domingo, 8 de maio de 2011

Pinochet e a herança grotesca da ditadura

08/04/2011

unisinos

Julgado como ladrão, o ditador chileno não foi condenado como “organizador do crime político e do estado policial”, lamenta José De La Fuente. Colaboração entre países latino-americanos solidificou a atuação da Operação Condor e promoveu um know-how da tortura

Por: Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Uma herança grotesca de perseguição, desaparecimento de pessoas, “encarceramentos maciços e assassinatos de militantes de esquerda”. Eis alguns dos principais legados da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, avalia o professor chileno José De La Fuente. “No período da ditadura, o poder Judiciário praticamente não funcionou, atuou em conluio com o regime, negou sistematicamente o direito à defesa e o habeas corpus”, pontua.

Além disso, a hegemonia desse regime foi baseada na “organização de um aparato de Estado policial permanente, convencida de seu messianismo salvífico para evitar que o Chile e a América Latina ‘caíssem nas mãos do comunismo soviético’”.

Há de se ressaltar que “o principal responsável e condutor da criminalidade política, o ditador Augusto Pinochet, morreu tendo sido julgado como ladrão, porém não condenado como organizador do crime político e do estado policial”.

A colaboração entre os países latino-americanos na Operação Condor, iniciada na década de 1960, é outro aspecto debatido na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line: “Os generais Garrastazu Médici, Geisel e Batista Figueiredo sem dúvida orientaram Pinochet e o ajudaram com a Operação Condor e no preparo de torturadores”. Essa organização, acredita, “não morreu com o desaparecimento de Pinochet ou de Stroessner”.

Em seu ponto de vista, “o interesse dos Estados Unidos em apoiar este tipo de ditaduras e de facínoras, não era outro que impedir o desabrochar da participação popular, da organização e do protagonismo da inteligência política dos povos em sua ascenção à recuperação do poder social e político. Talvez o caso do Chile seja o mais patético”. A respeito do governo de Michelle Bachelet, dispara: “O fim da ditadura não significou um reencontro dos chilenos com os ideais democráticos socialistas que a presidente declarava. Bachelet não pôde mudar os enclaves ditatoriais como o Sistema Eleitoral Binominal, substituir a Constituição deixada pelo ditador e o modelo econômico neoliberal e reivindicar os direitos ancestrais da nacionalidade mapuche”.

José De La Fuente é professor de espanhol, mestre em Literatura Hispânica e doutor em Estudos Americanos pela Universidade de Santiago do Chile. Atualmente, leciona na Universidade de Santiago do Chile e na Universidade Cardenal Raúl Silva Henríquez. É membro do Comitê Acadêmico Internacional da rede Corredor das Ideias do Conesul, do Grupo de Estudos Eidéticos da Universidade de Talca. De suas publicações citamos Narrativa de Vanguardia, identidad y conflicto social en la novela latinoamericana (2007) e De la escritura a la vida (1996), de poesias.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual é a pior herança da ditadura chilena de Pinochet, que durou 17 anos?
José De La Fuente -
Num mesmo plano de importância no tempo, a pior herança ficou marcada na idiossincrasia e no caráter dos chilenos, aspectos centrais de sua identidade. O século XX foi uma época de paulatina ascensão e integração do povo e das faixas médias em todas as atividades e aspirações sociais, especialmente em educação, em participação política, em partidos, sindicatos e cooperativas, na imprensa autenticamente democrática.

A prolongada ditadura baseou sua hegemonia na organização de um aparato de Estado policial permanente, convencida de seu messianismo salvífico para evitar que o Chile e a América Latina “caíssem nas mãos do comunismo soviético”.

A permanente ação policial do regime fratura a identidade cultual e política, impõe pela violência o neoliberalismo, excluindo-se o pensamento alternativo e democrático com um recorrente desprestígio da política e dos políticos.

Do medo às ideias e à autocensura, a sociedade chilena ainda não conseguiu sanar-se. Pelo contrário, os governos pós-ditadura, que administraram o país de 1990 até 2010, através do conglomerado político chamado “Concentração para a democracia”, pelas leis de amarração do pinochetismo e do império norte-americano, terminaram vergonhosamente aumentando os efeitos de iniquidade político-econômica do neoliberalismo. Foram incapazes de derrogar e modificar a Constituição de 1980, promulgada por Pinochet e, até o dia de hoje, rege o Sistema Eleitoral Binominal, que impede o governo das maiorias, favorecendo o empate político e a ideologia econômica de um capitalismo desregulado e perverso para os mais pobres.

