a eclosão dos movimentos sociais, notadamente o movimento sindical dos trabalhadores do ABC paulista e o movimento estudantil.

O primeiro fato foi gerado com base nas contradições impostas pela própria lógica do modelo econômico adotado pelo regime militar. Tratava-se de uma política macroeconômica que combinava os seguintes elementos:
- fim da estabilidade no emprego;
- política de arrocho salarial;
- indexação dos preços à espiral inflacionária por meio da correção monetária;
- concentração e centralização da produção industrial e agrária;
- importação em larga escala dos capitais industrial e financeiro;
- e substituição de importações mediante o desenvolvimento científico e tecnológico.

Já os dois últimos eram atores sociais, com uma nova configuração orgânica, que emergiram no cenário nacional refletido as conseqüências decorrentes do processo de transformação que catapultou a sociedade brasileira de agrária para urbana-industrial(3).

A modernização acelerada das relações capitalistas de produção produziu, após o chamado “milagre econômico” (1968-1974), uma estrutura de classes sociais configurada com base na representação clássica das sociedades industriais, ou seja: burgueses; proletários (urbanos e agrários); classes médias; e um vasto contigente de excluídos, habitando preferencialmente as periferias das cidades.

Essa conformação societária colocou em evidência, de forma ampliada, as contradições decorrentes do antagonismo existente entre capital e trabalho. A capacidade de mobilização demonstrada pelo movimento sindical dos trabalhadores nos grandes centros industriais colocou em xeque o próprio modelo econômico que os havia originado.

O ciclo de greves do ABC paulista, entre 1978 e 1980, causou um grande impacto na economia implantada pelo regime militar, afetou a capacidade de consumo do mercado interno e reduziu o volume das exportações. Desta forma, o movimento operário irrompia no cenário social expondo as fragilidades do dois vetores complementares que sustentavam o modelo econômico vigente: a concentração da renda nacional e a primazia das exportações da riqueza produzida, visando a capitação de dólares, em função da constrição do mercado interno.

Portanto, a paralisia da produção em decorrência das greves operárias estrangulava o principal mecanismo econômico de transferência da riqueza nacional para os grandes centros do sistema capitalista mundial, pela via do pagamento dos juros e serviços da dívida externa, e desestabilizava politicamente, por decorrência, o regime militar (4).

Na esteira do movimento sindical dos trabalhadores, várias categorias sociais constitutivas das classes médias também se mobilizaram para reivindicar os seus interesses econômicos e sociais; um exemplo significativo foram os estudantes universitários. A expansão quantitativa do ensino superior, tanto privado quanto público, patrocinada pelas reformas educacionais do regime militar deu densidade numérica para essa categoria social oriundas das camadas médias urbanas. No final da década de 1970, após a repressão policial-militar contra a luta armada, o movimento estudantil já havia recuperado a sua capacidade de reconstruir as suas entidades representativas. Em 1979, os estudantes reorganizaram a UNE e fortaleceram, ainda mais, a frente oposicionista que propugnava a volta do Estado de direito democrático.

A oposição ao regime militar era constituída por um conjunto de tendências ideológicas que ia dos liberais conservadores à esquerda remanescente da luta armada.

Essa frente política, até 1979, organizava-se no entorno do MDB, única agremiação oposicionista consentida pela reforma política implementada durante o governo do general-presidente Humberto Castelo Branco (1965).

Além do MDB, que tinha como principal plataforma política o fim do próprio regime militar, o Ato Institucional n.º 2 (AI-2) criou também a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que se constituiu na agremiação de sustentação parlamentar dos governos militares.

A bipolaridade entre a ARENA e o MDB, a partir das eleições de 1974, culminou numa série de derrotas eleitorais da primeira. Para superar os sucessivos reveses nas urnas, notadamente nas eleições para o Congresso Nacional, o regime militar adotou a política da “abertura lenta e gradual” como estratégia para dividir a frente democrática e, ao mesmo tempo, prolongar a existência do Estado autoritário inaugurado como o golpe de 1964.

A luta pelas liberdades democráticas teve na campanha pela anistia “ampla, geral e irrestrita”, em 1979, um momento de aglutinação não só daquelas tendências que se articulavam no interior do MDB, mas também das instituições da sociedade civil que havia mantido a sua independência política frente ao Estado após a decretação do AI-5, de dezembro de 1968.

