quinta-feira, 5 de maio de 2011

Políticas de memória: um dever social

unisinos

13/09/2010


O exercício de memória atinge o status de um dever, defende José Carlos Moreira Filho, professor da Pontifícia Universidade Católica – PUCRS

 Por: Márcia Junges e Patricia Fachin

 “Realizar políticas de memória sobre períodos tão sombrios como os relativos a ditaduras e regimes totalitários é um dever não só para impedir que eles se repitam, mas também, e fundamentalmente, para que se possa fazer justiça às vítimas, rostos sem voz perdidos na poeira do tempo e ocultados pela, cada vez mais veloz, marcha do progresso”. 

A opinião é de José Carlos Moreira Filho e foi expressa na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Para o pesquisador, a maior dívida que uma sociedade possui “é para com as vítimas que caíram ao longo dos processos políticos e sociais de transformações violentas e autoritárias”.

Entretanto, a dívida dos brasileiros não se resume apenas a perseguidos políticos, mas ela diz respeito também “aos indígenas massacrados, aos africanos e descendentes escravizados e aos imigrantes europeus pobres que vieram ao Brasil após a abolição da escravatura”.

Nesse sentido, Moreira Filho menciona ainda que a Justiça de Transição “é fundamental para fortalecer e afirmar os valores democráticos e o respeito aos direitos humanos”.




José Carlos Moreira da Silva Filho participará do XI Simpósio Internacional IHU – O (des)governo biopolítico da vida humana, com o minicurso Dever de memória e violência do esquecimento: anistia e transição democrática no Brasil. O evento ocorre no dia 15-9-2010, às 14h30min.

José Carlos Moreira da Silva Filho é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.


Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que manter a memória é um dever?
José Carlos Moreira Filho - Há inúmeras situações em que todas as pessoas necessitam realizar um exercício de memória, para se lembrarem onde colocaram um objeto, por exemplo. O exercício de memória atinge o status de um dever, e aqui trato sem dúvida do âmbito coletivo, quando nos defrontamos com um passado de violências e injustiças.

O imperativo da não repetição, assinalado de modo emblemático por Adorno , surge especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando a humanidade foi confrontada com um nível de barbárie e desconsideração da pessoa humana em patamares que ainda não haviam sido atingidos, colocando em funcionamento o aparato bélico e tecnológico de uma verdadeira indústria de eliminação física, moral e existencial de milhões de seres humanos.

Morte industriosa e apoiada na frieza de uma razão instrumental, que é prima irmã da mesma racionalidade que em nossos dias condena milhões de pessoas à pobreza mais absoluta.

Um Estado orientado para a implementação de uma política delinquente que, com cada vez maior frequência ao longo do século XX e no presente século, volta-se, com todo o peso das suas instituições jurídicas, políticas e econômicas, à perseguição e eliminação de uma parcela dos seus próprios cidadãos.

Em linhas gerais, é esta situação que tipifica os Crimes Contra a Humanidade, conceito surgido no Acordo de Londres de 1945 e que é a própria base da fundação da Organização das Nações Unidas e das Constituições democráticas contemporâneas, voltadas para a proteção e promoção de uma série de direitos e garantias fundamentais, exatamente porque eles foram tão fortemente ignorados ao longo da Guerra.

Em seu livro A História, a Memória e o Esquecimento (Campinas: Unicamp, 2007), Paul Ricoeur  afirma que uma sociedade que não faz o luto das suas perdas e traumas está condenada a repetir a violência que as gerou. Sem uma clara e simbólica determinação no espaço público do reconhecimento das violências e injustiças cometidas e, consequentemente, da sua reprovabilidade, é muito difícil, senão inviável, a construção de uma cultura e de uma prática de respeito aos direitos humanos, diametralmente oposta a sociedades e governos autoritários que aceitem diretrizes políticas que levam ao cometimento de crimes contra a humanidade.

No Brasil, por exemplo, como não construímos até hoje um claro juízo público de reprovabilidade da prática disseminada e institucionalizada da tortura, capilarizada pela ditadura civil-militar, muitos agentes públicos de segurança não só não se sentem inibidos na prática da tortura e da violência contra suspeitos e prisioneiros, como até acham que isto é correto e recomendável.

A ausência de qualquer investigação e construção de uma verdade judicial sobre os crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura civil-militar brasileira é um penoso obstáculo para a diminuição dos alarmantes índices de violência policial no Brasil.

Nesse sentido, a Lei de Anistia de 1979  nos impôs um verdadeiro exercício de esquecimento, ratificado de modo deplorável, tanto pelo resultado quanto pelos argumentos utilizados, no julgamento sobre a interpretação desta lei que teve lugar na Suprema Corte do país nos dias 28 e 29 de abril de 2010.