O Chile é um dos países do mundo onde existe a pior distribuição da riqueza que provém do trabalho de seu povo e da venda de matérias primas, especialmente do subsolo e do patrimônio mineiro.

Herança grotesca
Finalmente, a ditadura deixa a grotesca herança da perseguição, do desaparecimento de pessoas, dos encarceramentos maciços e assassinatos de militantes de esquerda. Aí estão os informes testemunhais: o Informe Rettig de Verdad y Reconciliación (1991), que dá conta de 3.195 detidos e desaparecidos e o Informe Valech de la Comisión Nacional sobre Persecución Política y Tortura (2005), que consigna mais de 28 mil violentados, incluindo crianças, anciãos e mulheres grávidas.

Com efeito, todos estes fatos deram origem ao “apagão cultural” que, desde então até o dia de hoje, se traduz num sistema educativo privado com fins de lucro, que não se interessa pela reeducação cívica e, menos ainda, por democratizar os claustros universitários e onde tanto faz um governo de “direita”, de “esquerda” ou “democrata cristão”, inclusive de se viver ou não em democracia.

Todos são ideologicamente uma mesma amálgama regulada pela colusão de Reagan e Thatcher, que condicionaram as ditaduras e os intermináveis governos de transição, incluídos os socialistas, segundo o famoso “Consenso de Washington”.

A população chilena não tem um duelo pendente; segue vivendo no inferno do cinismo e da banalidade dos “operadores políticos”: os parlamentares, salvo exceções, parece carecerem de ideias próprias. Todos querem se assemelhar uns aos outros; há temor à dissidência; evitam a distinção e as diferenças ideológicas. A uniformidade militar – obediência devida? – parece que ficou para sempre incrustada em seus cérebros.

Etapas mentais
 Desde a perspectiva psicanalítica, a sociedade passou por diferentes etapas mentais; e, entre elas, a partir de 1973 entra num estado mental paranoico, no qual “o outro” é o inimigo que quer destruir-nos e, por isso, é preciso eliminá-lo.

Com a dissolução da Direção de Inteligência Nacional – DINA, passa-se a um estado mental narcisista ou maníaco, que expressa a sensação de triunfo e desprezo pelo adversário.

De 1989 em diante entra-se num estado neurótico, em que os diversos grupos se ameaçam mutuamente. E, desde 1990, a banalidade transforma os políticos numa classe decadente na qual muito poucos, especialmente os jovens, confiam. É preciso não esquecer que o modelo neoliberal, como o assinala o historiador Sergio Grez, “no Chile é um modelo que tende à fragmentação do corpo social, que não estimula a que a gente se reúna, discuta, participe, senão que propicia o individualismo, as soluções puramente pessoais e não coletivas”.


IHU On-Line - Como funcionou a anistia no Chile? Foi realizada de maneira adequada?
José De La Fuente -
As agrupações denominadas Detidos-Desaparecidos, Presos e Torturados Políticos; a Comissão Ética contra a Tortura – CECT, que funcionou durante dez anos; a Associação de Executados Políticos – AFEP, que declara mais de 1.176 execuções; algumas igrejas, organismos como a Anistia Internacional e ONGs têm mantido uma mobilização e um alerta permanente para impedir as intenções de grupos corporativos, da direita fascista e de nostálgicos pinochetistas, de perdoar sem mais os carrascos, torturadores e assassinos a soldo de Pinochet. As mulheres dos Detidos-Desaparecidos fizeram uma luta exemplar, da mesma firmeza e perseverança que o movimento de mulheres Mães da Praça de Maio da Argentina e de outros países do Cone Sul.