Assim, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Associação Brasileira de Imprensa (ABI) passaram a desempenhar, juntamente com o MDB e os movimentos sociais, um papel fundamental na luta pelo restabelecimento do Estado de direito.

A CNBB, influenciada pelas teses teológicas que emanaram do Concílio Vaticano II (1962-1965), tinha assumido lentamente uma nova postura frente às questões religiosas e seculares. Pois, o Concílio representou um ponto de inflexão na concepção de mundo defendido pela Igreja desde o século XVI. Influenciados por essa outra maneira de pensar e atuar, os católicos brasileiros adotaram um diálogo ecumênico que propugnava a aceitação da existência de outras Igrejas – cristãs ou não – e passaram a interagir com os fenômenos culturais gerados pela modernização autoritária do capitalismo que emergiu do modelo econômico da ditadura militar.

Em síntese: a alta hierarquia da Igreja brasileira, ao contrário do que havia defendido no período pré-64, reconciliou-se, na medida do possível, com as esferas do trabalho, da ciência, da técnica, das liberdades e da tolerância religiosa. Foi nesse contexto que emergiu entre os católicos a tendência religiosa denominada de teologia da libertação (5).

Os cristãos adeptos da teologia da libertação contribuíram com a guinada à esquerda que a Igreja Católica brasileira assumiu após o golpe de Estado de 1964. Assim, lentamente a Igreja foi se deslocando da esfera de influência ideológica das forças que davam sustentação ao regime militar e, ao mesmo tempo, colocando-se em oposição a natureza ditatorial do regime político que ajudara implantar.

As denúncias feitas por alguns membros do episcopado contra os assassinatos de presos políticos nas masmorras dos aparelhos de repressão aceleraram a crescente animosidade que foi se criando entre a CNBB e os militares.

No início de 1970, foi a própria Assembléia Geral da CNBB, reunida em Brasília (1970), quem condenou a tortura praticada nos porões da ditadura militar. O libelo acusatório trazia o seguinte excerto: “é bem viva na consciência da nossa população e muito difundida na opinião pública internacional, a convicção de que é relevante a incidência dos casos de tortura no Brasil” (6).

Essa posição assumida pela alta hierarquia da Igreja Católica tinha uma relação direta com a morte, sob tortura, de Alexandre Vannucchi Leme, militante da organização armada Aliança Libertadora Nacional (ALN) (7).

A partir de 1968, após a 2ª Conferência do Episcopado Latino-Americano, realizado em Medellín (Colômbia), a esquerda católica não somente se colocou em oposição frontal ao regime militar como também assumiu uma opção preferencial pelos pobres e contra a pobreza gerada pelo modelo econômico que modernizava o capitalismo e, a um só tempo, excluía milhões de brasileiros da riqueza produzida.

Os cristãos partidários da teologia da libertação abriram um diálogo com os marxistas e incorporaram os pressupostos teóricos do materialismo histórico como instrumento de análise da realidade engendrada pela sociedade capitalista periférica.

Assim, os católicos de esquerda celebraram um novo casamento entre fé e razão: de um lado, os dogmas teológicos do cristianismo; do outro, a concepção materialista da história.

Um dos grandes intelectuais da hierarquia eclesiástica católica no Brasil, D. Helder Câmara, sustentava que até mesmo a crítica que Marx endereçava à religião deveria ser objeto de reflexão por parte dos crentes num ente metafísico, argumentando: “O que Marx sustenta a propósito de Religião, como força alienada e alienante, deveria valer como alerta permanente para os fiéis de todas as religiões e, evidentemente, para nós cristãos”  (8).

Depois afirmava, de forma mais peremptória, a importância das teses do materialismo histórico para a práxis dos cristãos comprometidos com os excluídos e marginalizados pela sociedade capitalista:
“Entre outros numerosos pontos do sistema de Marx que os elaboradores das novas Sumas haverão, certamente, de incorporar, como verdades cristãs que se ignoram, impossível esquecer um aspecto essencial do marxismo: a análise das relações de produção, que geram as classes, as tensões, a exploração, a revolta, a luta de classe, as ideologias, as superestruturas. Aliás, quando Marx levanta a utopia de uma sociedade sem classes, confraternizada e feliz, os cristãos não devem espantar-se, pois o profeta Isaías vai ainda mais longe do que ele, antevendo as armas se transformando em arados, e o leão e o cordeiro comendo juntos, como irmãos...” (9).

