6/1/2008
unisinos
Jan Rocha é inglesa e vive em SP desde 1969. Foi correspondente da BBC (73 a 94) e do jornal The Guardian (84 a 94). Durante a ditadura, fundou o grupo Clamor, que denunciava abusos de Estado na América do Sul. É autora, entre outros, de Haximu (Casa Amarela). Ainda colabora com The Guardian e BBC. Ela publica, no jornal O Estado de S. Paulo, 6-01-2008, o seguinte testemunho intitulado Operação Condor.
Em maio de 1979, uma assistente social chilena que trabalhava num orfanato em Valparaíso decidiu passar férias na Venezuela. Em Caracas, viu no jornal La Nación um artigo sobre crianças desaparecidas na Argentina após o golpe de 76.
O texto era ilustrado com fotografias em preto e branco. Ela não conseguiu acreditar no que via: os rostos dos irmãozinhos que tinham sido abandonados numa praça de Valparaíso três anos antes, e levados depois para o orfanato.
Por meio de grupos de exilados uruguaios, a notícia da descoberta da assistente social chegou até María (codinome de Mariela Salaberri), exilada política uruguaia que vivia em São Paulo. Numa manhã de maio, ela me ligou entusiasmada: “Jan, encontramos Anatole e Vicky”.
Eu participava do Clamor, um pequeno grupo ecumênico criado um ano antes para ajudar os refugiados políticos que afluíram a São Paulo depois dos golpes militares no Chile, Uruguai e Argentina, e denunciar as atrocidades cometidas naqueles países.
Em nossos boletins, publicávamos listas de crianças desaparecidas - entre elas, Anatole e Victoria Julien Grissonas, que tinham respectivamente 4 anos e 1 ano e meio quando desapareceram, com seus pais. Na ocasião, a casa deles em Buenos Aires foi invadida por uma equipe conjunta de forças de segurança argentinas e uruguaias, em setembro de 1976.
Apressadamente, convoquei uma reunião do Clamor - o reverendo Jaime Wright, os advogados Luiz Eduardo Greenhalgh e Fermino Fecchio, o padre Roberto Grandmaison, a irmã Michael Mary Nolan, a professora Teresa Brandão.
Ficamos entusiasmados, mas cautelosos. Seria realmente verdade? A assistente social - que não quis dizer seu nome - poderia estar enganada? Como as duas crianças podiam estar a quase 2000 quilômetros do lugar em que sumiram?
Alguém deveria ir ao Chile investigar. María candidatou-se. Os pais das crianças, Roger e Victoria Lucia Julien, tinham sido seus companheiros no Partido para a Vitória do Povo (PVP), uma agremiação de esquerda. María devia a eles o esforço de buscar os seus filhos.
O Chile era uma ditadura e sabíamos, já naquele momento, que as forças de segurança dos países do Cone Sul mantinham estreita colaboração para a captura de exilados políticos.
Seis meses antes, uma outra participante do PVP, Lilian Celiberti, que vivia em Porto Alegre, fora seqüestrada com seus dois filhos pequenos e forçada a retornar ao Uruguai, numa operação conjunta das polícias e dos Exércitos brasileiro e uruguaio.
Investigações da Ordem dos Advogados do Brasil, da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, de grupos de direitos humanos e da imprensa encontraram provas dessa colaboração.
María, felizmente, também tinha cidadania francesa, de maneira que partiu para Santiago usando seu passaporte francês, armada com fotos das crianças, uma agenda com nomes escritos em código - e a bênção de dom Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, que acompanhava de perto todas as operações do Clamor.
Foi apenas quando chegou lá que percebeu o enorme desafio a sua frente. A assistente social dissera que as crianças tinham sido adotadas “por um dentista”. María não sabia seu nome nem endereço. Temia ir ao orfanato e chamar atenção para sua busca.
