quarta-feira, 18 de abril de 2012

Ditadura argentina montou bases no Brasil

Fonte: Unisinos

No auge da Operação Condor, acordo feito no final de 1975 entre militares da América do Sul para combater opositores, a Argentina manteve bases em São Paulo e no Rio de Janeiro compostas por membros de suas corporações cujo objetivo era "detectar pessoas vinculadas à "subversão", controlá-las e manterem-se informados sobre todos seus movimentos".

A  reportagem é de Rubens Valente e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 6-01-2008.

Os militares baseados no Brasil estavam vinculados ao Batalhão de Inteligência 601, centro militar de interrogatórios e torturas localizado nos arredores de Buenos Aires.

As revelações constam de um processo judicial aberto a pedido do Ministério Público argentino e que culminou, no último dia 18, na condenação de sete militares e um policial, incluindo o general Cristino Nicolaides, 83, ex-comandante do Exército e membro da quarta junta militar que governou o país em 1982 e 1983. Nicolaides, condenado a cinco anos de reclusão, cumpre prisão domiciliar em Córdoba.

A íntegra da decisão de 303 páginas, obtida pela testemunha do processo e ativista Jair Krischke, presidente do Movimento Nacional de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, traz o depoimento prestado em 1984 pelo carcereiro Néstor Norberto Cendon, que cumpriu tarefas no batalhão 601.

Segundo a sentença, Cendon relatou que as bases dos argentinos no Brasil tinham como prioridade os montoneros, maior grupo guerrilheiro argentino, que a partir de 1978 iniciou a "segunda contra-ofensiva", um plano que previa o retorno à Argentina dos guerrilheiros que viviam no exterior para um fracassado embate final com a ditadura. A ordem dos militares era interceptar os guerrilheiros em território estrangeiro ou deixar a Argentina preparada para o regresso.

Pelo menos 20 montoneros morreram em 1980 - quatro foram presos no Brasil e, entregues à Argentina, desapareceram. Dois se mataram ao serem abordados por uma lancha policial quando tentavam cruzar de barco o Rio Paraná.

De acordo com a sentença dada pelo juiz Ariel Lijo, do 4º Juizado Nacional Criminal e Correcional Federal, Cendón afirmou em agosto de 1984 à comissão montada pelo governo argentino para apurar desaparecimentos que "o serviço de inteligência do Exército contava com bases no Paraguai, Bolívia, Peru, Brasil e Uruguai. A mais conhecida era a do Brasil, com sede em São Paulo e Rio de Janeiro. Em Paso de Los Libres também, já que bastava cruzar a ponte para se estar em Uruguaiana [no Brasil]".

Segundo a decisão judicial, Cendon disse que as bases do Brasil eram ocupadas por quatro oficiais e dois civis ligados à inteligência do Exército, citados nominalmente e por apelido. "A raiz dos trabalhos realizados por esses grupos se referia a muitos integrantes dos TEIs (Tropas Especiais de Infantaria) e TEAs (Tropas Especiais de Agitação), que, segundo as informações do depoente [Cendon], foram treinados na Líbia, os TEIs, e em Cuba, os TEAs". Os grupos eram braços operacionais dos montoneros.

Em seu relato, Cendon disse que a operação militar anti-montonera levou o nome de "Morcego" e incluía as bases brasileiras. "Toda a operação Morcego foi desenvolvida a partir de meados de 1978. Era evidente, segundo disse o depoente [Cendon], a colaboração prestada pelos serviços de informações inteligência dos países em que eles estabeleceram as Bases", diz a sentença.

Um participante TEI era Horacio Campiglia, que em 1980 foi preso no aeroporto do Galeão, no Rio, junto com a guerrilheira Monica Binstock. Ambos estão desaparecidos. O caso de Campiglia, que tinha também cidadania italiana, é investigado pela Justiça da Itália. No último dia 24 a Itália decretou a prisão de 140 supostos envolvidos com a Condor, incluindo onze brasileiros.

Para ler mais:
  Operação Condor eliminou fronteiras da repressão p...

O caso do padre Christian von Wernich. A Igreja utiliza "réguas" diferentes

Fonte: Unisinos

nov.2007

O jornalista Washington Uranga em artigo para o Página/12, 5-11-2007, afirma que até o momento a Igreja argentina e o Vaticano não se pronunciaram sobre o afastamento e do padre Christian von Wernich condenado pelo apoio e pratica de tortura durante a ditadura argentina. Uranga destaca que a Igreja age com critérios diferentes quando se trata de punir religiosos. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

No dia 09 de outubro, o sacerdorte Christian von Wernich foi condenado por delitos lesa humanidade. No mesmo dia, a Conferência Episcopal Argentina em um tíbio comunicado, fiel a sua linha de argumentação, insistiu que o padre atuou “sob responsabilidade pessoal”. Consequentemente, para os bispos não há responsabilidades institucionais.

