quarta-feira, 20 de abril de 2011

Leia da Anistia: “O medo falou mais alto”.

15/8/2008

unisinos

Entrevista especial com Pedro Serrano

“Nação não é um mero aglomerado de pessoas. É um fenômeno cultural que como tal é composto por sua história. Nação é um conceito que inclui a história de um povo. Nação é um povo com história.” Assim finalizou sua entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, o doutor em Direito do Estado Pedro Serrano.

Na entrevista, ele ainda reflete sobre a Lei da Anistia a partir das propostas feitas pelos ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi de punição dos torturadores da ditadura militar.

Segundo ele, "faltou coragem e visão de estadista a nossos governantes. Preferiu-se indenizar pessoas, salvaguardar os direitos pessoais, como se fossem substitutos suficientes do direito coletivo ao conhecimento do período histórico”.

Pedro Estevam Serrano é graduado em Direito, pela PUC-SP, onde também obteve o título de mestre e doutor em Direito do Estado. Atualmente, é sócio do escritório Teixeira, Ferreira e Serrano Advogados Associados. É, também, professor da PUC-SP e da Escola Paulista de Direito e escreveu o livro O desvio do poder na função legislativa (São Paulo: Editora FTD, 1997).


Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que análise o senhor faz acerca da Lei da Anistia?
  Pedro Serrano –
A Lei da Anistia foi uma legislação produzida com o texto e por decisão do regime militar, durante o período de ditadura. Ela claramente beneficia as pessoas condenadas, perseguidas ou exiladas por conta de delitos ou motivos políticos.

Como o regime na ocasião não queria assumir perante a opinião pública global que houve tortura e morte de aprisionados durante o período militar, o suposto benefício que esta lei trouxe aos agentes públicos civis e militares, que praticaram torturas, é mais claro nos discursos dos que defendem as práticas da ditadura do que no texto de direito positivo. A lei apenas anistia os delitos políticos e seus "crimes conexos".

Ora, tortura não é um crime conexo ao suposto delito praticado pelo torturado. Que conexão há entre a tortura policial e o tráfico de drogas ou seqüestros cometidos pelo torturado que praticou esses delitos? O crime político e o crime de tortura são condutas delitivas com motivos e "iter" independentes, cujas normas tipificadoras protegem bens jurídicos diversos.

Tanto é verdade essa ausência de conexão que muitos cidadãos que não praticaram qualquer conduta política foram torturados por serem parentes, locadores de imóveis, amigos ou mesmo advogados de opositores políticos do regime.

Às vezes, eram torturados ou mesmo mortos cidadãos sem qualquer relação com militantes de oposição ao regime, por pura vingança de briga de vizinhos ou coisa parecida. Até parlamentares e jornalistas foram torturados e mortos. Ou seja, a tortura como prática foi muito além da repressão à atividade política, atingiu diversos rincões da cidadania pelos mais diversos motivos.

Por essa razão, a questão é que devemos debater no ambiente próprio, que é o da jurisdição, o sentido e extensão da Lei de Anistia, e não modificá-la, mesmo porque seria inócua a modificação. Ela já esgotou seus efeitos jurídicos, sendo incorporada como direito ao patrimônio jurídico de quem foi por ela beneficiada, e considerada inconstitucional a alteração legislativa retroativa de suas disposições. O que é retroativo por natureza é o caráter de imprescritibilidade do crime de tortura, uma vez que foi estipulado por norma constitucional originária.


IHU On-Line – O senhor concorda com a proposta do ministro Tarso Genro, favorável à punição de torturadores que atuaram no regime militar?

Pedro Serrano – Sou integralmente favorável à posição do ministro, de que o Ministério Público, a polícia e os órgãos disciplinares do Executivo devem investigar os fatos ocorridos, identificar os agentes que praticaram torturas e, posteriormente, submeter à jurisdição a decisão, no caso se foram ou não beneficiados pela Lei de Anistia.


IHU On-Line – Em que aspectos essa medida é positiva ou negativa para a história do país?
Pedro Serrano – Em verdade, o grande ganho que uma conduta destas traria ao país é a possibilidade que teríamos, como sociedade, de nos apropriarmos de nossa história. Se, por um lado, nossa história é conhecida, as pessoas e organizações que lutaram contra a ditadura são conhecidos publicamente, por outro, o mesmo não ocorre quanto aos agentes públicos que praticaram crimes de estado e de lesa-humanidade, como a tortura e o desaparecimento de aprisionados.

Não podemos encarar a justa e necessária indenização das vítimas como um cala-boca, um substituto do direito coletivo de conhecer nossa história como sociedade e Estado.


