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Um presidente deposto e outro conduzido ao poder por homens armados
marcam o início da Revolução ‘Democrática’ de 1964. Entenda os eventos
que levaram à instauração da ditadura civil-militar no Brasil
João Roberto Martins Filho
Tropas mineiras se deslocam em Brasília em 4 de abril de 1964.
No mesmo
dia, Jango fugiu para o exílio /
Imagem: Arquivo Nacional
No dia 27 de março de 1964, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda
(1914-1977), mandou a família para a casa de amigos e resolveu dormir no
Palácio Guanabara. Apelidado de “O Corvo”, por seu nariz adunco e sua
participação na crise que levou ao suicídio de Getulio em agosto de
1954, o conspirador via chegada a hora do acerto de contas com seus
inimigos políticos. Em sua avaliação, a situação do país tinha atingido o
ponto de não retorno. O sinal verde para o golpe abriu-se com a Revolta
dos Marinheiros e o discurso radical do presidente João Goulart no
Automóvel Clube, no dia 30 de março, para um público de sargentos e
suboficiais.
A radicalização de Goulart dava ares de verdade à mensagem de que ele
se rendia ao comunismo. No começo de março, com a adesão do sempre
cauteloso general Castello Branco ao movimento, a relação de forças no
seio das Forças Armadas começara a pender a favor do golpe. Mas ainda
pairava no ar o fantasma de um confronto com o “dispositivo militar” do
presidente, comandado pelo chefe da Casa Militar, general Assis Brasil.
Chegou-se a uma situação na qual o que contava era a capacidade de cada
lado de arregimentar legiões.
Respeitado no Exército, Castello Branco sabia que, sem o apoio da
maioria dos oficiais, o movimento anti-Goulart fracassaria. No campo
civil, as “
Marchas da Família com Deus pela Liberdade” tinham feito seu
papel, permitindo dizer que o povo brasileiro chamava as Forças Armadas
para salvar o país do comunismo.
Na manhã de 31 de março, o general recebeu com irritação a notícia de
que a ala mineira da rebelião resolvera precipitar os acontecimentos.
Carlos Luiz Guedes, comandante da Infantaria Divisionária 4, e Olympio
Mourão Filho, chefe da 4ª Divisão de Infantaria, de Juiz de Fora, agiam
em acordo com o governador Magalhães Pinto. Por volta das 7 horas da
manhã do dia 31 de março, o general Castello Branco ligou para Magalhães
pedindo que convencesse Mourão a não deslocar seus homens para o Rio de
Janeiro. Não obteve sucesso. Batizada de “Coluna Tiradentes”, a tropa
saiu de Juiz de Fora à tarde, sob o comando do general Antonio Carlos
Muricy, atingindo a divisa com o Rio de Janeiro no final do dia.
Na ex-capital do país, o chefe da Casa Militar do governador, coronel
Fontenelle, mandou bloquear as ruas de acesso ao palácio com caminhões
de lixo, temendo um ataque de tropas legalistas. Na Praia de Botafogo,
vista como alvo provável de um desembarque de fuzileiros navais
comandados pelo almirante Aragão, inimigo público e visceral de Lacerda e
partidário de Goulart, Fontenelle mandou colocar tonéis de petróleo
vazios.
Atraída pelos rumores, uma pequena multidão se concentrou nos arredores
do Palácio Guanabara. Sarcasticamente, o próprio Lacerda descreveu anos
depois a movimentação: “Então apareciam no Guanabara uns velhinhos, uns
almirantes reformados, uns generais reformadíssimos, que saíam de casa
com a sua pistolinha! Mas apareceu também uma rapaziada enorme, gente
para todo lado, gente que ficava nas esquinas atrás de colunas”.
Surgiram boatos de que o Corpo de Fuzileiros Navais estaria se
deslocando da Ilha do Governador para atacar Lacerda. As linhas
telefônicas do Palácio foram cortadas, com exceção de uma, graças à qual
Lacerda conseguiu se comunicar com o governador Ademar de Barros, em
São Paulo, e com a UnitedPress, no exterior. O governador de Pernambuco,
Miguel Arraes, pronunciou-se em defesa do regime constitucional. No
Paraná, seu colega Nei Braga anunciou apoio ao golpe.
No histórico prédio do Ministério da Guerra, no Rio, em seu gabinete da
Chefia do Estado-Maior do Exército, o general Castello Branco
acompanhava o desenrolar dos fatos. Caberia a ele neutralizar qualquer
movimento de tropas a partir do Rio de Janeiro ou de Petrópolis para
enfrentar a coluna de Mourão. Em telefonema a Lacerda, Castello procurou
explicar que a questão agora era militar: São Paulo, o Nordeste e o Rio
Grande do Sul precisavam se definir. Feito isso, as tropas paulistas e
mineiras marchariam em diversas colunas para o Rio de Janeiro. Em nenhum
outro lugar os acontecimentos foram tão decisivos.