No dia seguinte e depois de receber várias pressões por parte de outros membros da hierarquia católica, o bispo de 9 de Julho, Martín de Elizalde, pediu “perdão” em nome da Igreja pelos delitos de Von Wernich, mas ‘empurrou a bola’ para frente sobre as sanções ao padre violador dos direitos humanos.

“Oportunamente se dirá como resolver, conforme as disposições do Direito Canônico (a lei eclesiástica), acerca da situação de Christian von Wernich”, escreveu então o bispo. Essa oportunidade entretanto não chegou e o padre preso continua ostentando a sua condição de ministro religioso.

(os padres que enfiam o pé na jaca nunca são excomungados, nem torturadores, nem os pedófilos - só a mãe da menina grávida por abuso foi excomungada por ter concordado com o aborto, enfim ... é essa a lógica da moral cristã)

Vale a pena perguntar de que outras provas precisa a Igreja e, em particular, o bispo de 9 de Julho para tomar medidas contra quem como ficou comprovado, contradisse não apenas os ensinamentos fundamentais do Evangelho, mas que para além disso atentou contra a vida de que a Igreja defende com tanta vêemencia em outros casos.

Ao menos, que o bispo Martín de Elizalde considere que, como pensa, Von Wernich, a Justiça atuou politicamente e por vingança e que tudo o que fez o ex-capelão de Ramón Camps não foi senão uma contribuição a mais para “salvar” almas.

O certo é que até hoje, Von Wernich continua sendo sacerdote da Igreja Católica com todas as atribuições e reconhecimentos que isso implica. Poderia se dizer que “oportunamente” o bispo Martín de Elizalde está deixando passar o tempo sem tomar medidas porque considera que a grave e categórica conclusão da Justiça ao condenar o padre não é razão suficiente para gerar sanções eclesiásticas.

Diferente é a atitude da mesma Igreja frente a outras situações. No dia 12 de outubro, um padre italiano foi suspenso por admitir publicamente sua homossexualidade. O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, disse então que “as autoridades vaticanas tem que intervir com essa decisão e severidade diante de um comportamento não compatível com o serviço sacerdotal e a missão da Santa Sé”. Medida exemplificadora pode-se dizer.

No dia 26 de outubro, o bispo de Pádua (Itália), Antonio Mattiazo suspendeu a divinis (medida que impede de exercer o ministério sacerdotal), o padre Sante Squotti (41 anos) por ter admitido publicamente estar apaixonado por uma mulher. “Não posso ter um filho, nem casar-me – disse o padre -, mas posso me apaixonar, porque o Direito Canonico não estipula nenhuma sanção para isso”. O argumento não serviu e o sacerdote foi castigado.

Poderá se argumentar que as situações são distintas e que cada bispo tem autonomia para tomar decisões em suas dioceses. Mas a Igreja Católica é a mesma aqui e na Itália e está claro que não se mede com a mesma régua a quem “peca” por amor e quem está condenado por genocídio. Não é preciso lembrar aqui a sorte do que aconteceu com os sacerdotes católicaos argentinos que decidiram falar publicamente do seu amor e questionar o celibato.

É o caso de perguntar se demoraria às sanções eclesiásticas contra um ministro que se atrevesse a contradizer publicamente a doutrina católica sobre o celibato, homossexualidade, indissolubilidade do matrimonio ou discriminalização do aborto. Seguramente, a “oportunidade” nesse caso teria uma celeridade e um critério bastante diferentes ao que hoje se aplica a Von Wernich.

A pena perpétua para padre argentino é festejada nas ruas

Fonte: Unisinos

Centenas de pessoas, incluindo membros de grupos de defesa de direitos humanos e de partidos políticos, foram às ruas para festejar a condenação de Von Wernich.

A notícia é do jornal O Estado de S. Paulo e dos jornais Clarín e Página/12, 10-10-2007.

`Que Deus te perdoe, porque nós já te condenamos`, dizia um cartaz exibido por um grupo de manifestantes. Eles queimaram um boneco que representava o religioso.

`Este é um dia histórico, não pensávamos que íamos viver para ver isto`, celebrou uma das líderes das Mães da Praça de Maio, Tati Almeyda.


A Igreja Católica vinha mantendo silêncio sobre o caso, mas ontem à noite a Conferência Episcopal Argentina (CEA) divulgou um comunicado manifestando sua `dor` pela `participação de um sacerdote em delitos gravíssimos`.