IHU On-Line – A Lei da Anistia comprometeu os direitos humanos no país?
  Pedro Serrano –
Creio que não, exatamente porque entendo que ela não beneficiou agentes públicos que praticaram violências contra aprisionados. O que beneficiou esses agentes foi a ilícita inação do Estado no que toca à apuração destes crimes, por conta de um discurso que pressupõe uma amplitude semântica que a Lei da Anistia não tem efetivamente.

IHU On-Line – A Justiça brasileira está longe de seguir os exemplos dos tribunais da Argentina, Chile e Uruguai, que já abriram seus arquivos da época da ditadura?
  Pedro Serrano –
A responsabilidade pela ilícita não apuração dos fatos não deve ser atribuída à Justiça. A Justiça no sistema constitucional brasileiro é inerte. Ela não investiga fatos. Quem o faz são a polícia e o Ministério Público, órgãos ligados ao Poder Executivo. Compete a estas instituições, em conjunto com os órgãos disciplinares da Administração Pública, investigar o ocorrido, identificar os agentes criminosos e daí acionar a jurisdição para que decida, e, se for o caso, puna. A Justiça não pode mandar abrir arquivos de ofício. Apenas quando provocada para tal, no bojo destas investigações.

As medidas de caráter civil, promovidas recentemente pelo Ministério Público Federal, são muito positivas, mas insuficientes. Primeiro, porque têm apenas caráter civil, e não criminal. Depois, pelo fato de pouco acrescentarem à história — os réus são pessoas já conhecidas como torturadores.

O adequado seria a criação de um grupo formado pelo Ministério Público Federal e Polícia Federal, especializado na questão, para apurar estes delitos de forma ampla. Obviamente, a liberação dos arquivos a estes investigadores seria uma inerência à investigação.


IHU On-Line – Por que os arquivos políticos da época da ditadura são um tabu para os governos que vieram com a democracia?
  Pedro Serrano –
Faltou coragem e visão de estadista a nossos governantes. Preferiu-se indenizar pessoas, salvaguardar os direitos pessoais, como se fossem substitutos suficientes do direito coletivo ao conhecimento do período histórico. Um grande equívoco, em verdade. O medo falou mais alto do que os interesses republicanos.


IHU On-Line – Como o senhor avalia a relação da questão do perdão e da abertura dos arquivos políticos da ditadura e a eventual punição dos torturadores?
  Pedro Serrano –
Não acho que a Lei de Anistia anistiou qualquer torturador; ela não teve este sentido. E os agentes civis e militares de então não podem se queixar, pois a lei foi por eles escrita e aprovada. Não há que se falar em perdão, ao menos na dimensão jurídica-institucional da expressão.

Também não há que se falar, ao menos juridicamente, em esquecimento, pois tortura é crime imprescritível nos termos da Constituição e os torturadores de então não foram anistiados deste delito.

De qualquer modo, não acho o mais relevante a questão da punição real dos torturadores. Mais importante que isso é identificá-los, sabermos quem são e como atuaram, bem como onde estão os restos de suas maiores vítimas. Conhecer nossa história. Só uma investigação profunda e rigorosa pode nos propiciar isso.


IHU On-Line – Que influência as Forças Armadas ainda têm sobre o Brasil?
Pedro Serrano – Não acho que as atuais Forças Armadas possam ser confundidas com essa minoria que torturou no passado.

A tortura, além de crime lesa-humanidade, é uma prática que contraria a essência do que são os maiores valores militares. Submeter um aprisionado a uma situação de impotência, de impossibilidade física de reação, e seviciá-lo é um ato de tamanha covardia e perversão que afronta a noção de dignidade, honra e coragem que animam a atividade militar.

A coragem, a generosidade cívica e o senso pessoal de dignidade que compõe a imagem do soldado são o antônimo do que significa a covardia, a torpeza e a perversão do torturador. Não é à toa que eles não assumem o que fizeram, lutam para continuar nas sombras. A vergonha os leva a isso.

Enquanto instituição, as Forças Armadas devem colaborar com as investigações, desvinculando sua imagem deste passado perverso e sujo.


IHU On-Line – Podemos considerar que vivemos numa democracia plena enquanto não soubermos a verdade sobre nosso passado?
  Pedro Serrano –
Em verdade, sem conhecermos nossa história seremos sempre incompletos como nação. Nação não é um mero aglomerado de pessoas. É um fenômeno cultural que como tal é composto por sua história. Nação é um conceito que inclui a história de um povo. Nação é um povo com história.

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