Os irmãos Leonardo Boff e Clodovis Boff foram, no Brasil, “discípulos” de D. Helder e grandes teóricos da teologia da libertação. Na saga do “mestre”, afirmavam:
“No fundamento da teologia da libertação se encontra uma mística: o encontro com o Senhor no pobre que hoje é toda uma classe de marginalizados e explorados de nossa sociedade caracterizada por um capitalismo dependente, associado e excludente. Uma teologia – qualquer que seja – que não possua em sua base uma experiência espiritual é sem fôlego e tagarelice religiosa. Parte-se da realidade miserável como a descreveram os bispos em Puebla, ‘como o mais devastador e humilhante flagelo que é a situação de desumana pobreza em que vivem milhões de latino-americanos, vítimas de salários de fome, de desemprego e subemprego, da desnutrição, da mortalidade infantil, da falta de moradia adequada, dos problemas de saúde e de instabilidade no trabalho’. Quem não se apercebe desta realidade escandalosa não pode entender o discurso da teologia da libertação” (10).

Foram os católicos de esquerda, 
defensores das teses marxistas 
sobre a história da sociedade dos homens, 
que se engajaram nas causas sociais 
geradas pelas contradições do capitalismo. 

A militância política em defesa dos pobres e excluídos da sociedade brasileira, que se modernizava de forma célere, levou uma parte substantiva do clero católico a se empenhar na construção de organizações como:
as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que contavam “por volta de 70.000 abrangendo cerca de 4 milhões de cristãos”11;
o Partido dos Trabalhadores (PT), após a reforma partidária de 1979;
a Central Única dos Trabalhadores (CUT), no início da década de 1980; e
a Pastoral da Terra, que mais tarde deu origem ao Movimento dos Sem Terra (MST)12.

Essas organizações, representantes do amplo espectro social dos excluídos, possibilitaram a materialização do amálgama ideológico entre católicos partidários da teologia da libertação; sindicalistas do ABC paulista, que emergiram no cenário nacional durante as greves metalúrgicas do final dos anos 1970; e os militantes das organizações de esquerda que haviam optado pela luta armada (1968-1974).

Desse modo, estava constituída a tendência política que se oporia ao processo de negociação pelo alto, conduzida pelos liberais, que colocou fim ao regime militar (1985).


 Notas:
 
 3- Para uma compreensão mais detalhada do período em tela, digno de nota, entre outros, são: ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984, (1985); GASPARI, Elio. A ditadura derrotada, (2003); GASPARI, Elio. A ditadura encurralada, (2004); e SILVA, HÉLIO. O poder militar, (1987).

4- se compreender de forma mais ampliada a lógica do modelo econômico adotado pelo regime militar consultar: FURTADO, Celso. Análise do “modelo” brasileiro, (1972); e TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro, (1974).

 5- A respeito da adesão de frações do clero católico brasileiro às teses marxistas, particularmente do materialismo histórico, conferir: CUNHA, Luiz Antônio. A universidade crítica, p. 67-71.

6- CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL apud LIBÂNIO, J. B., S.J. Conflito Igreja-Estado, p. 37.

7- Sobre o papel político que a Igreja Católica brasileira desempenhou durante a ditadura militar, consultar: MORAIS. J. F. Regis de. Os bispos e a política no Brasil, (1982); e SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra, (2001).

8- CÂMARA, D. Helder. O que faria S. Tomás de Aquino diante de Karl Marx?. p. 41

9- CÂMARA, D. Helder. O que faria S. Tomás de Aquino diante de Karl Marx?. p.41

10- BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Da libertação, p. 11-12.

11- BOFF, Leonardo. Igreja, p. 197.

12- Sobre o significado da participação da Igreja Católica na estruturação dessas organizações, merecedoras de consulta são as seguintes matérias e editoriais do jornal O Estado de S. Paulo: Forma de ação das CEBs deve ser alterada, (19 abr. 1997. Caderno A, p. 17); As CEBs vistas de dentro, (15 jul. 1997. Caderno A, p. 3); CEBs criticam abandono dos pobres pelo governo, (20 jul. 1997. Caderno A, p. 26); CEBs, nova roupagem no modelo antigo, (23 jul. 1997. Caderno A, p. 3); e O sucessor de d. Paulo Evaristo, (17 abr. 1998. Caderno A, p. 3).




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