No comunicado, a CEA também pediu a reconciliação dos argentinos, afirmando que os passos da Justiça `são um chamado para que nos distanciemos tanto da impunidade como do ódio e do rancor`.
 (eles sempre falam e ódio e rancor quando a maré vira contra eles... interessante isso! falam tbm em anticristianismo, perseguição de ateus comunistas e coisas afins)

Von Wernich, que em diversas ocasiões fingiu ser amigo dos prisioneiros políticos, conseguia deles, por meio da confissão religiosa, informações secretas sobre colegas dos detidos que estavam na clandestinidade. Ele repassava a informação aos militares.

Além disso, o padre fazia torturas psicológicas e pedia dinheiro a famílias de presos, alegando que o usaria para subornar guardas a fim de obter a libertação de detidos. Von Wernich chegou a acompanhar um grupo de prisioneiros até um descampado na Grande Buenos Aires, onde eles supostamente seriam libertados. Em vez disso, acabaram fuzilados.

O sacerdote também participou dos `vôos da morte`, dos quais presos eram jogados, ainda vivos, no Rio da Prata. Ele abençoava os militares que jogavam os prisioneiros.

Após o fim da ditadura, Von Wernich fugiu para o Chile, onde morou até 2003, quando foi descoberto e extraditado para a Argentina. O regime militar foi responsável pelo assassinato de 30 mil civis.

Caso Wernich: "A Igreja e o Exército estavam decididos a transformar a Argentina laica numa nação católica"

Fonte:Unisinos

A condenação à prisão perpétua do padre argentino Christian Von Wernich - por 7 homicídios, 31 casos de tortura e 42 seqüestros durante a ditadura de 1976-83 - revela a conivência da Igreja Católica com o antigo regime militar do país, afirmou Loris Zanatta, historiador italiano da Universidade de Bologna e especialista nas relações entre Exército e Igreja na Argentina. `Tanto a Igreja quanto o Exército estavam decididos a transformar a Argentina laica numa nação católica`, disse Zanatta ao Estado de S. Paulo, 12-10-2007. A seguir, trechos da entrevista:


Como o sr. descreveria a relação entre o Exército, a Igreja Católica e os católicos de maneira geral na Argentina?
Na história argentina, o Exército foi um canal privilegiado de `catolização` do Estado. Desde então, o Exército e a Igreja não somente mantiveram uma estreita aliança doutrinária e institucional, como também reivindicaram e exerceram uma espécie de `monopólio da identidade nacional`, intervindo contra todas as forças que, segundo seu sistema de valores, a desafiavam.


Nesse contexto, qual é o significado da condenação de Christian Von Wernich para a Igreja Católica argentina?
A condenação de Von Wernich tem um valor essencialmente simbólico, no sentido de que revela os excessos horrendos cometidos pelos mais fanáticos defensores da pretensão de exercer o monopólio da identidade nacional e da legitimidade política. E revela também a responsabilidade eclesiástica no espiral de autoritarismo em que caiu a sociedade argentina no final do século 20.


O sr. acredita que a cúpula da Igreja conhecia as atividades do capelão?
Não é possível ter certeza, mas posso supor, a partir de minha experiência, que o corpo de capelães militares sabia ou estava em condições de imaginar o que fazia e dizia Von Wernich. Está muito claro que esse capelão devia ter um perfil criminal especialmente odioso.


Em sua reação à condenação, o episcopado argentino pediu `perdão`. Como o sr. analisa essa declaração? Vê algum tipo de cinismo?
Acho que, efetivamente, uma parte da nova geração eclesiástica que chegou ao episcopado recentemente assumiu as responsabilidades que cabem à instituição. Provavelmente isso não é o suficiente e traços da antiga cultura continuam em vários ambientes da Igreja. Ainda assim, não podemos esquecer que a instrumentalização da mensagem religiosa para fins políticos e ideológicos foi naquela época muito difundida, e até os Montoneros (grupo guerrilheiro esquerdista argentino) tinham capelães que benziam suas armas. Digamos que, colocado o catolicismo no centro da nacionalidade, seu ideário e missão terminaram por incorporar e transformar em lutas religiosas todos os conflitos que atravessavam uma sociedade profundamente dividida.

Padre da ditadura argentina pode pegar perpétua

Fonte: Unisinos



O padre argentino Christian Von Wernich, acusado de 7 homicídios, 31 casos de tortura e 42 seqüestros durante a ditadura militar (1976-83), pode ser condenado hoje à prisão por crimes contra a humanidade e genocídio. Von Wernich, de 69 anos, seria assim o primeiro padre católico das Américas condenado à cadeia por tais crimes. A reportagem é de Ariel Palacios e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 9-10-2007.