Em 1978, a ditadura, por meio do decreto de Lei Nº 2.191, conhecido como Lei de Anistia, pretendeu beneficiar os autores, encobridores e cúmplices dos delitos cometidos em tempos de estado de sítio. Fundamentalmente, este decreto favoreceu os esbirros da ditadura, expulsando-os do país. Posteriormente, a ditadura já se viu impedida dessas ações de encobrimento legal. Para os opositores ao regime, serão outros organismos que atenderão às petições de indultos. Porém, a maioria dos perseguidos chilenos não obteve o benefício de anistia. Pelo contrário, a injustiça e a arbitrariedade, permanentes por várias décadas, consolidou no povo chileno uma resistência ativa para opor-se ao esquecimento e consolidar em sua memória um verdadeiro tribunal de consciência social. No período da ditadura, o poder Judiciário praticamente não funcionou, atuou em conluio com o regime, negou sistematicamente o direito a defesa e o habeas corpus. Uma vez recuperada uma fração da democracia em começos de 1990, alguns juízes começam a atender às acusações contra os torturadores e assassinos.

Retorno à impunidade?
Em fins de maio de 2010, 782 ex-agentes de serviços de segurança foram processados e condenados por crimes associados a violações de direitos humanos. Entre os anos 2000 e 2010, aproximadamente 290 ex-agentes das forças de segurança de Pinochet receberam um total de 505 sentenças condenatórias por crimes associados a violações de direitos humanos. Porém, quase a metade desses agentes, 145, recebeu algum tipo de benefício, como redução de pena ou liberdade vigiada em sentenças ratificadas pela Corte Suprema de Justiça. Não obstante as vacilações e contradições com que opera o sistema judicial, o braço direito de Pinochet e principal ideólogo da política de extermínio do regime, o General Manuel Contreras Sepúlveda, chefe da DINA e da CNI – ambos organismos de inteligência –, está em prisão perpétua com condenações reais e simbólicas que somam mais de 200 anos de cárcere. Mas, o principal responsável e condutor da criminalidade política, o ditador Augusto Pinochet, morreu tendo sido julgado como ladrão, porém não condenado como organizador do crime político e do estado policial. E agora, ao cumprir-se um ano de exercício do governo de Sebastián Piñera, o qual governa com os mesmos símbolos da ditadura e com o apoio político dos partidos e burocratas que colaboraram com Pinochet, formula a possibilidade de indulto para os violadores dos direitos humanos, cuja maioria se constitui hoje em dia de anciãos e enfermos. Volta ao Chile a impunidade?

IHU On-Line - Como a sociedade chilena conseguiu “acertas as contas” com o passado ditatorial de seu país?
José De La Fuente -
A resposta é bastante complexa e tem muitas arestas. O ajuste de contas tem sido lento e protelado no tempo. A cifra de condenados, que dei na resposta anterior, vista fora de contexto e da dor acumulada por feridas que ainda não cicatrizam na geração dos sobreviventes nascidos entre 1930 a 1960, poderia ser eloquente e decisória da ação de tribunais e juízes que, muitos deles a contrapelo, assumem seu ofício tardiamente segundo o mandato e juramente jurídico-social. Este ajuste de contas se tem traduzido em não ceder nenhum espaço de impunidade aos carrascos da ditadura e a construir museus e memoriais onde fosse possível.

A juventude, dos anos 1990 em diante, assume a FUNA, que consiste numa ação pública de justiça popular, espontânea e de rápida conformação, contra aqueles que não têm sido julgados nem condenados. A FUNA é uma forma de sentenciar publicamente os esbirros. Depois de um paciente e sigiloso seguimento, os “funeiros” surpreendem o delator, cúmplice ou criminoso num lugar público (restaurante, praça, rua, estádio, bairro residencial, interior de uma igreja, etc.), rodeiam o “funado”, julgam-no e o sentenciam a viva voz.


Memoriais
Outra maneira de “acertar as contas” com o passado ditatorial tem sido a criação e fundação de memoriais pelos Detidos-Desaparecidos na maioria das cidades do Chile e mais de 14 instituições, sob um verso do poeta Mario Benedetti , que se converteu em lema: “O olvido está cheio de memória”.

Entre as instituições mais importantes figuram: o Parque pela Paz Villa Grimaldi (ex-Quartel Terranova, campo de concentração e tortura, hoje transformado num museu aberto da memória); a Fundação Victor Jará, a Fundação e Arquivo de la Vicaria (www.archivovicaria.cl); o Museu de la Memoria (www.museodelamemoria.cl), etc.