Em São Paulo, às 22 horas, Ademar de Barros declarou apoio ao golpe.
Uma hora depois, o general Amaury Kruel, chefe do II Exército, com sede
na capital paulista, aderiu ao movimento, após tentar convencer Goulart a
demitir ministros “comunistas”. Às 2 horas da manhã, Ademar foi de novo
à televisão anunciar que as tropas do general Kruel seguiam pela Via
Dutra rumo ao Rio de Janeiro, para se reunir à “Coluna Tiradentes”.
Entre os paisanos, os governadores de Goiás, Mato Grosso e dos estados
do Sul tinham declarado apoio ao golpe.
Como disse depois o general Cordeiro de Farias, “o Exército dormiu
janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º”. A coluna de
Minas Gerais defrontou-se, na altura do Rio Paraibuna, com o batalhão de
Petrópolis, chefiado por um tenente-coronel de nome Kerensky. Os
tenentes de Mourão conversaram diretamente com seus camaradas vindos do
estado da Guanabara, conseguindo sua adesão. Às 3h30, o marechal Odílio
Denys, ex-ministro da Guerra, visitou a coluna e logrou, por telefone,
convencer o coronel comandante do Regimento Sampaio a alinhar-se às
legiões em revolta.
Gradualmente, a hipótese de confronto militar se extinguia. Às 7 horas,
Mourão e seus comandados puseram-se de novo em movimento. Alguns
oficiais da Força Aérea levantaram voo de Pirassununga (SP) com o
objetivo de atacar as colunas golpistas, mas não receberam ordens para
disparar. Também na Força Aérea, o esforço miúdo de doutrinação do
pré-golpe mostrava resultados. Às 12 horas, o Regimento de Artilharia de
Costa, ao lado do Forte de Copacabana, foi neutralizado pelo impulsivo
general Montagna, que ultrapassou a assustada sentinela dando-lhe um
empurrão. Do Recife, o general Justino Alves Bastos, comandante do IV
Exército, anunciou seu apoio. Ações isoladas dos fuzileiros navais do
almirante Aragão não conseguiram virar o jogo militar. O “almirante
vermelho” acabou preso.
Jango resolveu deixar o Rio de Janeiro pouco antes das 13 horas,
embarcando para Brasília. O ministro da Justiça, Abelardo Jurema, foi
detido no Aeroporto Santos Dumont e levado para a Escola de Comando e
Estado Maior do Exército, na Urca, um dos centros nervosos do movimento.
No Recife, às 20 horas, tropas do Exército prenderam o governador
Miguel Arraes, conduzido a um quartel, de onde seria transferido, no dia
2, para Fernando de Noronha.
Reunidos na Cinelândia, manifestantes pró-Goulart tentaram invadir o
Clube Militar, mas foram rechaçados a tiros. Instigados ao vivo pelo
apresentador de rádio e de TV Flávio Cavalcanti, bandos anticomunistas
atearam fogo à sede da União Nacional dos Estudantes, a UNE, na Praia do
Flamengo. Em toda a cidade, tropas policiais e militares começaram a
prender líderes políticos ligados a Goulart. A Faculdade Nacional de
Filosofia foi atacada a tiros de metralhadora.
No Centro da cidade, uma
reunião de emergência convocada pelo Comando Geral dos Trabalhadores foi
dissolvida, com prisões de alguns líderes importantes. O jornal
Última Hora,
de Samuel Wainer, foi empastelado. Às 17 horas, oficiais da Marinha
conseguiram tomar o prédio de seu ministério. Houve violentos conflitos
entre manifestantes e soldados nas ruas da ex-capital, com mortos e
feridos.
Às 23h30, Goulart voou para Porto Alegre, onde esperava resistir com
apoio do Exército. De madrugada, com o Congresso Nacional cercado por
tropas militares e sob protesto de um grupo de parlamentares, seu
presidente, o senador Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da
Presidência, embora o presidente ainda estivesse em território nacional.
Às 11h45 do dia 2 de abril, ele fugiu para São Borja, dali rumando para
uma fazenda no Uruguai.
Por alguns dias, para dar uma aparência de legalidade ao golpe, a
Presidência da República passou a ser ocupada pelo presidente da Câmara
dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Conduzido ao Planalto “em um carro
literalmente coberto por homens armados”, como relatou o terceiro
secretário da Embaixada Americana em Brasília, Robert Bentley, Mazzilli
tomou o poder na calada da noite. Ainda no dia 2, os Estados Unidos
reconheceram o novo regime. Começava o período da oficialmente chamada
Revolução Democrática de 1964.
João Roberto Martins Filho é professor da Universidade Federal de São Carlos e organizador de
O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas (Edufscar, 2006).