O Tribunal Federal Número 1 da cidade de La Plata, capital da Província de Buenos Aires, anunciará entre hoje e amanhã o veredicto e a sentença. A promotoria pediu ontem prisão perpétua para o ex-capelão da polícia de Buenos Aires. O réu acompanhou atentamente ontem os últimos argumentos da promotoria no tribunal. Há a expectativa de que o padre faça um pronunciamento hoje, antes do anúncio do veredicto.

Von Wernich, que em diversas ocasiões fingiu ser amigo dos prisioneiros políticos, conseguia deles, por meio da confissão religiosa, informações secretas sobre colegas dos detidos que estavam na clandestinidade. Von Wernich repassava a informação aos oficiais.

Além disso, o padre é acusado de torturas psicológicas e de ter pedido dinheiro a famílias de presos. Ele dizia às famílias que com o dinheiro subornaria guardas para garantir a liberdade de parentes detidos e pagaria passaportes falsos e passagens aéreas para o exterior, onde estariam a salvo. Parentes de presos pagaram ao padre, que embolsou o dinheiro. Para manter a farsa, Von Wernich acompanhou um grupo de presos no transporte até um descampado na Grande Buenos Aires, onde os prisioneiros, que esperavam a liberdade, foram fuzilados.

Se for condenado à prisão perpétua, Von Wernich seguirá o caminho de um velho amigo dele, o ex-diretor de investigações da polícia de Buenos Aires Miguel Etchecolatz, condenado em setembro de 2006 por torturas e assassinatos de civis durante a ditadura.

Ambos eram homens de confiança do general Ramón Camps, já falecido, que defendia o extermínio dos prisioneiros políticos, além da morte de seus filhos, pois considerava que “a subversão era hereditária”.

Von Wernich também participou dos “vôos da morte”, dos quais presos eram jogados, ainda vivos, no Rio da Prata. O padre abençoava os oficiais que jogavam os prisioneiros.

Após o fim da ditadura, Von Wernich fugiu para o Chile, onde foi descoberto em 2003 e extraditado para a Argentina. Segundo os advogados das vítimas, ele foi uma peça emblemática do mecanismo da ditadura para eliminar todo tipo de opositores. O regime militar foi responsável pelo assassinato de 30 mil civis.

Bergoglio - Novos testemunhos sobre Bergoglio e a ditadura argentina

Fonte - Unisinos

O papel do agora cardeal Bergoglio, da Argentina, no desaparecimento de sacerdotes e o apoio à repressão ditatorial é confirmado por cinco novos testemunhos. Falam um sacerdote e um ex-sacerdote, uma teóloga, um integrante de uma fraternidade leiga que denunciou no Vaticano o que acontecia na Argentina em 1976 e um leigo que foi sequestrado junto com dois sacerdotes que não reapareceram.

A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/12, 18-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Cinco novos testemunhos, oferecidos de forma espontânea a partir da notícia "Seu passado o condena", confirmam o papel do agora cardeal Jorge Bergoglio na repressão do governo militar sobre as fileiras da Igreja Católica que ele hoje preside, incluindo o desaparecimento de sacerdotes. As testemunhas são uma teóloga que durante décadas deu catequese em colégios do bispado de Morón, o ex-superior de uma fraternidade sacerdotal que foi dizimada pelos desaparecimentos forçados, um integrante da mesma fraternidade que denunciou os casos ao Vaticano, um sacerdote e um leigo que foram sequestrados e torturados.


Teóloga de minissaia

Dois meses depois do golpe militar de 1976, o bispo de Morón, Miguel Raspanti, tentou proteger os sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics porque temia que fossem sequestrados, mas Bergoglio se opôs. Assim indica a ex-professora de catequese em colégios da diocese de Morón, Marina Rubino, que nessa época estudava teologia no Colégio Máximo de San Miguel, onde Bergoglio vivia. Por essa circunstância, ela conhecia a ambos. Além disso, ela havia sido aluna de Yorio e Jalics e sabia do risco que eles corriam. Marina decidiu dar seu testemunho depois de ler a nota sobre o livro de descargo de Bergoglio.

Marina Rubino vive em Morón desde sempre. No Colégio do Sagrado Coração de Castelar, ela dava catequese às crianças e formava os pais, o que lhe parecia mais importante. "Uma vez por mês, nos reuníamos com eles. Era um trabalho muito bonito. Essa experiência durou 15 anos". Também deu cursos de iniciação bíblica "em todos os lugares não turísticos da Argentina. Tínhamos uma publicação, com comentários aos textos dos domingos. Queríamos que as comunidades tivessem elementos para pensar". Desde que se aposentou, dá aulas de tecelagem em centros culturais, sociedades de fomento ou em casas.

