Fonte - Unisinos
O papel do agora cardeal Bergoglio, da Argentina,
no desaparecimento de sacerdotes e o apoio à repressão ditatorial é
confirmado por cinco novos testemunhos. Falam um sacerdote e um
ex-sacerdote, uma teóloga, um integrante de uma fraternidade leiga que
denunciou no Vaticano o que acontecia na Argentina em 1976 e um leigo que foi sequestrado junto com dois sacerdotes que não reapareceram.
A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/12, 18-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cinco novos testemunhos, oferecidos de forma espontânea a partir da
notícia "Seu passado o condena", confirmam o papel do agora cardeal Jorge Bergoglio
na repressão do governo militar sobre as fileiras da Igreja Católica
que ele hoje preside, incluindo o desaparecimento de sacerdotes. As
testemunhas são uma teóloga que durante décadas deu catequese em
colégios do bispado de Morón, o ex-superior de uma
fraternidade sacerdotal que foi dizimada pelos desaparecimentos
forçados, um integrante da mesma fraternidade que denunciou os casos ao
Vaticano, um sacerdote e um leigo que foram sequestrados e torturados.
Teóloga de minissaia
Dois meses depois do golpe militar de 1976, o bispo de Morón, Miguel Raspanti, tentou proteger os sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics
porque temia que fossem sequestrados, mas Bergoglio se opôs. Assim
indica a ex-professora de catequese em colégios da diocese de Morón, Marina Rubino, que nessa época estudava teologia no Colégio Máximo de San Miguel,
onde Bergoglio vivia. Por essa circunstância, ela conhecia a ambos.
Além disso, ela havia sido aluna de Yorio e Jalics e sabia do risco que
eles corriam. Marina decidiu dar seu testemunho depois de ler a nota
sobre o livro de descargo de Bergoglio.
Marina Rubino vive em Morón desde sempre. No Colégio do Sagrado Coração de Castelar,
ela dava catequese às crianças e formava os pais, o que lhe parecia
mais importante. "Uma vez por mês, nos reuníamos com eles. Era um
trabalho muito bonito. Essa experiência durou 15 anos". Também deu
cursos de iniciação bíblica "em todos os lugares não turísticos da
Argentina. Tínhamos uma publicação, com comentários aos textos dos
domingos. Queríamos que as comunidades tivessem elementos para pensar".
Desde que se aposentou, dá aulas de tecelagem em centros culturais,
sociedades de fomento ou em casas.
Ela não quis ingressar no seminário de Villa Devoto
porque não lhe interessava a formação tomista, mas sim a Bíblia. Em
1972, começou a estudar teologia na Universidad del Salvador. A carreira
era cursada no Colégio Máximo de San Miguel. No primeiro ano, teve como
professor Francisco Jalics e, no segundo, Orlando Yorio. Enquanto
estudava, coordenava a catequese no colégio Sagrado Coração de Castelar,
onde também estava a religiosa francesa Léonie Duquet. "Eram tempos difíceis. Por fazer no colégio uma opção pelos pobres levando a sério o Concílio Vaticano II e a reunião do Celam de Medellín,
perdemos a metade dos alunos. Mas mantivemos essa opção e continuamos
formando pessoas mais abertas à realidade e ao compromisso com os mais
necessitados, defendendo que a fé tem que fortalecer essas atitudes, e
não as contrárias".
O bispo era Miguel Raspanti, que então tinha 68 anos e havia sido ordenado em 1957, nos últimos anos do reinado de Pio XII.
Era um homem bem intencionado que fez todos os esforços para se adaptar
às mudanças do Concílio, do qual participou. Depois do "cordobazo" de
1969, repudiou as estruturas injustas do capitalismo e estimulou o
compromisso com a "libertação de nossos irmãos necessitados". Mas o
problema mais grave que ele pôde identificar em Morón foi o aumento dos
impostos sobre o pequeno comerciante e o proprietário da classe média.
