terça-feira, 17 de maio de 2011

Na trilha das religiosas francesas mortas pela ditadura militar argentina

13/5/2011

unisinos

Nesta sexta-feira, o advogado Horacio Méndez Carrera apresentará sua defesa no processo sobre a ESMA. Contará os dados aportados pelo processo oral. A reconstrução dos sequestros e do cativeiro no centro clandestino e a relação das freiras francesas com as Ligas Agrárias e o bispo Novak.

A reportagem é de Alejandra Dandan e está publicada no jornal Página/12, 12-05-2011. A tradução é do Cepat.

Horacio Méndez Carrera disse que há 25 anos lhe pediram três coisas: que identificasse a forma como desapareceram as freiras francesas; que encontrasse os autores e uma maneira de condená-los. Também disse que, se na época tivessem lhe dito que transcorreriam 25 anos até a condenação, aqueles que o encarregaram pela busca ainda estariam procurando advogados.

Hoje, finalmente, fará a reconstrução, em uma alegação – na audiência que julga os crimes da ESMA –, da história de Léonie Duquet e Alice Domon. Ele é responsável por recolher os novos elementos que sobre essa história trouxeram o histórico julgamento oral que se aproxima da etapa final e no qual pela primeira vez os testemunhos reconstruíram não apenas o sofrimento das religiosas no centro de extermínio, mas também porque se converteram no alvo dos grupos de tarefa.

“Continua a se dizer que as duas religiosas foram sequestradas pela solicitada e eu estou seguro de que não foi bem assim”, disse Méndez Carrera sobre o trabalho de coleta do dinheiro que levou adiante o grupo de familiares de desaparecidos da Igreja da Santa Cruz para publicar a primeira solicitada com a lista de desaparecidos.

Para o advogado, a razão pelo desaparecimento das freiras remonta a Perugorría, povoado de Corrientes onde Alice Domon começou a trabalhar com as Ligas Agrárias. Alice depois se mudou para Buenos Aires, onde se vinculou à diocese de Quilmes para buscar, no começo, os desaparecidos de Corrientes. Aí começou a atender as vítimas, os familiares, os mais pobres dos pobres, a “criar grupinhos”, disse Méndez Carrera, e enviá-los à “casinha” que Léonie tinha em Ramos Mejía. “Para a Marinha essa casinha de Léonie era um ‘aguantadero’: o lugar onde elas davam de comer aos mais pobres e davam algum dinheiro”.

As alegações da ESMA começaram na semana passada com a reconstrução do que aconteceu com o grupo das doze vítimas da Igreja de Santa Cruz, sequestradas nos dias 8 e 10 de dezembro de 1977, às vésperas da publicação da solicitada.  

Méndez Carrera e Luiz Zamora completarão hoje [ontem] essa alegação, aprofundando em quatro vítimas, entre elas, as duas religiosas francesas da Ordem das Missões Estrangeiras.

No transcurso dos 16 meses de audiências, diferentes testemunhos permitiram reconstruir a vida delas. Declararam irmãos, familiares, religiosas e também militantes de Corrientes. Esses testemunhos – muitos dos quais não foram ouvidos no Juízo das Juntas, primeiro momento em que esses crimes foram julgados para condenar somente os chefes militares – iluminaram o dia a dia das duas.

O de Alice, dona da história talvez mais conhecida, e de Léonie, que, por exemplo, no dia do sequestro deixou em cima da mesa de sua casa o dinheiro equivalente a uma passagem de avião para a França. Um dinheiro que os marinheiros não tocaram porque – segundo a hipótese – não deviam despertar suspeitas no bairro: Léonie tinha que percorrer 15 metros entre a porta de sua casa e a rua, e se alguém se desse conta de que a estavam sequestrando nesse trajeto poderia colocar em alerta os vizinhos, que a conheciam muito bem, em um bairro em que já estava há sete anos.