Ela não quis ingressar no seminário de Villa Devoto porque não lhe interessava a formação tomista, mas sim a Bíblia. Em 1972, começou a estudar teologia na Universidad del Salvador. A carreira era cursada no Colégio Máximo de San Miguel. No primeiro ano, teve como professor Francisco Jalics e, no segundo, Orlando Yorio. Enquanto estudava, coordenava a catequese no colégio Sagrado Coração de Castelar, onde também estava a religiosa francesa Léonie Duquet. "Eram tempos difíceis. Por fazer no colégio uma opção pelos pobres levando a sério o Concílio Vaticano II e a reunião do Celam de Medellín, perdemos a metade dos alunos. Mas mantivemos essa opção e continuamos formando pessoas mais abertas à realidade e ao compromisso com os mais necessitados, defendendo que a fé tem que fortalecer essas atitudes, e não as contrárias".

O bispo era Miguel Raspanti, que então tinha 68 anos e havia sido ordenado em 1957, nos últimos anos do reinado de Pio XII. Era um homem bem intencionado que fez todos os esforços para se adaptar às mudanças do Concílio, do qual participou. Depois do "cordobazo" de 1969, repudiou as estruturas injustas do capitalismo e estimulou o compromisso com a "libertação de nossos irmãos necessitados". Mas o problema mais grave que ele pôde identificar em Morón foi o aumento dos impostos sobre o pequeno comerciante e o proprietário da classe média. "Muitas vezes, foi preciso discutir e defender essas opções no bispado, e Dom Raspanti costumava terminar as entrevistas dizendo-nos que, se acreditávamos que era preciso fazer esta ou aquela coisa, se estávamos convencidos, ele nos apoiava", lembra Marina. Suas palavras são acompanhadas com atenção por seu esposo, Pepe Godino, um ex-padre de Santa María, Córdoba, que integrou o Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo.

Marina cursava teologia em San Miguel das 8h30min às 12h30min. Não haviam lhe dado a bolsa, porque era mulher, mas, como era a coordenadora de catequese em um colégio do bispado, Raspanti intercedeu e obteve que uma entidade alemã se encarregasse dos custos dos seus estudos. Também não quiseram lhe dar o título quando se formou em 1977. O diretor da teologia, José Luis Lazzarini, lhe disse que havia um problema, que não haviam se dado conta de que ela era mulher. Marina partiu em busca de quem a havia recebido ao ingressar, o jesuíta Víctor Marangoni:

- Quando você me viu pela primeira vez, você se deu conta de que eu era mulher ou não?

- Sim, claro, por quê? - respondeu atordoado o vice-reitor diante dessa forte mulher de minissaia.

- Porque Lazzarini não quer me dar o título.

Marangoni se encarregou de reparar essa absurdo. Marina tem seu título, mas a entrega oficial nunca ocorreu.

A desproteção

Em um meio-dia, ao sair de seus cursos, "encontrei Dom Raspanti de pé no hall da entrada, sozinho. Não sei por que o mantinham ali esperando. Estava muito silencioso. Perguntei se estava esperando por alguém, e ele me disse que sim, o padre provincial Bergoglio. Tinha o rosto desfigurado, pálido, acreditei que estava mal de saúde. Cumprimentei-o, perguntei se ele se sentia bem e o convidei a passar para uma salinha que havia no hall".

- Não, não me sinto mal, mas estou preocupado – respondeu Raspanti.

Marina diz que tem uma memória fotográfica daquele dia. Ela fala com voz calma, mas se percebe o apaixonamento em seus olhos grandes e expressivos. Pepe a olha com ternura.

"Me impressionou ver Raspanti sozinho, ele que sempre ia com o seu secretário", diz. Marina sabia que seus professores Jalics e Yorio e um terceiro jesuíta que trabalhava com ela no colégio de Castelar, Luis Dourron, haviam pedido para passar para a diocese de Morón. Yorio, Jalics, Dourron e Enrique Rastellini, que também era jesuíta, viviam em comunidade desde 1970, primeiro em Ituzaingó e depois no Barrio Rivadavia, junto à Gran Villa do Bajo Flores, com conhecimento e aprovação dos sucessivos provinciais da Companhia de Jesus, Ricardo Dick O’Farrell e Bergoglio.

"Eu lhe disse que Orlando e Francisco haviam sido meus professores e que Luis trabalhava conosco na diocese, que eram irrepreensíveis, que não duvidasse em recebê-los. Todos estávamos inclinados para que pudessem vir para Morón. Nenhum dos que conheciam a situação se opunha. Raspanti me disse que era sobre isso que vinha falar com Bergoglio. Já havia recebido Luis, mas precisava de uma carta na qual Bergoglio autorizasse a passagem de Yorio e Jalics".

