terça-feira, 10 de maio de 2011

Entidade militar vigia documentos oficiais da ditadura

http://www.oab-rj.org.br/index.jsp?conteudo=13105

Da revista Carta Capital

16/08/2010 -

Iniciada nos anos 1980, ainda na ditadura, a luta pela liberação dos arquivos e documentos secretos produzidos pelos órgãos de repressão parecia ter chegado a um termo definitivo em 13 de maio de 2009, justamente pelas mãos de Dilma Rousseff, candidata do PT à Presidência. Presa e torturada, a ex-ministra da Casa Civil foi a responsável pela criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, no ano passado. Chamado de Projeto Memórias Reveladas, visava reunir num único sistema todos os documentos da ditadura para facilitar a abertura de arquivos a pesquisadores e familiares de desaparecidos políticos. Ótima ideia, não fosse a qualidade dos guardiões escolhidos para a missão.

Para cuidar da operação, foi designado o Arquivo Nacional, cuja sede no Rio de Janeiro abriga boa parte da memória pública do País.

Aparentemente, uma solução ideal, pelas próprias características do órgão. O problema é que não são eles, mas uma turma da pesada, formada na linha de frente doutrinária dos governos da ditadura, que se tornou, paradoxalmente, depositária desses documentos. Tudo por meio de uma entidade de nome singelo: Associação Cultural do Arquivo Nacional (Acan).

Trata-se de uma agremiação recheada de remanescentes do regime, inclusive generais e coronéis, além de uma maioria de civis formados na Escola Superior de Guerra (ESG) ou filiados ao Rotary Club e à Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Formalmente, a Acan é uma sociedade civil sem fins lucrativos, criada para apoiar o Arquivo Nacional "no desenvolvimento de projetos culturais e na dinamização de atividades técnicas, por meio da captação de recursos".

Ou seja, é por ela que passa todo o dinheiro dos projetos levados a cabo pelo órgão, vinculado, desde 2002, à Casa Civil. Isso inclui de exposição de fotos à reforma do conjunto arquitetônico da sede do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, onde antes funcionava a Casa da Moeda. A obra, de 28 milhões de reais, foi supervisionada pela Acan na gestão de um de seus idealizadores, o general Rubens Bayma Denys, com o apoio da Fundação Ricardo Franco, do Instituto Militar de Engenharia (IME), entre 2002 e 2004.

O grupo de militares e civis oriundos da ESG encastelados na Acan, fundada em 1987, está na base de apoio do diretor-geral do Arquivo Nacional, Jaime Antunes da Silva, no cargo desde 1992. Silva foi nomeado pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello, em junho daquele ano, mas sobreviveu no cargo a outros três presidentes, Itamar Franco, FHC e Lula. Funcionário de carreira, ele está no arquivo desde 1965. Em 2010, dispôs de um orçamento de 60,5 milhões de reais, mas gastou tudo para pagar pessoal (45 milhões) e o custeio (15,5 milhões).
 
É aí que entra a Acan. O grupo costuma captar os recursos usados nos projetos do Arquivo Nacional a partir de estatais, ou seja, com o aval do governo federal. Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, Petrobras e Eletrobrás são financiadores recorrentes do mecenato comandado pela Acan. Foi assim na reforma do prédio da Casa da Moeda, é assim na construção do sistema do Projeto Memórias Reveladas, orçado em 2,1 milhões de reais.

De acordo com Silva, a autonomia da Acan é quase total. A entidade não precisa repassar os recursos ao Arquivo Nacional e está autorizada a contratar pessoal, comprar equipamentos e, claro, ter acesso irrestrito às informações fornecidas por bancos de dados de antigos centros de repressão da ditadura, como as Delegacias de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Espírito Santo, até agora. Silva, contudo, não vê problema. "Quem construiu esse perfil foi o general Bayma Denys. Ele esteve muito tempo à frente da associação e compôs seus quadros desse jeito."

A presença de militares e civis ligados à ditadura e à ESG, segundo ele, não causa nenhum constrangimento ao órgão, nem afeta a credibilidade do trabalho. "Isso (o perfil da Acan) não causa nenhum óbice de censura", discorre Silva, em linguagem típica da caserna. "Todos estão no espírito dos interesses da instituição".

Integrante do "conselho de notáveis" da Acan, Bayma Denys, de 81 anos, foi um dos fundadores da entidade e é a eminência parda por trás do atual presidente da associação, o bacharel em Relações Públicas Lício Ramos de Araújo. O general tem uma longa e sintonizada história com a ditadura. Foi um dos fundadores do antigo Serviço Federal de Informação e Contrainformação (Sfici), ainda como capitão do Exército, embrião do Serviço Nacional de Informações (SNI), responsável por produzir e centralizar a papelada da ditadura que hoje continua sob as asas de seus seguidores na Acan. Em 1998, presidiu a Fundação Ricardo Franco, do IME, a parceira de captação de dinheiro da associação. Entre 1985 e 1990, chefiou o Gabinete Militar do então presidente José Sarney.

O general mora no Rio de Janeiro e não gosta de falar sobre o assunto. Irritado, minimiza sua influência na Acan e afirma, inclusive, nem mais frequentar a associação. Sobre o perfil conservador e militarizado da entidade, imputado a ele pelo diretor do Arquivo Nacional, ele se esquiva. "Não acho que o caminho seja esse. O perfil não foi montado nessa intenção, é só uma absoluta coincidência". Em rápida entrevista por telefone, negou ter indicado como sucessor o atual presidente, Lício de Araújo. Isso apesar de Araújo ter agradecido a indicação do general no discurso de posse, em janeiro de 2006.