Em termos estritamente políticos, a conta não está saldada. Nenhum dos governos, a partir dos anos 1990, tem sido capaz de convocar o povo a um referendo nacional por meio de uma Assembleia Constituinte para redigir, discutir e aprovar uma nova Constituição.

A entrega da simbólica faixa presidencial que o ditador pôs no peito ao primeiro presidente do Acordo, Patrício Aylwin, se fez transacionando com o imperialismo, com a oligarquia interna, com outros poderes factuais e com a ditadura certas questões fundamentais, como: um remedo de Parlamento integrado por “notáveis”, senadores e juízes vitalícios, mantendo o modelo econômico de capitalismo desregulado; o sistema eleitoral binominal; a filosofia e administração do sistema educacional; a segurança social e a saúde transformada num grande negócio de empresários privados nacionais e transnacionais; a atomização da organização obreira e a perda do potencial negociador dos sindicatos; a desnacionalização das riquezas minerais; a desnacionalização das orlas marinhas e lacustres; a venda da água (este bem natural já não é do Estado nem do povo, pois está todo vendido a empresas privadas).

Incute-me vergonha cívica recordar que Pinochet, depois de ter sido ditador, foi Comandante em Chefe do Exército, aceito por Aylwin, e logo ingressou no Parlamento como senador vitalício. Com efeito, o ajuste de contas tem sido muito deficitário, com a balança sempre inclinada para o lado dos nostálgicos do pinochetismo, um perigo ideológico latente para as futuras gerações.


IHU On-Line - Qual é o fio condutor que une as ditaduras na América Latina? A Operação Condor esteve por trás delas?
José De La Fuente -
O fio condutor que une as ditaduras responde à reação dos grupos oligárquicos internos de cada país e aos cálculos de dominação ou de neocolonialismo do império norte-americano no contexto da Guerra Fria. Naquela época, o processo de democratização continental era evidente, envolvente e convincente.

Para eles era inaceitável que a América Latina, imbuída da filosofia para a integração econômica ideada pela CEPAL, do Pacto Andino, da Teologia da Libertação , da teoria da dependência, da ascensão crescente da revolução cubana, da nova liderança juvenil com a recuperação de sua inteligência universitária e solidária, etc., se constituísse em modelo alternativo socialista ante a decadência do capitalismo regional e que se superariam as iniquidades em outras partes do mundo subdesenvolvido.

Outro fio desta corda é a educação dos oficiais dos exércitos latino-americanos em escolas de formação norte-americanas; é a matriz ideológica e pedagógica que assegurou historicamente o poder dos endinheirados sobre a maioria de pobres e marginalizados.

E, sem dúvida alguma, a Operação Condor, que se inicia na década de 1960, é o braço clandestino da grande cruzada que organiza o fascismo latino-americano, manipulando os exércitos e as polícias nacionais, para propagar a perseguição e os tratamentos cruéis e degradantes contra os democratas que acreditavam que “esse outro mundo era possível”, com a reativação da utopia social por uma vida melhor.

A Operação Condor, denunciada pelo Prêmio Alternativo da Paz (2002), o doutor em Educação e advogado paraguaio Martín Almada, em seu livro Paraguay, la cárcel olvidada, el país del exílio, com mais de 10 edições, mais outras denúncias como o Descubrimiento de los Archivos del terror e ingreso a la Técnica, Los secretos del General, os Vestígios de um sueño y Museos de las Memórias, entrega todas as evidências de um plano secreto para o extermínio seletivo e maciço com a vênia da CIA.


Operação Condor
Em 1966 cria-se a Operação Condor unilateral; e logo, a partir de 1975, surge a Operação Condor multilateral integrada pelos governos do Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile.

Os ideólogos são Henry Kissinger , Pinochet , Hugo Bánzer , Stroessner , Videla , etc. Para estes malfeitores, os que não lhes rendem preito ou não aderem aos seus interesses são considerados “lixo social”.

Atualmente, o Plano Condor está em mãos da Conferência de Exércitos Americanos – CEA (composta por 20 países e 5 membros observadores) e o dirige das sombras o comandante em chefe do exército peruano Otto Grivovich. Pode-se inferir que esta organização não morreu com o desaparecimento de Pinochet ou de Stroessner. Pelo contrário, continua gozando da impunidade que lhe outorgam nossas “democracias representativas”, invocando o amor à pátria e o cuidado do povo.