"Muitas vezes, foi preciso discutir e defender essas opções no bispado, e
Dom Raspanti costumava terminar as entrevistas dizendo-nos que, se
acreditávamos que era preciso fazer esta ou aquela coisa, se estávamos
convencidos, ele nos apoiava", lembra Marina. Suas palavras são
acompanhadas com atenção por seu esposo, Pepe Godino, um ex-padre de Santa María, Córdoba, que integrou o Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo.
Marina cursava teologia em San Miguel das 8h30min às 12h30min. Não
haviam lhe dado a bolsa, porque era mulher, mas, como era a coordenadora
de catequese em um colégio do bispado, Raspanti intercedeu e obteve que
uma entidade alemã se encarregasse dos custos dos seus estudos. Também
não quiseram lhe dar o título quando se formou em 1977. O diretor da
teologia, José Luis Lazzarini, lhe disse que havia um
problema, que não haviam se dado conta de que ela era mulher. Marina
partiu em busca de quem a havia recebido ao ingressar, o jesuíta Víctor Marangoni:
- Quando você me viu pela primeira vez, você se deu conta de que eu era mulher ou não?
- Sim, claro, por quê? - respondeu atordoado o vice-reitor diante dessa forte mulher de minissaia.
- Porque Lazzarini não quer me dar o título.
Marangoni se encarregou de reparar essa absurdo. Marina tem seu título, mas a entrega oficial nunca ocorreu.
A desproteção
Em um meio-dia, ao sair de seus cursos, "encontrei Dom Raspanti de pé
no hall da entrada, sozinho. Não sei por que o mantinham ali esperando.
Estava muito silencioso. Perguntei se estava esperando por alguém, e ele
me disse que sim, o padre provincial Bergoglio. Tinha o rosto
desfigurado, pálido, acreditei que estava mal de saúde. Cumprimentei-o,
perguntei se ele se sentia bem e o convidei a passar para uma salinha
que havia no hall".
- Não, não me sinto mal, mas estou preocupado – respondeu Raspanti.
Marina diz que tem uma memória fotográfica daquele dia. Ela fala com
voz calma, mas se percebe o apaixonamento em seus olhos grandes e
expressivos. Pepe a olha com ternura.
"Me impressionou ver
Raspanti sozinho, ele que sempre ia com o seu secretário", diz. Marina
sabia que seus professores Jalics e Yorio e um terceiro jesuíta que
trabalhava com ela no colégio de Castelar, Luis Dourron, haviam pedido
para passar para a diocese de Morón. Yorio, Jalics, Dourron e Enrique Rastellini, que também era jesuíta, viviam em comunidade desde 1970, primeiro em Ituzaingó e depois no Barrio Rivadavia, junto à Gran Villa do Bajo Flores, com conhecimento e aprovação dos sucessivos provinciais da Companhia de Jesus, Ricardo Dick O’Farrell e Bergoglio.
"Eu lhe disse que Orlando e Francisco haviam sido meus professores e
que Luis trabalhava conosco na diocese, que eram irrepreensíveis, que
não duvidasse em recebê-los. Todos estávamos inclinados para que
pudessem vir para Morón. Nenhum dos que conheciam a situação se opunha.
Raspanti me disse que era sobre isso que vinha falar com Bergoglio. Já
havia recebido Luis, mas precisava de uma carta na qual Bergoglio
autorizasse a passagem de Yorio e Jalics".
Marina entendeu que
era uma simples formalidade, mas Raspanti lhe esclareceu que a situação
era mais complicada. "Com as más referências que Bergoglio havia
mandado, ele não podia recebê-los na diocese. Estava muito angustiado
porque, nesse momento, Orlando e Francisco não dependiam de nenhuma
autoridade eclesiástica e me disse:
- Não posso deixar dois
sacerdotes nessa situação, nem posso recebê-los com o relatório que ele
me mandou. Venho para lhe pedir que simplesmente os autorize e que
retire esse relatório que dizia coisas muito graves.