Realizar políticas de memória sobre períodos tão sombrios como os relativos a ditaduras e regimes totalitários é um dever não só para impedir que eles se repitam, mas também, e fundamentalmente, para que se possa fazer justiça às vítimas, rostos sem voz perdidos na poeira do tempo e ocultados pela, cada vez mais veloz, marcha do progresso.

A maior dívida moral que uma sociedade possui é para com aquelas vítimas que caíram ao longo dos processos políticos e sociais de transformações violentas e autoritárias.

A dívida que nós brasileiros, hoje, temos não é só com os perseguidos políticos na ditadura civil-militar, ela é também em relação aos indígenas massacrados, aos africanos e descendentes escravizados e aos imigrantes europeus pobres que vieram ao Brasil após a abolição da escravatura.

Ela também é em relação às vítimas da ditadura de Getúlio Vargas  e continua sendo em relação à numerosa massa de presidiários, submetidos constantemente a condições desumanas nas masmorras brasileiras, e aos grupos de pessoas pobres que cotidianamente são projetadas para as margens da cidadania, bem como com relação às vítimas de execuções sumárias e grupos de extermínio.


IHU On-Line - Nessa lógica, em que medida o esquecimento é uma violência?
José Carlos Moreira Filho - É importante entender que o esquecimento não é um mal em si. Nietzsche , em sua Segunda Consideração Intempestiva, nos mostra isto de modo genial, prescrevendo os benefícios do esquecimento e alertando para o excesso de história, especialmente daquela história fria, racionalizada, total e hegemônica, distante do pertencimento afetivo e tradicional, e da multiplicidade de vivas narrativas que, como assinalou Walter Benjamin, são como escadas que vão para todas as direções.

Quando nos referimos àqueles tipos de acontecimentos que nos demandam um dever de memória, tal como expus na resposta anterior, o esquecimento só pode aparecer como um fruto possível da superação dos traumas e do fim do luto, do arrependimento simbolizado no plano público. Neste caso, podemos nos deparar com o que Ricoeur chamou de uma “dívida sem culpa”.

Contudo, o esquecimento exercido para que o reconhecimento da violência e sua reprovabilidade não aconteçam, o esquecimento que procura sufocar certas narrativas e impedir que documentos públicos possam se tornar acessíveis, este sim é uma violência, na mesma medida em que permite que ela continue se reproduzindo, sem uma clara ruptura com as práticas autoritárias do passado.


IHU On-Line - Quais são os maiores exemplos de violência do esquecimento na transição democrática do Brasil? Dentro de contexto, qual é a importância da Justiça de Transição?
José Carlos Moreira Filho - Tratando especificamente do processo de transição política da ditadura civil-militar, ocorrida de 1964 a 1985, para a ordem democrática instituída a partir da Constituição Federal de 1988, podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que a lei 6683/79 tem dado ensejo a uma verdadeira política de esquecimento, na medida em que tem impedido a construção de uma verdade judicial sobre os crimes contra a humanidade praticados sistematicamente pelo Estado ditatorial brasileiro.

É possível compreender que ainda durante a vigência da ditadura, quando surgiu a Lei de Anistia, era inviável a investigação e a responsabilização pelos crimes cometidos pelo Estado repressor.

Entre 1975, quando começa o forte movimento popular pela Anistia, deflagrado pela liderança de Terezinha Zerbini  e de outras bravas mulheres brasileiras, e 1979, quando sai a Lei de Anistia, continuavam a ocorrer desaparecimentos forçados, como o de David Capistrano  (dirigente do PCB), assassinatos, como o de Vladimir Herzog , torturas, como as sofridas por milhares de perseguidos políticos, censura, como aquela exercida sobre qualquer publicação, aula ou discussão que desagradasse ao governo, cassações de mandatos políticos, como aquelas sofridas por inúmeros parlamentares do Movimento Democrático Brasileiro – MDB, partido de oposição consentida, expulsão de alunos e professores das universidades brasileiras, entre outros atos autoritários e castradores de direitos fundamentais.

O que é difícil compreender é como, mais de trinta anos depois, a Suprema Corte brasileira, cuja missão deveria ser a de zelar pelos valores e princípios da nossa Constituição democrática, continua insistindo no mesmo entendimento adotado pelos ditadores e seus subordinados.

O desvirtuamento dos fatos históricos, hoje mais detalhadamente conhecidos pelos inúmeros estudos que já foram produzidos sobre o período e, em especial, sobre o contexto de surgimento da Lei de Anistia (e aqui não posso deixar de citar a magnífica tese de doutorado defendida pela historiadora Heloísa Greco ), foi escancarado na decisão do STF.

E dou dois exemplos disto. Em primeiro lugar, a perversão da bandeira da Anistia. O lema “Anistia ampla, geral e irrestrita” quando empunhado pelos movimentos populares, pelos Comitês Brasileiros de Anistia e por órgãos apoiadores da causa como a OAB, a CNBB e a Associação Brasileira de Imprensa – ABI, jamais esteve voltado para a anistia de torturadores e assassinos de Estado.