A história
Alice trabalhou com as Ligas até março de 1977. “As Ligas Agrárias eram um movimento muito importante em uma Argentina feudal – disse Méndez Carrera –, onde havia os barões do tabaco que exploravam os pobres fumicultores de uma forma infame, os matavam de fome, e toda essa economia se fazia com uma produção muito artesanal, onde quem não tinha trator recorria ao arado a mão, havia fome e a situação era espantosa porque as crianças adoeciam e morriam, não de fome, mas devido às doenças”.

Durante sua permanência em Perugorría, Alice viajou para a França para um encontro da congregação. O capítulo aconteceu em 1975, e nesse momento pediu ser desligada dos votos da congregação. Méndez Carrera se deteve bastante neste dado durante a entrevista com Página/12 porque – na sua hipótese – é um dado que os marinheiros usaram para secularizá-las, para tirar-lhes a estampa de religiosas e mencioná-las como “mulheres” e fazê-las entrar, de alguma maneira, no grupo dos inimigos a serem exterminados.

O que ele defende sobre esse momento, e procurou demonstrar durante o julgamento, é que apesar da renúncia, elas não deixaram de ser freiras. Que na França houve um cisma dentro da congregação, que com elas renunciaram outras 15 religiosas e que quando Alice retornou, se instalou no mesmo lugar de Perugorría onde estava e manteve encontros regulares com a superiora da sua congregação.

“Perugorría era o coração da congregação – disse o advogado. Tanto é assim que quando a superiora vinha passava um mês aí, se instalava com elas, olhava tudo”.

Nesse povoado, Alice continuou o compromisso de seu primeiro tempo em Buenos Aires. Ela era especialista em catequese para pessoas com necessidades especiais.

Quando voltou da França, trabalhou na diocese de Morón, onde atendeu ao filho deficiente do repressor Jorge Videla. “O carisma destas mulheres as levava a viver como os mais desamparados – continua Méndez Carrera.

Antes de ir para Perugorría, ela esteve em Villa Lugano cinco anos e se instalou perto do lixão, no lugar mais próximo ao lixão, porque aí estavam as famílias mais desamparadas, aquelas que viviam e comiam o lixo”.

Em março de 1977, a ditadura havia matado um integrante das Ligas, havia feito desaparecer outros, havia sequestrado e outros estavam às vésperas de sê-lo também. “Ou seja, que foi um desastre – disse o advogado. E nesse marco, dizem a ela que caso não saísse, continuariam a desaparecer famílias; é por isso que ela vem para Buenos Aires para tratar de ajudar famílias de lá, que estavam desaparecidas e procurar a liberdade dos outros e é assim que se vincula com Novak”.

O bispo Jorge Novak, de Quilmes, tinha um escritório de Justiça e Paz. Caty, apelido de Alice, “ouvia e tomava nota de todas as pessoas com filhos desaparecidos e não apenas isso, mas oferecia ajuda: afora o apoio espiritual havia o apoio material que era tratar de oferecer o sustento para viver. Elas lhes davam dinheiro e as acompanhavam a fazer os despachos para saber o que havia acontecido com essas pessoas”.

Um dos testemunhos que assinalaram para essa hipótese no juízo foi o da superiora provincial Evelina Irma Lamartine: duas vezes mencionou a palavra “conexão” entre Alice e Léonie, e Méndez Carrera garante que só então compreendeu o fio condutor de suas histórias, deixou de se perguntar pelo compromisso político mais orgânico e entender o que agora define como o “carisma” das duas.

Lamartine disse que havia uma conexão com a casinha de Léonie – explica Méndez Carrera. Caty levava esses grupos a Léonie, aí os alimentavam, porque havia um problema de fome, além disso. Na casa de Léonie faziam uma espécie de parada, se organizavam. Alice preparava recursos de habeas corpus no bispado e acompanhava as pessoas para fazer as apresentações ou o que quer que fosse. Então, essa conexão que havia entre Léonie e Alice era muito estreita. Alice foi morar com Léonie seis meses antes de serem sequestradas, moravam juntas e se queriam profundamente”.

Léonie morava em uma casa com telhado de placas, ao lado de uma capela de Ramos Mejía. Ajudava o padre nas missas, coordenava a catequese, e era fundamental no bairro.