Qualquer
um que ajudasse a pensar era guerrilheiro, comenta Marina. Acompanhou
seu bispo até que Bergoglio o recebeu e depois foi embora. Ao sair, viu
que o carro de Raspanti também não estava no estacionamento. "Deve ter
vindo de ônibus, para que ninguém o seguisse. Queria que a coisa ficasse
entre eles dois. Estava fazendo o impossível para dar-lhes proteção".
A teóloga acrescenta que a angústia de Raspanti lhe impressionou,
porque, "mesmo que ele não pudesse ser qualificado de bispo
progressista, sempre nos defendeu, defendeu os padres questionados da
diocese, levava a dormir na casa episcopal aqueles que corriam mais
risco e nunca nos proibiu de fazer ou dizer algo que considerássemos
fruto do nosso compromisso cristão. Como bom salesiano, se comportava
como uma galinha choca com seus padres e seus leigos, abrigava, cuidava,
mesmo que não estivesse de acordo. Eram pontos de vista diferentes, mas
ele sabia escutar e aceitava muitas coisas".
Um desses padres é Luis Piguillem,
que havia sido ameaçado. Ele voltava de bicicleta quando se topou com
uma barreira policial que impedia a passagem. Insistiu que queria
passar, porque sua casa ficava no bairro, e um policial lhe disse:
- Você vai ter que esperar porque estamos fazendo uma operação na casa do padre.
Piguillem deu meia volta com sua bicicleta e se afastou sem olhar para
trás. Dali, foi para o bispado de Morón, onde Raspanti lhe deu refúgio.
Os militares disseram que ele havia se escondido debaixo das saias do
bispo. Mas não se atreveram a ir buscá-lo ali.
- Raspanti era consciente do risco que Yorio e Jalics corriam?
- Sim. Disse que tinha medo de que desaparecessem. Dois sacerdotes não
podem ficar no ar, sem um responsável hierárquico. Poucos dias depois,
soubemos que eles os haviam levado.
De Córdoba a Cleveland
Outro testemunho recolhido a partir da publicação do domingo é o do sacerdote Alejandro Dausa, que, na terça-feira 03 de agosto de 1976, foi sequestrado em Córdoba, quando era seminarista da Ordem dos Missionários de Nossa Senhora de La Salette. Depois de seis meses nos quais foi torturado pela polícia cordobesa no Departamento de Inteligência D2, ele pôde viajar para os Estados Unidos, aonde o responsável do seminário já havia chegado, o sacerdote norte-americano James Weeks,
por quem o governo de seu país se interessou. Neste ano, irá se
realizar em Córdoba o julgamento daquele episódio, cujo principal
responsável é o general Luciano Menéndez. Agora, Dausa vive na Bolívia e conta que tanto
Ao chegar aos EUA, soube por órgãos de direitos humanos que Jalics se
encontrava em Cleveland, na casa de uma irmã. Dausa e os outros
seminaristas, que estavam iniciando o noviciado, convidaram-lhe para
dirigir dois retiros espirituais. Ambos foram realizados em 1977, um em Altamont (Estado de Nova York) e outro em Ipswich (Massachusetts).
Dausa lembra: "Como é natural, conversamos sobre os sequestros
respectivos, detalhes características, antecedentes, sinais prévios,
pessoas envolvidas etc. Nessas conversas, ele nos indicou que Bergoglio
os havia entregue e denunciado".
Na década seguinte, Dausa
trabalhava como padre na Bolívia e participava dos retiros anuais da La
Salette na Argentina. Em um deles, os organizadores convidaram Orlando
Yorio, que nessa época trabalhava em Quilmes. "O retiro foi em Carlos Paz, Córdoba,
e também nesse caso conversamos sobre a experiência do sequestro.
Orlando indicou o mesmo que Jalics sobre a responsabilidade de
Bergoglio".