Marina entendeu que era uma simples formalidade, mas Raspanti lhe esclareceu que a situação era mais complicada. "Com as más referências que Bergoglio havia mandado, ele não podia recebê-los na diocese. Estava muito angustiado porque, nesse momento, Orlando e Francisco não dependiam de nenhuma autoridade eclesiástica e me disse:

- Não posso deixar dois sacerdotes nessa situação, nem posso recebê-los com o relatório que ele me mandou. Venho para lhe pedir que simplesmente os autorize e que retire esse relatório que dizia coisas muito graves.

Qualquer um que ajudasse a pensar era guerrilheiro, comenta Marina. Acompanhou seu bispo até que Bergoglio o recebeu e depois foi embora. Ao sair, viu que o carro de Raspanti também não estava no estacionamento. "Deve ter vindo de ônibus, para que ninguém o seguisse. Queria que a coisa ficasse entre eles dois. Estava fazendo o impossível para dar-lhes proteção".

A teóloga acrescenta que a angústia de Raspanti lhe impressionou, porque, "mesmo que ele não pudesse ser qualificado de bispo progressista, sempre nos defendeu, defendeu os padres questionados da diocese, levava a dormir na casa episcopal aqueles que corriam mais risco e nunca nos proibiu de fazer ou dizer algo que considerássemos fruto do nosso compromisso cristão. Como bom salesiano, se comportava como uma galinha choca com seus padres e seus leigos, abrigava, cuidava, mesmo que não estivesse de acordo. Eram pontos de vista diferentes, mas ele sabia escutar e aceitava muitas coisas".

Um desses padres é Luis Piguillem, que havia sido ameaçado. Ele voltava de bicicleta quando se topou com uma barreira policial que impedia a passagem. Insistiu que queria passar, porque sua casa ficava no bairro, e um policial lhe disse:

- Você vai ter que esperar porque estamos fazendo uma operação na casa do padre.

Piguillem deu meia volta com sua bicicleta e se afastou sem olhar para trás. Dali, foi para o bispado de Morón, onde Raspanti lhe deu refúgio. Os militares disseram que ele havia se escondido debaixo das saias do bispo. Mas não se atreveram a ir buscá-lo ali.

- Raspanti era consciente do risco que Yorio e Jalics corriam?

- Sim. Disse que tinha medo de que desaparecessem. Dois sacerdotes não podem ficar no ar, sem um responsável hierárquico. Poucos dias depois, soubemos que eles os haviam levado.

De Córdoba a Cleveland

Outro testemunho recolhido a partir da publicação do domingo é o do sacerdote Alejandro Dausa, que, na terça-feira 03 de agosto de 1976, foi sequestrado em Córdoba, quando era seminarista da Ordem dos Missionários de Nossa Senhora de La Salette. Depois de seis meses nos quais foi torturado pela polícia cordobesa no Departamento de Inteligência D2, ele pôde viajar para os Estados Unidos, aonde o responsável do seminário já havia chegado, o sacerdote norte-americano James Weeks, por quem o governo de seu país se interessou. Neste ano, irá se realizar em Córdoba o julgamento daquele episódio, cujo principal responsável é o general Luciano Menéndez. Agora, Dausa vive na Bolívia e conta que tanto


Ao chegar aos EUA, soube por órgãos de direitos humanos que Jalics se encontrava em Cleveland, na casa de uma irmã. Dausa e os outros seminaristas, que estavam iniciando o noviciado, convidaram-lhe para dirigir dois retiros espirituais. Ambos foram realizados em 1977, um em Altamont (Estado de Nova York) e outro em Ipswich (Massachusetts). Dausa lembra: "Como é natural, conversamos sobre os sequestros respectivos, detalhes características, antecedentes, sinais prévios, pessoas envolvidas etc. Nessas conversas, ele nos indicou que Bergoglio os havia entregue e denunciado".

Na década seguinte, Dausa trabalhava como padre na Bolívia e participava dos retiros anuais da La Salette na Argentina. Em um deles, os organizadores convidaram Orlando Yorio, que nessa época trabalhava em Quilmes. "O retiro foi em Carlos Paz, Córdoba, e também nesse caso conversamos sobre a experiência do sequestro. Orlando indicou o mesmo que Jalics sobre a responsabilidade de Bergoglio".