Dirigiu-se então ao escritório do Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (Acnur), porque sabia que a representante do órgão era uma conterrânea, Belela Herrera. Ela descobriu que Belela (hoje vice-ministra das Relações Exteriores do Uruguai) era uma funcionária pública internacional que conservava seu lado humano - e ficou fascinada pelo caso, indicando um contato em Valparaíso, um porto na costa do Pacífico a apenas uma hora de Santiago.
Esse contato finalmente levou-a até o consultório de um dentista amigo. Ele examinou as fotos. E reconheceu imediatamente as crianças, adotadas por um colega seu, Jesús Larrabeiti, e sua mulher, Silvia. Deu a María o endereço da escola das crianças, dirigida por padres católicos, onde, depois de ouvir a história da real identidade das crianças e ver as fotos, o diretor forneceu-lhe o endereço da família.
Naquela noite, María jantou num restaurante e viu pela TV imagens do general Pinochet desfilando pelas ruas - para ela, eram imagens assustadoras.
Dia seguinte María tomou o avião de volta para o Brasil. No embarque, ficou com o coração na boca quando soldados examinaram sua mala. Eles ignoraram as fotos e confiscaram a garrafa de pisco que ela comprara de lembrança.
Agora que estávamos certos de ter encontrado Anatole e Vicky, começamos a planejar o passo seguinte. Alguém teria de ir ao Uruguai e contatar os avós das crianças para conseguir as certidões de nascimento necessárias para provar suas identidades verdadeiras. Obviamente não poderia ser María. O jornalista Ricardo Carvalho concordou em ir. Dom Paulo escreveu uma carta pedindo às autoridades da Igreja no Uruguai para darem toda assistência a ele.
Ficamos nervosamente à espera de notícias. Em Montevidéu, Ricardo localizou os avós paternos - que nunca desistiram de procurar seus netos, tendo escrito um número incontável de cartas às autoridades argentinas e até ao papa.
A repressão no Uruguai era implacável. Não se permitia nenhuma organização de direitos humanos e mesmo a Igreja Católica, assustada e temerosa, recusou-se a ajudar Ricardo. No outro dia, tão logo seu vôo Varig decolou, pediu um uísque duplo. Em seguida, dirigiu-se à cabine da aeronave. E narrou sua história ao piloto perplexo.
Agora tínhamos os documentos para provar quem eram realmente as crianças e o próximo passo seria levar Angélica Julien, a avó, para o Chile. O avô estava muito doente para viajar.
Ela voou para Santiago em 25 de julho de 1979, acompanhada de dois membros do Clamor - Jaime Wright e Luiz Eduardo Greenhalgh. Chegaram em tempo para descobrir que a família Larrabeiti, sem saber da azáfama de atividades que agora se estendiam pelos três países, estava em vias de completar o processo de adoção formal das crianças. Com base na lei chilena, a adoção extingue os direitos da família biológica. Os Larrabeiti, que não tinham nenhuma idéia da real identidade das crianças, ficaram consternados diante dessa reviravolta inesperada dos fatos. Eles permitiram que Angélica visse as crianças. Três anos tinham se passado. Anatole e Vicky não se lembravam da avó. Ainda assim ela desejava levá-los de volta para Montevidéu.
“Eles perderam seus pais uma vez. Se isso acontecer de novo, ficarão traumatizados”, argumentou o dentista Jesús. Angélica mostrou todas as cartas que escrevera aos militares, às autoridades políticas e eclesiásticas, para provar que nunca deixara de procurar os netos. Disse que tinha que levá-los, para o caso de seus pais reaparecerem.
A equipe do Clamor descobriu que, quando as crianças foram encontradas na Plaza Bernardo O’ Higgins, pouco antes do Natal de 1976, a imprensa chilena cobrira amplamente o mistério.