IHU On-Line - Qual foi o interesse dos Estados Unidos em apoiar este tipo de regimes?
José De La Fuente -
Por sua parte, o interesse dos Estados Unidos em apoiar este tipo de ditaduras e de facínoras, não era outro que impedir o desabrochar da participação popular, da organização e do protagonismo da inteligência política dos povos em sua ascensão à recuperação do poder social e político.

Talvez o caso do Chile seja o mais patético: o império aborta a via democrática do socialismo “a la chilena” porque, ao avaliar o impacto de ter sido eleito um presidente como Salvador Allende no contexto de uma tradição republicana e dentro do imaginário de uma ordem burguesa, sem disparar um tiro e utilizando o mesmo aparato jurídico imposto pela burguesia, este fato qualificam-no como “um mau exemplo” para o processo de maturação da socialdemocracia latino-americana, a superação do populismo e a recuperação dos territórios nacionais como autêntica soberania econômica e autonomia política.

Esta foi a projeção e o cálculo do império a partir da década de 1970. Seus interesses imperiais começavam a ser questionados e iniciava-se a recuperação da soberania dos distintos países da região. Alguns países europeus, inclusive, viam com bons olhos a experiência chilena. Em outros termos, faz tempo que cheguei à convicção de que os Estados Unidos jamais aceitariam que países do terceiro mundo alcançassem e concretizassem estágios de desenvolvimento cívico e político humanizadores, inclusive a caminho da plenitude democrática e da distribuição dos bens, com autêntica justiça e ética social. Jamais poderia render-se à evidência de que a curto prazo terminariam superando-o e invalidando seu decadente e obsoleto modelo civilizador, depredador da natureza e das identidades culturais.

A atual crise interna dos Estados Unidos, seu alto endividamento, o desmoronamento de sua imagem como país de “imprensa livre” por dentro e de gendarme do mundo para fora, o mais contaminador do planeta, o país que desclassifica documentos secretos a cada 40 anos sobre as malfeitorias cometidas por seus governantes submetidos à inteligência militar em distintas partes do mundo, o qual pretende instalar a ideologia de “a guerra de civilizações” e outros fatores que seria longo enumerar, demonstrou que em suas entranhas se iniciou um lento e irreversível processo de decadência moral e de sustento emancipador. Que porcentagem de cidadãos norte-americanos crê, hoje em dia, na vigência interna da frase de Abraham Lincoln  que lutou, entre 1861 e 1865, pela “democracia do povo, para o povo e com o povo”?


IHU On-Line - Quais eram as relações entre o Chile e o Brasil na época da ditadura de Pinochet?
José De La Fuente -
Finalmente, as relações entre o Chile e o Brasil durante o período de Pinochet foram bastante naturais e fluidas pela afinidade ideológica e formação comum que existia entre os oficiais e marechais de ambos os exércitos, a oligarquia e a ingerência do imperialismo norte-americano em ambos os países, com a diferença e vantagem de o Brasil haver iniciado seu exercício ditatorial a partir de 1964, prolongando-se até 1985.

Com o golpe que depôs Goulart, oficiais chilenos como Pinochet aprenderam cedo a lição de como manipular a ideologia populista, aplicando prolongados estados de exceção, censurando a imprensa e reprimindo os jornalistas e os partidos políticos. Penso que a repartição do poder em frações temporais entre cinco marechais e generais brasileiros, desde Castelo Branco até João Batista Figueiredo, não serviu à ditadura chilena devido às diferenças entre os processos históricos e à resistência revolucionária que obrigou o braço armado da oligarquia chilena a reajustar o discurso jurídico e as “leis de amarração” para preparar, contra sua vontade, uma saída menos desonrosa para a transição pós-ditatorial.

Pinochet se adiantou em impor uma nova Constituição em 1980, enquanto o Brasil vai experimentando uma lenta maturação política e espera até “a nova república”, que começa em 1988, para aprovar democraticamente a Constituição Federal. Os Generais Garrastazu Médici, Geisel e Batista Figueiredo sem dúvida orientaram Pinochet e o ajudaram com a Operação Condor e no preparo de torturadores.