Os assuncionistas

Yorio e Jalics foram sequestrados no dia 23 de maio de 1976 e conduzidos à Esma [Escola de Mecânica da Armada], onde um especialista em assuntos eclesiásticos que conhecia a obra teológica de Yorio lhes interrogou. Em um dos interrogatórios, perguntou-lhe sobre os seminaristas assuncionistas Carlos Antonio Di Pietro e Raúl Eduardo Rodríguez. Ambos eram colegas de Marina Rubino no curso de teologia de San Miguel e desenvolviam trabalhos sociais no bairro popular La Manuelita, de San Miguel, onde viviam e atendiam à capela Jesus Operário. Dali, foram sequestrados dez dias depois que os dois jesuítas, no dia 04 de junho de 1976, e levados para a mesma casa operativa que Yorio e Jalics. Na metade da manhã, Di Pietro telefonou para o superior assuncionista Roberto Favre e lhe perguntou pelo sacerdote Jorge Adur, que vivia com eles em La Manuelita.

- Recebemos um telegrama para ele e temos que lhe entregar – disse.

Desse modo, conseguiu que a Ordem se pusesse em movimento. O superior Roberto Favre apresentou um recurso de habeas corpus, que não obteve resposta. Adur conseguiu sair do país, com a ajuda do núncio Pio Laghi, e se exilou na França. Voltou de forma clandestina em 1980, convertido em capelão do autodenominado "Exército Montonero" e foi preso-desaparecido no trajeto para o Brasil, onde procurava se encontrar com o Papa João Paulo II.

O mesmo caminho do exílio foi seguido por um dos detidos na batida policial do bairro La Manuelita, o então estudante de medicina e hoje médico Lorenzo Riquelme. Quando recuperou sua liberdade, a Fraternidade dos Irmãozinhos do Evangelho lhe deu hospitalidade em sua casa portenha da rua Malabia. Em comunicações desde a França com quem era então o superior dos Irmãozinhos do Evangelho, Patrick Rice, Riquelme disse que quem o denunciou foi um jesuíta do Colégio de San Miguel, que era por sua vez capelão do Exército. Ele está convencido de que esse sacerdote presenciou as torturas que lhe foram aplicadas, em Campo de Mayo, acredita ele.

O amolecedor

Também em consequência da notícia do domingo, um fundador da fraternidade leiga dos Irmãozinhos do Evangelho Charles de Foucauld, Roberto Scordato, aceitou narrar seu conhecimento do caso. Entre o fim de outubro e o começo de novembro de 1976, Scordato se reuniu em Roma com o cardeal Eduardo Pironio, que era prefeito da Congregação para os Religiosos do Vaticano, e lhe comunicou o nome e o sobrenome de um sacerdote da comunidade jesuíta de San Miguel que participava das sessões de tortura em Campo de Mayo com o papel de "amolecer espiritualmente" os detidos.

Scordato pediu-lhe que transmitisse ao superior geral Pedro Arrupe, mas ignora o resultado de sua gestão, se é que teve algum. Consultado para esta nota, Rice, que também foi sequestrado e torturado nesse ano, disse que isso não teria sido possível sem a aprovação do padre provincial. Rice e Scordato acreditam que esse jesuíta tinha o sobrenome González, mas, a 34 anos de distância, não lembra com certeza.

Fúria

Como todas as vezes em que seu passado o alcança, Bergoglio atribui a divulgação de seus atos ao governo nacional. Nesta semana, ele reagiu com fúria durante a homilia que pronunciou em uma missa para estudantes. Naquilo que seu porta-voz descreveu como "uma mensagem para o poder político", ele disse que "não temos direitos a mudar a identidade e a orientação da Pátria", mas sim a "projetá-la para o futuro em uma utopia que seja continuidade com aquilo que nos foi dado", que os jovens não têm outro horizonte do que comprar drogas e que os dirigentes procuram ascender, aumentar o caixa e promover os amigos.

Com esse ânimo irascível, ele inaugurará em San Miguel a primeira assembleia plenária do Episcopado de 2010.

Bergoglio - A "operação conclave" de Bergoglio

Fonte: Unisinos.

12 de Abril de 2010

Quando a publicação mais importante da Alemanha, a revista Der Spiegel, se refere ao "papado falido" do seu compatriota Joseph Ratzinger (o mesmo termo que a Inteligência norte-americana aplica aos Estados com vazio de poder nos quais justifica sua intervenção), o primaz da Argentina e arcebispo de Buenos Aires, cardeal Jorge Bergoglio (foto), empreende uma operação de lavagem de sua imagem com a publicação de um livro autobiográfico.

O ostensivo propósito de "El Jesuita", como o livro é intitulado, é defender seu desempenho como provincial da Companhia de Jesus entre 1973 e 1979, manchado pelas denúncias dos sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics, que ele entregou aos militares. Ambos foram sequestrados cinco meses a partir de maio de 1976. Em troca, as quatro catequistas e dois de seus esposos sequestrados dentro da mesma operação nunca reapareceram. Entre eles, estavam Mónica Candelaria Mignone, filha do fundador do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), Emilio Mignone, e María Marta Vázquez Ocampo, da presidente das Mães da Praça de Maio, Martha Ocampo de Vázquez.