Anatole descreveu como homens armados invadiram a casa onde viviam com mamucha e papucho, e seu pai os escondeu dentro da banheira. Depois, viu sua mãe numa poça de sangue. Ele chegou mesmo a dar seu endereço em Buenos Aires. Lembrou o nome das vilas na fronteira chilena que atravessaram, e de ter visto neve nas montanhas. Disse que viajou num grande carro com “tia Mónica”, que os deixou brincando na praça enquanto foi comprar doces. Mas ela jamais voltou. Depois de algumas horas, alguém que notara as duas crianças chamou a polícia. Foi observado que Anatole tinha um forte sotaque portenho. A prova final de que eram crianças estrangeiras surgiu quando eles não conseguiram reconhecer os artistas de programas infantis da TV chilena.
Em 1979, o embaixador uruguaio Dante Paladini declarou que seu governo nunca ouvira falar das crianças e jamais recebera nenhuma queixa de sua família. A história completa, o aparecimento das crianças , como também a história dos pais desaparecidos, disse ele, eram exageradas e tinham conotação política.
Alguns meses antes, o ditador chileno, Augusto Pinochet, usando seu uniforme do Exército, tinha sido aclamado como herói em Montevidéu, desfilando em carro aberto com o presidente uruguaio Juan María Bordaberry. Cartazes proclamavam: “Presidente Pinochet, aqui o senhor está em casa”.
Quem decidiu deixar as crianças no Chile sabia que essa admiração mútua entre os ditadores da América do Sul garantiria que nenhuma investigação séria sobre a origem dos irmãos seria autorizada. E julgava que sua família nunca imaginaria procurá-las em outro país.
Assim, todas as informações de Anatole sobre o lugar de onde teriam vindo - nomes dos pais, endereço em Buenos Aires - foram ignoradas.
Não houve nenhum empenho em descobrir como duas crianças pequenas entraram no Chile sem documentos, ou para localizar a misteriosa “tia Mónica”. Nenhum órgão internacional - nem a Interpol, nem a Cruz Vermelha - foi solicitado a auxiliar na solução do caso.
Em São Paulo, no dia 31 de julho, Clamor organizou uma coletiva de imprensa. Dom Paulo deu a notícia da descoberta de Vicky e Anatole. Era a primeira vez que crianças desaparecidas depois do golpe na Argentina eram encontradas. E encontradas em outro país, mostrando a colaboração entre as autoridades militares da Argentina, Uruguai e Chile.
Em seus boletins, Clamor já publicara listas de crianças desaparecidas. A primeira continha os nomes de 17 bebês e 21 adolescentes, e também de quase 60 mulheres grávidas que tinham desaparecido.
As avós dessas crianças organizaram seu próprio grupo - as Avós da Praça de Maio. Para elas, a notícia vinda de São Paulo foi uma luz no fim de um túnel de desespero e tristeza.
Finalmente, Angélica desistiu da sua demanda para que Anatole e Vicky retornassem a Montevidéu, reconhecendo que as crianças já tinham sofrido muito e uma outra mudança seria ainda mais traumática.
Ficou combinado que elas passariam regularmente as férias em Montevidéu, e gradativamente voltariam a conhecer sua família biológica. Hoje, embora continuem a viver no Chile, sentem-se em casa no Uruguai.
Com os anos, surgiram mais detalhes sobre o que acontecera com Anatole e Vicky depois de seu desaparecimento, por meio do testemunho de prisioneiros que sobreviveram.
Os dois foram mantidos primeiro em Buenos Aires, num centro de detenção clandestino chamado Automotores Orletti, onde um dos métodos de tortura era pendurar os prisioneiros no teto pelos braços.
Depois, foram levados para Montevidéu num dos vôos clandestinos organizados pela Operação Condor para transportar prisioneiros uruguaios presos na Argentina de volta ao Uruguai.
Em Montevidéu, as crianças ficaram em um local onde os prisioneiros que retornavam eram torturados. Não está claro ainda quando os pais de Anatole e Vicky foram mortos, mas não há dúvida de que as crianças passaram semanas nesses centros clandestinos de tortura, cercadas por prisioneiros algemados e encapuzados, onde devem ter ouvido os gritos dos torturados.
Depois foram abandonadas num país estranho, sozinhas - para matar qualquer esperança de serem reencontradas por sua família.
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