Também integra os quadros dos guardiões da Acan o general Pedro Luiz de Araújo Braga, eleito este ano para o conselho deliberativo do Clube Militar, derradeiro reduto das viúvas da ditadura, sediado no Rio.

Formando da turma de 1966 da ESG, o general Braga costuma dar palestras aos confrades do Clube Militar com críticas duras ao revisionismo histórico da esquerda, sobretudo a discussão relativa à Lei de Anistia, de 1979, responsável pela impunidade dos torturadores da ditadura. Na entidade, divide as funções com o general Luiz Cesário da Silveira Filho, elevado a ídolo da extrema-direita nacional ao se despedir, no ano passado, do Comando Militar do Leste, comum discurso cheio de loas ao golpe de 1964.

Membro do conselho consultivo da Acan, o coronel do Exército Alfredo Sebastião Seixas, aluno da turma de 1985 da ESG, também ocupou posição no conselho deliberativo do Clube Militar na inesquecível gestão do general Gilberto Barbosa de Figueiredo.

Em 7 de agosto de 2008, diante de uma plateia onde brilhou, como homenageado, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o torturador mais famoso do Brasil, o general Figueiredo patrocinou uma alucinante viagem retórica de 133 minutos contra a revisão da Lei da Anistia. Em esquema de revezamento, palestrantes civis e militares, todos com passagem pela ESG, protagonizaram, aos berros e sob aplausos, cenas dignas de hospício.

O presidente da Acan, Lício de Araújo, apresentado como "consultor de comunicação empresarial", foi aluno da turma de 1998 da ESG. Por isso mesmo, integrou o conselho superior da Associação dos Diplomados da ESG (Adesg), entidade que congrega todos os ex-alunos da escola. A Adesg, aliás, é outra figurinha fácil no álbum da Acan. A vice-presidente do conselho fiscal da entidade, Marijane Tavares (aluna da turma de 1986 da ESG), é diretora executiva da Adesg, entidade explicitamente de direita e ultraconservadora.

Dos sete ex-presidentes da Acan, dois são generais - Hermano Lomba Santoro e Bayma Denys - e três foram alunos da ESG e, posteriormente, presidentes da Adesg: Airton Young (ESG-1975), Santoro (ESG-1975) e Theophilo Azeredo Santos (ESG-1965). Este último presidiu a Adesg em 1970, durante o governo do ditador Emílio Garrastazu Medici, o mais sanguinário general do ciclo militar.

Outro oficial-general metido nos quadros da Acan é o brigadeiro Mauro Gandra, ministro da Aeronáutica do governo Fernando Henrique Cardoso na época do chamado "escândalo do Sivam", esquema de superfaturamento e tráfico de influência na compra de equipamentos para o Sistema de Vigilância da Amazónia. Gandra, aluno da turma de 1986 da ESG, é presidente do Conselho Consultivo da entidade, na companhia de vários colegas ilustres como o ex-ministro da Fazenda Marcílio Marques Moreira e os desembargadores aposentados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro José Carlos Murta Ribeiro (ESG-1980), José Lisboa Malcher (ESG-1972) e Sylvio Capanema de Souza (ESG-1977).

Ao permitir o acesso a documentos da ditadura (até abril de 2010,16,5 milhões páginas de textos) a grupos historicamente ligados à defesa do regime, o governo federal colocou sob risco a operação de implantação do Projeto Memórias Reveladas.

Nos bastidores, servidores do Arquivo Nacional, pesquisadores e familiares de desaparecidos políticos começaram a levantar pistas sobre a possibilidade de destruição de arquivos. O primeiro aviso veio em junho passado, quando se revelou o estado deplorável das instalações do Arquivo Nacional em Brasília. Lá, descobriu-se cerca de 35 milhões de folhas de documentos da ditadura armazenadas em lonas e sacos de lixo, sob goteiras e infiltrações, e também sob iminente risco de incêndio.

 Esses arquivos são, talvez, os mais preciosos levantados até aqui, porque faziam parte do acervo do antigo SNI e estavam abrigados, até dezembro de 2005, nas dependências da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Quando a papelada foi transferida, a Acan estava sob direção de Bayma Denys. O diretor Silva reconhece os problemas de infraestrutura do prédio, mas afirma que a notícia foi superdimensionada. Atribui a informação a grupos de funcionários ligados à Associação dos Servidores do Arquivo Nacional (Assan), com quem vive às turras desde a greve de 2008.

Na ocasião, Silva chamou a Polícia Militar para desmanchar piquetes em frente à instituição e, em seguida, cortou o ponto dos grevistas.

Há outro dado curioso sobre o diretor-geral do Arquivo Nacional, que o coloca numa posição explicitamente antagônica aos interessados no acesso aos documentos. Em maio passado, participou, em San José, na Costa Rica, da comitiva de testemunhas do Estado brasileiro contra os familiares dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970. Lá fica a sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), onde o Brasil está sendo julgado por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de dezenas de pessoas em operações do Exército. O anúncio da sentença está previsto para novembro.

"O fato é que não existe vontade política do governo federal para que esses arquivos sejam efetivamente abertos", denuncia Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. À frente de outras entidades, o grupo de Cecília Coimbra se negou a avalizar o Projeto Memórias Reveladas. "É uma cortina de fumaça para encobrir o desinteresse que sempre se teve, desde a transição, em 1985, de se mexer nesses documentos. Essa história da Acan só reforça as nossas desconfianças". ?


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