quarta-feira, 20 de abril de 2011

A anistia não pode significar esquecimento

7/8/2008

unisinos

Entrevista especial com Augustino Veit

Dois integrantes do governo Lula manifestaram-se recentemente a favor da punição daqueles que torturaram, mataram e desapareceram com pessoas durante a Ditadura Militar no Brasil: Tarso Genro e Paulo Vannuchi.

Isso levantou um novo debate acerca dos documentos da ditadura, até hoje fechados, e gerou um clima de indignação entre as Forças Armadas. “As Forças Armadas estão acostumadas a não se integrar nos passos democráticos que o país está dando. Até agora, elas querem trilhar caminhos paralelos ao Estado Civil brasileiro, o que é inconcebível. Nós temos de derrubar esse tabu, pois ou elas se integram efetivamente nos passos da democracia, ou vamos sempre conviver com esse tabu”, afirmou o advogado Augustino Veit, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

Veit falou sobre as lutas daqueles que militam pelos direitos humanos no Brasil e analisou o debate acerca da abertura dos arquivos políticos da época da ditadura. “Não podemos conceber que as novas gerações não possam tomar efetivamente conhecimento sobre a verdade que operou durante 20 anos em nosso país”, disse ele.

Augustino Veit é advogado do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) e ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça.

Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a questão levantada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, sobre o julgamento dos torturadores da Ditadura Militar?
Augustino Veit – Nós, que trabalhamos e militamos na área de direitos humanos, nunca nos conformamos com o entendimento conceitual e o espírito que o Estado brasileiro quis imprimir na Lei da Anistia. 

Para nós, a anistia não pode significar esquecimento de um período tão importante e cruel para tantos cidadãos brasileiros, vivido, afinal, durante 20 anos. 

Isso é uma reivindicação dos movimentos dos direitos humanos e de todas as pessoas que foram atingidas para que o Estado brasileiro, numa decisão política, venha um dia a reconhecer que a Lei de Anistia não pode abranger aqueles atos e atrocidades cometidos por agentes de Estado contra brasileiros. 

Os atos a que me refiro são a tortura, o desaparecimento e a morte, que foram perpetradas por agentes do Estado brasileiro em decorrência de uma decisão política do governo militar na época da ditadura.

Então, não se trata de punir através de iniciativas isoladas do Ministério Público ou de outras iniciativas que servem apenas para processar e punir de forma isolada. 

A decisão e a audiência pública promovida pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria Especial de Direitos Humanos revelam que o Estado brasileiro passou a adotar uma posição no sentido de punir aqueles que torturaram, fizeram desaparecer e mataram pessoas durante o Regime Militar. Isso tem uma importância histórica, e eu entendo que a audiência realizada por Tarso Genro [1] e por Paulo Vannuchi [2] tem um sentido histórico, porque o Estado brasileiro passa a reconhecer e assumir responsabilidade perante aqueles atos de atrocidades cometidos por agentes em nome do Estado brasileiro no passado.


IHU On-Line – A Justiça brasileira está longe seguir os exemplos dos tribunais da Argentina, Chile e Uruguai, que já abriram seus arquivos da época da ditadura?
Augustino Veit Nós estamos atrasados, mas não longe de tomarmos a mesma atitude. Dependerá agora da pressão que for feita sobre o governo brasileiro para que ele siga os exemplos dos países vizinhos que já procederam a abertura dos arquivos da ditadura e revogaram as leis que queriam encobrir os atos cometidos durante o período, criando uma nova legislação, que passou a punir e responsabilizar aqueles que mataram, torturaram e desapareceram com seus cidadãos. 

Isso dependerá, é claro, da vontade política do Brasil e é preciso, agora, criar as condições políticas. É bom que a sociedade saiba que o governo Lula, quando negociou a transição entre governos, concordou em não mexer nos arquivos da ditadura e na Lei da Anistia. 

E aqueles que não querem falar em punição certamente participaram dessa negociação com os militares, o que é lamentável. A anistia não pode significar esquecimento. 

Se nós não reconhecermos que o Estado brasileiro efetivamente praticou essas atrocidades, corremos o risco de retornar ao estado ditatorial. Precisamos tomar essas atitudes como fortalecimento e consagração da nossa ainda jovem democracia. 

É necessário avançar e discutir para acharmos a melhor forma para alcançar isto. Esquecer é um péssimo caminho e não o aceitaremos. A sociedade precisa se manifestar em favor da posição de Tarso Genro e Paulo Vannuchi, ou seja, contra os setores de direita e conservadores, que não querem abrir os arquivos e punir os torturadores e assassinos da ditadura.
 


IHU On-Line – Há diferenças entre a ditadura brasileira e a desses países vizinhos que justifiquem o fato de o Brasil ainda não ter aberto os arquivos políticos da época da ditadura?
Augustino Veit – Não há diferenças. A possibilidade de punição foi trazida a partir da Legislação Internacional. As convenções internacionais dão amparo aos países que reconhecem esses crimes. A legislação criada e revogada nos países vizinhos tem essa sustentação. Nós todos somos signatários dessa legislação e precisamos seguir os mesmos passos desses outros países.


IHU On-Line – Como o senhor analisa a Lei da Anistia no Brasil?
Augustino Veit – As pressões políticas que um pequeno grupo exerce sobre o Brasil fizeram com que até agora prevalecesse uma concepção de esquecimento. A Lei da Anistia não pode significar apenas isso. 