Por outra parte, recordo que o Golpe de Estado no Chile se iniciou com uma “Junta Militar de Governo”. Durante o segundo semestre de 1973 e até abril de 1974, Pinochet só presidia essa Junta, eram os três comandantes em chefe (Marinha, Aeronáutica e Exército), mais o diretor geral da Polícia de Carabineiros, os que começam governando e decidindo em uníssono. Logo se soube que, entre eles, se teria chegado a um acordo para nomear um presidente que iria se alternando no tempo, porém Pinochet deu, após poucos anos, um golpe interno, eliminou do cargo o general da Aeronáutica, destituiu todos os generais da Força Aérea, a qual foi sitiada pelo Exército, enquanto Pinochet se autoproclama presidente da República e capitão geral de todos os níveis e soldados do Exército.

 A Força Aérea é o único ramo do Exército chileno que tem uma tradição curiosa: em 1931, a mando do General Marmaduque Grove, deu um golpe populista de esquerda e estabeleceu por cem dias a chamada “República socialista”. E é curioso e quase mágico recordar que várias leis se ditaram naqueles dias e que nunca se derrogaram nem aplicaram, e as utilizou Salvador Allende para expropriar e reordenar a favor do povo aspectos da economia e do comércio. Esta tradição civilista é a que permanecia de algum modo na consciência social de aviadores como o General Alberto Bachelet, pai da ex-presidente Michelle Bachelet, que morreu no cárcere e foi torturado por seus próprios companheiros de armas.

Recordo também que até 1975, aos presos políticos chilenos se começou a torturar com o suplício do “pau-de-arara”, nome de fantasia que nesse momento se dava ao produto de exportação não tradicional do militarismo brasileiro para atormentar os presos, pendurando-os numa árvore com um pau atravessado entre suas pernas e com a cabeça pendendo para o solo.

Todas as ditaduras são do mesmo jaez; 
sua identidade reside em seus delírios de grandeza, 
na exclusão, na fobia à diversidade, 
em crerem-se possuidoras da verdade absoluta. 
Sua maquinaria de poder se alimenta do medo e da banalidade dos súditos que as representam e as justificam.


IHU On-Line - Em termos de redemocratização, o que significou a presidência de Michele Bachelet, filha de um ativista torturado e morto pelo regime de Pinochet?
José De La Fuente -
Em primeiro lugar, devo esclarecer que o pai de Bachelet não foi um ativista político na acepção que esta palavra tem na gíria política chilena (militante de um partido político dedicado ao proselitismo e às atividades cotidianas de propaganda, com capacidade de organizar ações de rua e células de reflexão para integrar novos aderentes à causa).

O general Bachelet foi um militar republicano com especial sensibilidade e consciência social madura, homem culto e com sentido de justiça. Foi um colaborador de Salvador Allende nos momentos mais críticos de seu governo, quando a direita sabotava a produção e importação de alimentos; o general organizou a distribuição dos escassos produtos que permaneciam no mercado para colocá-los ao alcance da população.

Em termos de redemocratização do país, o governo de Michele Bachelet não agregou nada substancial ao que vinham fazendo os governos precedentes de Patrício Aylwin, Eduardo Frei e Ricardo Lagos. Com a presença de Bachelet se chegou à Festa do Bicentenário da República, com um discurso democrático bastante contraditório. A direita nunca abandonou sua nostalgia pela “democracia protegida, autoritária, integradora, tecnicizada” etc. A continuidade das políticas de Bachelet esteve baseada na ideia de governar “na medida do possível”, frase cunhada por Aylwin em 1990 e que justificaria qualquer freio ou negociação com a direita, para dar passos que aprofundassem e ampliassem os espaços de poder popular.

“Na medida do possível” justificou todo tipo de transações com a direita, com os militares, os comerciantes, a Igreja Católica e grupos corporativos transnacionais. Sob este lema, a política se reduz à falácia de uma prática intermediária entre o Estado e a sociedade civil, e a consistência da democracia se reduz a uma “boa comunicação” entre esse Estado e as massas.


Democracia restringida
 O governo de Bachelet foi o exercício de uma democracia restringida e obediente às decisões do Banco Mundial, o qual sempre assegura o retorno dos capitais que promove ou os empréstimos aos governos, vigiando a situação interna de cada país, para assegurar-se a devolução.

O investigador Grinor Rojo sustenta quatro teses sobre a falta de correspondência entre os ideais do modelo da democracia moderna e a realidade chilena que culmina com os governos do acordo e com o de Bachelet.