Alice foi sequestrada no dia 8 de dezembro na igreja Santa Cruz. Evelina disse a Léonie nesse momento que fosse embora. As três há tinham sido presas tempo antes em uma das batidas na Praça de Maio. Com elas havia estado também outra das companheiras, Ivonne Pierron, que depois saiu do país em um avião da Embaixada da França. Léonie disse que não, que não sairia, convencida de que Alice seria solta. E ficaria à sua espera. No sábado seguinte, no dia 10 de dezembro, no mesmo dia em que sequestravam Azucena Villaflor em Avellaneda, também ela foi sequestrada.


A ESMA
O Tigre Acosta era o chefe de inteligência da ESMA. Ou nas palavras de uma das testemunhas, “o diretor executivo”. Nas últimas audiências falou e depois de horas, mencionou as freiras, mas não as chamou de freiras, mas “mulheres”.

Disse que a ESMA esteve fechada durante a semana do sequestro. E mesmo que tenha admitido a infiltração de Alfredo Astiz e também a sua, tentou dizer que esse sequestro não foi da ESMA, mas de outros.

Que ele, no dia 10 de dezembro, estava soprando as velas de aniversário de sua filha em Puerto Belgrano. “Uma mentira – disse o advogado –, uma paródia. Todos os dados que recolhemos servem para dizer que esse cara não esteve em Puerto Belgrano, mas em Buenos Aires e se tivesse estado lá, assim mesmo seria responsável. Inventam qualquer coisa para se justificar, porque é a primeira vez que sentam no banco dos réus com uma sentença pronta para cair sobre suas cabeças, por homicídio a prisão perpétua, por fatos gravíssimos, cometidos contra um grupo de civis indefesos, mas curiosamente este grupo de civis indefesos que, com seus lenços brancos, os derrotou, porque se estes senhores estão sentados aí é devido ao espírito de luta inquebrantável de todas estas mulheres”.


O que se sabe hoje sobre o sequestro de Léonie?
Quatro pessoas participaram do sequestro. Entre elas, o Loco Suárez. Havia sido tenente da Marinha, trabalhava em uma empresa multinacional, trabalhou na Ford e na Coca-Cola em Córdoba. Era amante do rugby e da caça. Aos sábados e domingos se dedicava a ir à ESMA para participar de operações especiais. E o Loco Suárez é o fio condutor que nos permitiu chegar perfeitamente à ESMA, porque não era bombeiro, não era do Exército: aos sábados e domingos estava aí, porque o cara fazia isso por esporte: assim como caçava elefantes na África, saía para caçar freiras aqui, é a mesma coisa.


Qual é a reconstrução do que aconteceu com elas na ESMA?
Fizeram dois percursos diferentes: Caty esteve no sótão. Léonie em Capuchita, desde o sábado, dia 10, até o domingo esteve bem. Uma das testemunhas a vê rezando e dizendo: “Creio que a minha irmã também está aqui”. Cometeram a crueldade de separá-las, ainda que as juntaram para a fotografia.

As duas sofrem torturas.
Uma testemunha, Graciela García, contou que quando aplicaram uma injeção na vagina dela teve uma grande infecção, quer dizer que era comum injetar as mulheres nessa zona e assim é que depois veem Alice sem poder caminhar.

Ou seja, que as destroçaram na seringa, afora que arrebentaram sua boca, o olho, deixaram manchas em todo o rosto, nos braços, porque batiam nelas e elas tentavam se proteger, por isso estavam com os braços roxos.

Pelas datas que Acosta deu, e os dados da causa, supõe-se que foram incluídas poucos dias depois no voo da morte de 14 de dezembro, em um avião pilotado pelos pilotos presos na terça-feira.

Também se sabe que na ESMA Caty esteve separada de Azucena. Mas que as duas, do mesmo modo, perguntavam a todos os que viam pela mesma coisa: “qual é o seu nome”. Pediam-lhes os dados convencidas de que sairiam. Alice, além disso, perguntou uma e outra vez pelo rapaz ruivo, convencida de que entre os sequestrados estava também Astiz.

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