terça-feira, 3 de maio de 2011

Anistia, reparação e confiança


http://www.oab-rj.org.br/index.jsp?conteudo=13326



*Luiz Paulo Barreto
Artigo publicado no jornal O Globo, 8 de setembro de 2010


Com fundamento na Constituição, o Congresso Nacional outorgou ao ministro da Justiça a competência para conceder a anistia política a todos aqueles atingidos por atos de exceção, na plena abrangência do termo, durante o período da ditadura, e proceder com as reparações devidas. Seu ato de concessão se baseia em parecer da Comissão de Anistia, criada no âmbito do Ministério da Justiça pela Lei nº 10.559/2002, que a incumbiu do exame dos requerimentos de anistia política e do arbitramento do valor das indenizações.

Trata-se do cumprimento de um dever estatal de justiça e de uma medida constitutiva de dupla face. A primeira, como reparação moral, de dar visibilidade à história de cada uma das vítimas e declarar o seu direito de resistência a um regime autoritário. A segunda, no tocante à reparação material, de assumir a responsabilidade pelas violações aos direitos humanos ocorridas e cumprir o princípio basilar do estado de direito de indenizar danos causados a terceiros pela ação ou omissão cometida pelos seus agentes públicos.

Os "direitos de transição" e as modalidades reparatórias estão previstos na mencionada Lei nº 10.559/2002, que regulamenta o art. 8º das disposições transitórias da Constituição. A lei, elaborada pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e aprovada por unanimidade pelo Congresso, concebe o referido ato declaratório de anistia política como uma singular etapa para a construção do processo de pacificação e reconciliação nacional com as vítimas, formulando poderes discricionários e exclusivos ao Ministério da Justiça para a fixação dos valores indenizatórios.

Desde a promulgação da lei, ministros da Justiça de diferentes governos cumpriram esta tarefa histórica e política, com a assessoria da Comissão de Anistia. Elogiado por organizações internacionais por sua transparência neste processo, o Brasil é o único país da América Latina onde o processo deliberativo da comissão de reparação é realizado de forma pública.

Ocorre que, em recente decisão, o Tribunal de Contas da União equiparou as reparações econômicas dos anistiados políticos a pagamentos previdenciários e, por isto, anunciou sua competência para registro e revisão dos valores concedidos. O Ministério da Justiça discorda do mérito da decisão e irá recorrer por meio da Advocacia Geral da União.

A Lei nº 10.559/2002 claramente instituiu um regime próprio para os anistiados políticos de natureza jurídica explicitamente indenizatória e, portanto, distinto do regime de natureza previdenciária.

Nesse sentido, o art. 1º criou o específico "regime jurídico do anistiado político", compreendendo como direito: "II - reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1º e 5º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias." Deste modo, qualquer modificação nos critérios e na natureza jurídica da reparação econômica cabe somente ao Poder Legislativo, em sua atribuição legislativa, e não aos órgãos de fiscalização e controle.

Em 2002, com a promulgação da Lei nº 10.559, foi construído em consenso da sociedade um sistema pelo qual deu-se início a um longo processo de reconstrução da confiança pública dos cidadãos em relação ao Estado que, em tempos de arbítrio, os violou em sua integridade física e psicológica. Diante dos entraves à abertura dos arquivos da ditadura - a dificultar sobremaneira o acesso aos dados da época de exceção -, criou-se uma dinâmica probatória simplificada na qual o ato de anistia e reparação torna-se completo e acabado com a decisão do ministro da Justiça. Nesta sistemática, junto à Comissão de Anistia, foram recebidos e analisados milhares de traumas, lutos e dores.

O Ministério da Justiça não se nega a se submeter ao controle fiscalizador de nenhum órgão de controle interno ou externo. Tanto é assim que em outras oportunidades foram revisadas decisões assimilando sugestões de diferentes órgãos de controle administrativos ou judiciais. Mesmo assim, não se pode concordar em transformar uma análise política realizada pelo Poder Executivo, com evidente respaldo legal, em um exame meramente contábil. É inoportuno e injustificável para as vítimas aventar-se que o Estado possa se valer hoje da criação de um novo procedimento de registro e de revisão das decisões proferidas, diferente daquele inicialmente instituído pelo legislador democrático.

*Luiz Paulo Barreto é ministro da Justiça.
Artigo publicado no jornal O Globo, 8 de setembro de 2010

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