O argumento utilizado pelos militares e outros setores da direita é que sejam punidos tanto os militares que participaram dessas atrocidades quanto aqueles que militaram e lutaram por liberdade. Mas há diferenças brutais entre essas pessoas. 

Aqueles que lutaram eram cidadãos que defendiam liberdade, igualdade e eram contra a ditadura. Os militares, por sua vez, praticaram atrocidades da tortura, da morte, do desaparecimento em nome do Estado. Aí está a diferença. 

A Lei da Anistia não pode valer para os dois lados. É preciso deixar claro, nesse contexto, que a Lei da Anistia abrange aqueles que em nome do Estado torturaram, assassinaram e desapareceram com pessoas. 

Ora, esses crimes são inafiançáveis e imprescritíveis. Nós continuamos apoiando essa idéia e precisamos trabalhar para que esse apoio seja também tomado por parte de todo o governo.


IHU On-Line – Por que os arquivos políticos da época da ditadura são um tabu para os governos que vieram com a democracia?
Augustino Veit – Porque nunca se discutiu o papel das Forças Armadas no Brasil. Conseguimos avançar apenas quando se criou o Ministério da Defesa. 

As Forças Armadas estão acostumadas a não se integrar nos passos democráticos que o país está dando. Até agora, elas querem trilhar caminhos paralelos ao Estado Civil brasileiro, o que é inconcebível. Devemos derrubar esse tabu, pois ou elas se integram efetivamente nos passos da democracia, ou vamos sempre conviver com esse tabu. Eles não podem operar paralelamente, pretendendo posições não democráticas. Daí ser preciso derrubar esse tabu, o que demanda rever diversas funções que são do Estado brasileiro. Em suma, as Forças Armadas precisam estar em sintonia com o avanço democrático do país.


IHU On-Line – Em relação à abertura dos arquivos da ditadura, como é que funciona o trabalho de resgate histórico de uma época tão sofrida e da qual é tão difícil de se recolher informações?
Augustino Veit – Antes ainda da negociação que Lula fez durante a transição para o seu governo, Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto modificando a legislação que até então vigia sobre os períodos e prazos para a desclassificação dos documentos relativos à Ditadura Militar. 

Logo depois, por medida provisória, já no governo Lula, em 2005, veio uma nova legislação, que atribuiu o poder de classificar ou desclassificar a documentação a três ministros de Estado. 

Ou seja, uma legislação que permite que três ministros de qualquer governo possam perpetuar a classificação de documentação referentes à Ditadura Militar, o que é um absurdo! Nós deveríamos ter seguido a legislação para que, de tempos em tempos, dentro dos prazos que a legislação coloca, gradualmente se pudesse abrir os arquivos da Ditadura Militar. Essa é uma reivindicação antiga e esperamos que o governo tenha a sensibilidade, até o fim do seu mandato, de revogar esse decreto.



IHU On-Line – Como o Brasil pode se beneficiar abrindo esses arquivos da Ditadura Militar?
Augustino Veit – Eu sempre disse que conhecer a história é importante para um povo. Um povo sem história não é um povo completo. A formação de um povo se faz com história, com valores, com cultura. A partir disso, como podemos abortar um período simplesmente? 

Não podemos conceber que as novas gerações não possam tomar efetivamente conhecimento sobre a verdade que operou durante 20 anos em nosso país. Do ponto de vista histórico e cultural, essa é uma posição inaceitável, afinal um povo precisa, como eu disse, da sua história. 

Na Europa, até hoje se trabalha para que o povo europeu saiba o que aconteceu durante o Holocausto, por exemplo. Isso faz parte da concepção humana. O benefício para o povo brasileiro reside exatamente em conhecer profundamente a sua história, que não pode ser encoberta com essa postura antidemocrática.


IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz em relação à promoção dos direitos humanos no país?
Augustino Veit – Hoje, a concepção de diretos humanos é mais ampla da concepção que se tinha há 30, 40 anos. Nós entendemos que falar em direitos humanos é falar também em direitos sociais, culturais, econômicos etc. Então, em muitos aspectos nós avançamos: por exemplo, quando falamos em direitos dos deficientes físicos, de crianças e adolescentes, nós, do ponto de vista forma e jurídico, conseguimos avançar. 

Temos, afinal, o estatuto do idoso, da criança e do adolescente, do deficiente físico, do consumidor. No entanto, me preocupa muito que não se fale muito em afirmar valores. Ainda temos problemas no que se refere sobretudo à violência. Existe muito desrespeito, falta convivência mais harmônica. Nesse sentido, não podemos atribuir o êxito apenas pelo avanço em uma área. 

Um povo se constitui com valores humanos, culturais, de respeito. Não basta satisfação material. De qualquer modo, a opinião pública só apóia governos com avanços na área econômica. Precisamos nos afirmar como um povo de valor, de princípios, que cuida da natureza. No entanto, nem a sociedade nem o governo primam muito por isso. Então, os direitos humanos estão longe ainda de chegarem a uma plenitude em diversas áreas.


Notas:
[1] Tarso Fernando Herz Genro é advogado e político brasileiro, militante do PT, prefeito de Porto Alegre por duas vezes e, no governo Luiz Inácio Lula da Silva, ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça, pasta que ocupa atualmente.
[2] Paulo Vannuchi é ministro da Secretaria dos Direitos Humanos do governo Lula.

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