23/11/2006
unisinos
A Lei da Anistia 'não tem de ser revisada, mas rediscutida', pois a interpretação que se dá ao conceito de 'crimes conexos', que põe num mesmo plano atos praticados pelos dois lados durante o regime militar, foi um acordo político daquele momento - agosto de 1979. Não só não faz sentido como não tem base jurídica.
Essa interpretação, que reacende uma delicada questão negociada há 27 anos, foi defendida ontem pelo advogado Hélio Bicudo e, em termos praticamente iguais, por Celília Coimbra, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, do Rio, e por uma ex-presa política que participou da guerrilha do Araguaia, Criméia Schmidt de Almeida.
A reportagem é do jornal Estado de S. Paulo, 23-11-2006.
Os comentários dos três são uma resposta ao que disse, anteontem, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ele responde a processo na 23ª Vara Cível de São Paulo, por abusos que teria cometido quando comandou o DOI-Codi paulista nos anos 70, e recebeu dos amigos um ato de desagravo, que reuniu em Brasília mais de 200 oficiais - todos da reserva.
Em seu discurso, Ustra manifestou o temor de que a ação contra ele seja o primeiro passo dos derrotados de 1964 para, em seguida, mover novos processos e pedir o julgamento dos abusos praticados pelos militares nos 21 anos de ditadura. Este é o primeiro processo contra um militar desde a aprovação da Lei da Anistia.
A 'ação declaratória de reparação de danos morais' foi movida pelos ex-presos políticos Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto Teles e Criméia Schmidt de Almeida e pede, simplesmente, o reconhecimento de que o coronel comandou sessões em que eles foram torturados no DOI-Codi.
'De fato, é apenas uma ação declaratória', adverte Bicudo, 'mas, em seguida, não é impossível que alguém no Ministério Público se valha de uma declaração favorável para abrir uma investigação'.
Assim, o coronel poderia, dependendo da tipificação do crime, ser enquadrado na Lei de Tortura, de 1997. Em seu artigo 1º, parágrafo 6º, essa lei diz que o crime de tortura 'é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia'. Em suma, o caminho jurídico é viável dentro das normas existentes. Se adotado, a Justiça estaria diante de aproximadamente 500 denúncias de tortura para julgar.
'O MAIS ATRASADO'
Como Bicudo, Cecília também defende uma rediscussão da questão, porque 'o Brasil é hoje o país mais atrasado do continente' no debate dos abusos praticados no período militar. Em 2003, compara ela, o governo argentino revogou duas leis que liberavam os agentes da repressão de responsabilidades passadas e alguns deles já sofreram penas. Em Montevidéu, o ex-ditador Juan Maria Bordaberry acabou de ser condenado à prisão. No Chile, o ex-ditador Augusto Pinochet vive sob prisão domiciliar.
A vice-presidente do Tortura Nunca Mais não aceita que a interpretação dos tais crimes conexos, 'engolida pela sociedade brasileira e até pelos ex-presos políticos', não seja novamente debatida. Como ela, Bicudo quer uma rediscussão do conceito desse acordo de 1979. 'Crimes conexos são, por exemplo, os praticados por um mesmo autor. Como quando alguém bate em alguém e lhe rouba o carro. Um crime abre caminho para possibilitar o outro. Como pode haver conexidade entre vítima e réu?'
Cecília também não aprova que se entre 'no jogo da intolerância'. 'Nem em atos de vingança, como eles fizeram, aplicando penas longas.' Em troca, ela cobra que o País possa conhecer a sua história, resgatar o que aconteceu naqueles anos e abrir os arquivos secretos que contam o que ocorreu nos porões. 'Não se supera o passado escondendo-o', mas 'revelando como morreram os desaparecidos políticos, onde estão seus corpos e quais foram os responsáveis pelo que foi feito'.
Para a ex-presa política Criméia, 'quem deve teme' e foi por isso 'que o coronel Ustra falou o que falou'. O que ele chamou de revanchismo, segundo Criméia, 'é uma decisão adotada por um juiz, dentro das normas legais brasileiras'.
Ela diz ter entrado na ação por entender que o coronel fez uma série de afirmações falsas. 'Fui presa e torturada. Quando pedi, muitos anos depois, o meu habeas-data, informaram que não havia nenhuma referência a nada daquilo nos arquivos do governo.' Ela rebate também a alegação de que os ex-presos políticos recebem altas indenizações. 'Temos uma lista de 500 pessoas na fila, não saiu dinheiro para ninguém', destaca.
Outra questão, diz Cecília, é que nem o governo Fernando Henrique nem o atual decidiram mandar abrir os arquivos. 'Muitos comandantes se apossaram daquele material, privatizaram-no. Levaram para casa e não cedem de jeito nenhum.'
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