O fim da ditadura não significou um reencontro dos chilenos com os ideais democráticos socialistas que a presidente declarava. Bachelet não pôde mudar os enclaves ditatoriais como o Sistema Eleitoral Binominal, substituir a Constituição deixada pelo ditador e o modelo econômico neoliberal e reivindicar os direitos ancestrais da nacionalidade mapuche.

Depois de Pinochet, nenhum dos governos do Acordo, incluindo o de Bachelet, conseguiu levantar uma Assembleia Constituinte na qual se expressasse em plenitude a vontade popular. Os desmandos do capitalismo não foram minorados, porque em termos de coesão social o princípio ético da igualdade não teve lugar. E o princípio de fraternidade, que influi na reconstrução da identidade nacional sobre a base de nosso “ser com o outro”, nunca foi real e com Bachelet tampouco se pôde restituir em sua dimensão mítica ou real.

Bachelet também nada fez para subtrair o poder econômico às Forças Armadas, as quais seguem acumulando 10% das entradas brutas do cobre que produz o Estado chileno. São somas siderais dentro de um sistema econômico que é o menos equitativo e com a pior distribuição de ingresso per capita do mundo.

Se estes 10 milhões ou mais de dólares estivessem somente em parte destinados à precária (e em vias de extinção) educação pública nacional, o Chile disporia de um pressuposto milionário e em menos de dez anos poder-se-ia recuperar o direito de educação gratuita e de qualidade para todas as crianças do Chile.


Discriminação feminina
 Uma das fortalezas da administração de Bachelet foi o capital simbólico que se acumulou no imaginário nacional a favor da reivindicação dos direitos da mulher, de seu protagonismo e inteligência em termos de paridade de gênero e responsabilidade política.

Outra fortaleza foi deixar instalada a proteção à infância e à velhice, com políticas sociais de apoio à saúde e numerosos subsídios às famílias mais pobres. Sem embargo, apesar do grande esforço por reivindicar os direitos da mulher numa sociedade tão machista, retalhadora e feminicida como a chilena, a mulher profissional continua discriminada porque o sistema de emprego, em igual nível profissional e em exigências laborais, a considera e lhe paga na média uns 30% menos do que aos homens. No único setor em que isto quase não ocorre é no magistério nacional.

A presidente soube controlar a brutalidade das forças da ordem pública, permitiu manifestar-se com inteira liberdade pelas ruas, embora o movimento estudantil começasse a ser reprimido a partir de 2006, quando se inicia o protesto dos estudantes de educação básica e média (movimento “pinguino”), o qual mobilizou todo o país e que nos anos seguintes mobilizaria o mundo universitário por uma reforma educacional integral.

Se Bachelet, o Acordo (a Concertación) e seu partido socialista tivessem realmente apoiado o movimento estudantil, teria passado à história restituindo a almejada consigna que acunhou, em 1938, o governo de Pedro Aguirre Cerda: “Governar é educar”.

Pelo contrário, em nível de governo, o movimento “pinguino” terminou envolvido em acordos com a direita e hoje, praticamente, do ponto de vista financeiro e custos transferidos às famílias e aos jovens, não existe educação pública nacional. A escassa porcentagem que permanece de escolas públicas está em franca agonia e com um claro desprezo por um punhado de mestres que nelas se desempenham heroicamente. Nos liceus, as disciplinas mais minoradas ou quase inexistentes são a filosofia, a educação cívica e, no segundo semestre de 2009, o governo de Piñera tentou reduzir em uns 25% os períodos curriculares do ensino da história.


Manejo midiático
 Com efeito, ao manejo midiático e comunicacional, Michelle Bachelet soube conjugar muito bem sua simpatia pessoal, sua formação ideológica e militância socialista, suas qualidades intelectuais, o fato de ter estado aprisionada por Pinochet num dos campos de concentração e tortura da época (Villa Grimaldi ou quartel Terranova) e ser filha de um general democrático que teve presença ativa no governo de Salvador Allende.