No entanto, somos hoje obrigados a ouvir estarrecidos, no voto do ministro relator Eros Grau , que questionar a anistia aos torturadores seria “romper com a boa-fé dos atores sociais e os anseios das diversas classes e instituições políticas do final dos anos 1970, que em conjunto pugnaram (...) por uma lei de anistia ampla, geral e irrestrita, o que significa também prejudicar o acesso à verdade histórica”.
 
Eu pergunto: Ministro, de que verdade histórica estamos tratando? Como é possível chamar de acordo, como o fizeram os cinco ministros e ministras que indeferiram a ação da OAB, a imposição de um projeto de lei a um Congresso Nacional que estava dobrado de joelhos por medidas de força?

O Congresso Nacional que analisou e votou o projeto de lei enviado por João Baptista Figueiredo , para cuja redação concorreu, nada mais nada menos, que Golbery do Couto e Silva , o cérebro da Doutrina de Segurança Nacional, havia sido desfigurado pelo Pacote de Abril de 1977, imposto pelo ditador Ernesto Geisel.

Diante da iminência de uma vitória maciça do MDB nas eleições diretas para governadores, programadas para 1978, Geisel tirou o AI-5 do bolso e simplesmente fechou o Congresso Nacional em 01 de abril de 1977.

Antes de “reabri-lo” no dia 15 do mesmo mês, ele mudou todas as regras de composição do Congresso: instituiu os senadores biônicos, a maioria simples, o critério para o cálculo da representação e cassou parlamentares, tudo para impedir que qualquer proposta contrária aos interesses do governo pudesse passar.

Foi exatamente o que aconteceu com a Lei de Anistia. Na Comissão Mista, formada para apreciar o projeto de Figueiredo, a ARENA, partido de apoio à ditadura, tinha 13 representantes e o MDB, nove, sendo que um destes era o presidente da Comissão, Teotônio Vilela, que por isto não votava.

O resultado é que todas as propostas de mudanças apresentadas pelo MDB eram rejeitadas pelo placar estático de 13 a 8. No Congresso, a votação não foi nominal, foi em bloco, e caso acontecesse a improvável rejeição do projeto do governo na Câmara, das duas uma: ou a tropa de choque de senadores biônicos barraria o eventual substitutivo, ou o ditador Figueiredo, como declarou inclusive, iria simplesmente vetar toda a lei. Este foi o “acordo”.
 
É inadmissível que hoje, passados mais de 20 anos da promulgação da Constituição Federal, o judiciário brasileiro continue de costas para as normas de Direito Internacional Humanitário e para os valores democráticos de proteção à dignidade da pessoa humana insculpidos no próprio texto constitucional.

É vergonhoso que o Supremo Tribunal Federal chancele a auto-anistia entre nós, vedada na legislação e na jurisprudência internacional humanitária. Não se vê tanta má vontade com as normas internacionais quando o assunto é garantir os contratos internacionais e a livre ação da lex mercatoria.

Que democracia é esta que não repudia publicamente a tortura e a perseguição sistemática de parte da população nacional pelo próprio Estado? Que não responsabiliza e nem identifica os agentes públicos que protagonizaram tal perseguição? Qual a coragem que nos falta para passar a nossa história a limpo?


A Justiça de Transição é algo fundamental para que possamos fortalecer e afirmar os valores democráticos e o respeito aos direitos humanos. Ela se espalha em quatro grandes temas:
o “Direito à memória e à verdade (abertura dos arquivos e reconhecimento das violências praticadas pelo Estado),
a “Justiça” (a responsabilização dos agentes públicos que cometeram Crimes Contra a Humanidade),
a “Reparação” (econômica e, sobretudo, moral, ao reconhecer o papel de resistência que os perseguidos tiveram, e as punições e prejuízos que sofreram), e, por fim,
o “Fortalecimento das instituições democráticas”, em especial dos órgãos ligados à justiça e à segurança pública (que, no Brasil, continuam intocadas, pois ainda temos a Justiça Militar, a mesma estrutura das polícias repressivas instituídas na ditadura, e vários juízes que pensam como o ministro Marco Aurélio, que disse semanas antes do julgamento da Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 153, em entrevista em rede nacional, que “a ditadura foi um mal necessário”).


O campo de estudos da Justiça de Transição tem crescido bastante no mundo todo e tem tido um impulso expressivo no Brasil. Eu, por exemplo, invisto nesta linha de estudos no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, onde coordeno um Grupo de Estudos e um Grupo de Pesquisa sobre o tema.

Também faço parte de um maravilhoso grupo de intelectuais e estudantes do Brasil inteiro, com sede no Instituto de Relações Internacionais da USP, o Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST, que se dedica a pesquisar e a trocar informações e produções acadêmicas sobre o tema. 

 

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