14/10/2007
A Igreja católica argentina, “partida em duas durante os anos da cega ditadura de Onganía, de claro conteúdo pré-conciliar (de Trento, se ironizava então), transitou os dois caminhos que tinha pela frente: a proximidade como os poderes de turno por um lado, e a participação no movimento de padres terceiromundistas, a Teologia da Libertação e a opção pelos pobres, por outro.
A última ditadura só fez aprofundar essa divisão da qual Von Wernich é seu aparente bode expiatório”, diz Alberto Amato em artigo publicado no Clarín, 10-10-2007. A tradução é do Cepat.
“A Igreja, que sofreu na própria carne o terrorismo de Estado, é vista como cúmplice silenciosa daquele horror, como se tivesse abençoado a ditadura, além de consolar e reconfortar os seus torturadores e assassinos”, conclui Amato.
Segue a íntegra do artigo.
Christian Von Wernich falou ontem [anteontem] de paz e reconciliação. Citou Jesus e seus Apóstolos e assegurou, apoiando-se na nossa Bíblia, que a paz permite pensar com liberdade. De passagem, referiu-se a falsos testemunhos, como para desacreditar a condenação que recebeu.
Não fez referência à verdade, necessária para a paz e a reconciliação, da qual a Bíblia também fala. Há vinte anos Von Wernich não falava assim. “Vivi uma guerra do ponto de vista ideológico, que é o de um conservador de centro”, disse numa reportagem a 7 Días, em 1984, que lhe valeu sete dias de detenção no Congresso Nacional.
Nesse espírito entre guerreiro e bíblico que separam o Von Wernich de 1984 do de ontem está parte do conflito não resolvido da Igreja argentina que hoje olha para aqueles anos de horror.
Partida em duas durante os anos da cega ditadura de Onganía, de claro conteúdo pré-conciliar (de Trento, se ironizava então), a Igreja transitou os dois caminhos que tinha pela frente: a proximidade como os poderes de turno por um lado, e a participação no movimento de padres terceiromundistas, a Teologia da Libertação e a opção pelos pobres, por outro. A última ditadura só fez aprofundar essa divisão da qual Von Wernich é seu aparente bode expiatório.
“Quererá Cristo que algum dia as Forças Armadas estejam além de sua função? O Exército está expiando a impureza de nosso país. Os militares foram purificados no Jordão do sangue para colocarem-se à frente de todo o país”, disse em setembro de 1975 o vigário geral do Exército, monsenhor Victorio Bonamín.
Não era o único anúncio do horror por vir, com a desculpa de enfrentar o delírio guerrilheiro, já quase derrotado quando ocorreu o golpe de 24 de março de 1976.
O próprio Von Wernich disse naquela reportagem a 7 Días. “(...) Que me digam que [o general Ramón] Camps torturou um negrinho que ninguém conhece, vá lá. Mas como iria torturar Jacobo Timerman, um jornalista sobre o qual houve uma constante e decisiva pressão mundial... Que se não fosse por isso...”.
Se houve autoridades eclesiásticas “processistas” houve bispos que foram contrários à ditadura, como Vicente Zaspe, Jorge Novak, Esteban Hesayne, Jaime de Nevares, Enrique Angelelli, assassinado em agosto de 1976, e monsenhor Carlos Ponce de León, também assassinado em 1977.
Ao menos 18 sacerdotes foram assassinados ou figuram como desaparecidos, entre eles os palotinos baleados em julho de 1976; outros dez padres estiveram presos na ditadura; trinta foram seqüestrados e levados para os centros clandestinos de detenção e em seguida libertados; onze seminaristas foram assassinados ou figuram como desaparecidos e, é muito difícil de calcular, mas se acredita que são mais de cinqüenta os leigos católicos vítimas da repressão ilegal.
A Igreja, que sofreu na própria carne
o terrorismo de Estado, é vista como cúmplice silenciosa daquele horror, como se tivesse abençoado a ditadura, além de consolar e reconfortar
os seus torturadores e assassinos.
Muitos não se conformaram com a descrição do fenômeno, inclusive alguns setores da própria Igreja. “A Igreja não matou, mas não salvou. Devemos estar do lado dos crucificados e não tão perto dos crucificadores”, disse o padre Rubén Capitanio a Von Wernich no processo de julgamento deste último.
“A Igreja não moveu um só dedo pela morte violenta de um dos seus”, disse o padre Arturo Pinto, que acompanhava Angelelli no dia em que foi assassinado.
“A Igreja poderia ter feito mais”, disseram em 1995 dois arcebispos, Carlos Galán e Domingo Castagna, e três bispos: Justo Laguna, Jorge Caseretto e Emilio Bianchi Di Cárcano.
Nem o Governo escapou da polêmica. Quando a Igreja criticou sua visão parcial do que aconteceu nos tormentosos anos 70, o presidente Néstor Kirchner respondeu com uma iracunda pergunta: “Aonde estavam os bispos quando aqui desapareciam crianças?” Tempos depois, num gesto de distensão, Kirchner e o cardeal Jorge Bergoglio participaram juntos de um ato na Paróquia onde foram assassinados os palotinos.
É possível pedir às autoridades eclesiásticas uma contrição maior, no momento em que pela primeira vez na história argentina um de seus sacerdotes é condenado por torturas, seqüestros e assassinatos? Von Wernich não pensava nisso quando ontem falou de paz e reconciliação.
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