Por estas características, a ex-presidente deixou o governo, segundo pesquisas, com aproximadamente 80% de reconhecimento e gratidão dos chilenos, o que não pode ser confundido com os reais aportes à redemocratização estrutural da sociedade chilena. Sem dúvida, o apreço popular à sua pessoa é um tema digno de ser estudado em perspectiva histórica, existencial e até religiosa. Sua presença, perseverança e capacidade de entrega em favor dos mais desprotegidos continuará despertando simpatias em todos os setores, qualidades, por certo, da maioria das mulheres chilenas.

Se por redemocratizar entendemos uma recuperação paulatina de participação e gestão direta do povo nas decisões políticas, com mudanças reais na estrutura da sociedade classista chilena, no poder Judiciário, na mudança curricular para a formação dos quadros das Forças Armadas, com imprensa alternativa e pluralista que retomasse os caudais do pensamento e a reflexão encaminhada para a trilha da utopia pós-capitalista, o governo de Bachelet interveio somente com ações cosméticas, sempre ajustadas à prédica dos bispos do neoliberalismo, entre eles Milton Friedman, Ronald Reagan, Margaret Thatcher, etc.

O carisma pessoal de Michelle Bachelet não teve nenhuma incidência no interior do partido socialista e tampouco influiu ideologicamente para corrigir o rumo equivocado do conglomerado político que a apoiou.


Obama reedita J. Kennedy?Quando já concluíamos esta entrevista, chega ao território nacional a visita anunciada do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Sua entrada triunfal me fez imaginar como teriam sido, naquelas épocas, as viagens dos antigos reis e imperadores aos lugares onde tinham repartidos os súditos e lacaios ao seu serviço. Com a mesma parafernália de defesa, rodeados de um exército privado, substituindo hoje em dia os cavalos por limusines blindadas, os helicópteros voando em bando e rodeados por aviões de combate?

A que veio a El Salvador, ao Brasil e ao Chile?
Reedita-se, com os matizes próprios dos novos tempos, a visão de John Kennedy, quando, aos 13 de março de 1961, em discurso pronunciado na Casa Branca, ante os embaixadores da América Latina, lança seu Programa de Aliança para o Progresso, no qual marca as linhas do que seria a relação entre os Estados Unidos e a América Latina.

Naquela oportunidade, Kennedy disse: “Reunimo-nos aqui como firmes e velhos amigos, unidos pela história e pela experiência e por nossa determinação de fazer avançar os valores da civilização americana, porque este nosso novo mundo não é um mero acidente da geografia”.

Quatro meses depois, na cidade uruguaia de Punta del Este, este novo tratado foi firmado no seio do Conselho Interamericano Econômico e Social da OEA. E o que sucedeu 10 anos depois do anúncio desta aliança? Tentou-se a destruição de Cuba, assumiram o poder as ditaduras no Cone Sul e se pôs em marcha a Operação Condor com a intervenção direta da CIA.

O discurso que Obama pronunciou no dia 22 de março de 2011, para todas as Américas, no Centro Cultural do Palácio de Governo do Chile, fundamentou-se no conceito de “aliança igualitária”, anunciando planos de cooperação energética, segurança cidadã, crescimento econômico e desenvolvimento, democracia e direitos humanos.

Obama elogia o modelo econômico chileno, sua exitosa transição da ditadura à democracia e o que promete são vagas intenções de memórias, cartas e ideias gerais para a cooperação científica e o desenvolvimento cultural.

Omitiu uma agenda de trabalho e tratou de distanciar-se do discurso de Kennedy, evitando declarar montantes de ajuda em dinheiro e anos de duração para esta “nova era de cooperação”.

Quando um jornalista lhe pergunta se devia mostrar colaboração em casos emblemáticos ocorridos no Chile, como a morte de Salvador Allende e de Eduardo Frei Montalva e se se mostraria disposto a pedir perdão pela participação da CIA e do governo de seu país durante a ditadura militar de Pinochet, respondeu:

“Qualquer solicitude que se faça a partir do Chile para obter mais informação do passado é algo que certamente consideraremos e gostaríamos de cooperar (...). Devemos aprender de nossa história e entender nossa história, porém não nos sentir atropelados pela história, porque temos hoje muitos desafios para o futuro, nos quais devemos concentrar atenção”.

O presidente Sebastian Piñera, anfitrião de Barack Obama, ao termo da cerimônia alçou a taça e brindou como sócio dos Estados Unidos, os quais disse apreciar com carinho e admiração.

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