Os assuncionistas
Yorio e Jalics foram sequestrados no dia 23 de maio de 1976 e conduzidos à Esma [Escola de Mecânica da Armada],
onde um especialista em assuntos eclesiásticos que conhecia a obra
teológica de Yorio lhes interrogou. Em um dos interrogatórios,
perguntou-lhe sobre os seminaristas assuncionistas Carlos Antonio Di Pietro e Raúl Eduardo Rodríguez. Ambos eram colegas de Marina Rubino no curso de teologia de San Miguel e desenvolviam trabalhos sociais no bairro popular La Manuelita,
de San Miguel, onde viviam e atendiam à capela Jesus Operário. Dali,
foram sequestrados dez dias depois que os dois jesuítas, no dia 04 de
junho de 1976, e levados para a mesma casa operativa que Yorio e Jalics.
Na metade da manhã, Di Pietro telefonou para o superior assuncionista
Roberto Favre e lhe perguntou pelo sacerdote Jorge Adur, que vivia com
eles em La Manuelita.
- Recebemos um telegrama para ele e temos que lhe entregar – disse.
Desse modo, conseguiu que a Ordem se pusesse em movimento. O superior Roberto Favre apresentou um recurso de habeas corpus, que não obteve resposta. Adur conseguiu sair do país, com a ajuda do núncio Pio Laghi, e se exilou na França.
Voltou de forma clandestina em 1980, convertido em capelão do
autodenominado "Exército Montonero" e foi preso-desaparecido no trajeto
para o Brasil, onde procurava se encontrar com o Papa João Paulo II.
O mesmo caminho do exílio foi seguido por um dos detidos na batida
policial do bairro La Manuelita, o então estudante de medicina e hoje
médico Lorenzo Riquelme. Quando recuperou sua liberdade, a Fraternidade dos Irmãozinhos do Evangelho
lhe deu hospitalidade em sua casa portenha da rua Malabia. Em
comunicações desde a França com quem era então o superior dos
Irmãozinhos do Evangelho, Patrick Rice, Riquelme disse
que quem o denunciou foi um jesuíta do Colégio de San Miguel, que era
por sua vez capelão do Exército. Ele está convencido de que esse
sacerdote presenciou as torturas que lhe foram aplicadas, em Campo de
Mayo, acredita ele.
O amolecedor
Também em consequência da notícia do domingo, um fundador da fraternidade leiga dos Irmãozinhos do Evangelho Charles de Foucauld, Roberto Scordato,
aceitou narrar seu conhecimento do caso. Entre o fim de outubro e o
começo de novembro de 1976, Scordato se reuniu em Roma com o cardeal Eduardo Pironio, que era prefeito da Congregação para os Religiosos
do Vaticano, e lhe comunicou o nome e o sobrenome de um sacerdote da
comunidade jesuíta de San Miguel que participava das sessões de tortura
em Campo de Mayo com o papel de "amolecer espiritualmente" os detidos.
Scordato pediu-lhe que transmitisse ao superior geral Pedro Arrupe,
mas ignora o resultado de sua gestão, se é que teve algum. Consultado
para esta nota, Rice, que também foi sequestrado e torturado nesse ano,
disse que isso não teria sido possível sem a aprovação do padre
provincial. Rice e Scordato acreditam que esse jesuíta tinha o sobrenome
González, mas, a 34 anos de distância, não lembra com certeza.
Fúria
Como todas as vezes em que seu passado o alcança, Bergoglio atribui a
divulgação de seus atos ao governo nacional. Nesta semana, ele reagiu
com fúria durante a homilia que pronunciou em uma missa para estudantes.
Naquilo que seu porta-voz descreveu como "uma mensagem para o poder
político", ele disse que "não temos direitos a mudar a identidade e a
orientação da Pátria", mas sim a "projetá-la para o futuro em uma utopia
que seja continuidade com aquilo que nos foi dado", que os jovens não
têm outro horizonte do que comprar drogas e que os dirigentes procuram
ascender, aumentar o caixa e promover os amigos.
Com esse ânimo irascível, ele inaugurará em San Miguel a primeira assembleia plenária do Episcopado de 2010.
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