A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/12, 10-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Ratzinger tem 83 anos e, segundo a Der Spiegel, muitas vozes pedem a sua renúncia. O sacerdote Paolo Farinella escreveu na prestigiosa revista italiana de filosofia MicroMega, cujo diretor Paolo Flores D’Arcais participou de debates públicos sobre filosofia com o Papa, que Bento XVI deveria pedir perdão aos crentes afetados pela restrição do celibato, pelas condições nos seminários e pelos milhares de casos de abusos de crianças e dizer-lhes: "Vou me retirar para um monastério e passarei o resto dos meus dias fazendo penitência pelo meu fracasso como sacerdote e como Papa".

Ninguém se surpreenderia se, depois de beber uma tisana noturna falhasse o coração de um homem entristecido e angustiado por causa das injustas críticas que atingem seu desempenho como bispo da Baviera e não perdoam nem seu amado irmão Georg. A revista alemã menciona o antecedente de Celestino V, um Papa do século XIII, que renunciou porque não se sentiu capaz de cumprir com suas funções.

Se algo disso ocorrer, Bergoglio precisa de uma folha de serviços limpa. Diante de uma pergunta sobre o Papa ideal, o presidente da Associação Alemã da Juventude Católica, Dirk Tänzler, disse à Der Spiegel que preferiria que o escolhido tivesse trabalhado em uma parte pobre da América do Sul ou em outra região atingida pela pobreza, já que teria uma visão diferente do mundo. A compaixão pela pobreza, compartilhada com a Sociedade Rural e a Associação Empresarial AEA, é o nicho de oportunidade escolhido pelo episcopado sob a condução de Bergoglio.

O Silêncio

É o cardeal que vincula seu descarrego com a eleição papal. Seu livro narra que quando a vida de João Paulo II se apagava e o nome de Bergoglio figurava nos prognósticos dos jornalistas especializados, "voltava a se agitar uma denúncia jornalística publicada poucos anos atrás em Buenos Aires" e que, "às vésperas do conclave, que devia escolher o sucessor do Papa polonês, uma cópia de um artigo com a acusação, de uma série do mesmo autor, foi enviada aos endereços de correio eletrônico dos cardeais eleitores com o propósito de prejudicar as chances que eram outorgadas ao purpurado argentino". Bergoglio diz em seu livro que nunca responder à acusação "para não fazer o jogo de ninguém, não porque tivesse algo para esconder". Ele não explica porque mudou agora.

Pastores e lobos

Na realidade, a primeira versão do episódio não se deve a nenhum jornalista, mas sim a Emilio Mignone. Em seu livro "Iglesia y dictadura", editado em 1986, quando Bergoglio não era conhecido fora do mundo eclesiástico, Mignone exemplificou com seu caso "a sinistra cumplicidade" com os militares, que "se encarregaram de cumprir a tarefa suja de limpar o pátio interior da Igreja, com a aquiescência dos prelados".

Segundo o fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), durante uma reunião com a Junta Militar em 1976, o então presidente da Conferência Episcopal e vigário castrense, Adolfo Servando Tortolo, concordou que, antes de deter um sacerdote, as Forças Armadas iriam avisar o bispo respectivo. Mignone acrescenta que, "em algumas ocasiões, a luz verde foi dada pelos próprios bispos. No dia 23 de maio de 1976, a Infantaria da Marinha deteve, no bairro de Bajo Flores, o presbítero Orlando Yorio e o manteve durante cinco meses na qualidade de desaparecido. Uma semana antes da detenção, o arcebispo [Juan Carlos] Aramburu havia lhe retirado sua licença ministerial, sem motivo nem explicação. Por diferentes expressões ouvidas por Yorio em sua detenção, fica claro que a Armada interpretou tal decisão e, possivelmente, algumas manifestações críticas de seu provincial jesuíta, Jorge Bergoglio, como uma autorização para proceder contra ele. Sem dúvida, os militares haviam advertido a ambos acerca de sua suposta periculosidade". Mignone se pergunta "o que a história irá dizer sobre esses pastores que entregaram suas ovelhas ao inimigo sem defendê-las nem resgatá-las".

A chaga aberta

Eu publiquei a história nesta mesma coluna, no dia 25 de abril de 1999. Além da opinião de Mignone, a nota incluiu a opinião de quem foi sua colaboradora no CELS, a advogada Alicia Oliveira, que disse o que agora repete no livro: que seu amigo Bergoglio, preocupado com a iminência do golpe, temia pelo destino dos sacerdotes do assentamento e lhes pediu que saíssem dali. Quando foram sequestrados, ele tentou localizá-los e buscar sua liberdade, assim como ajudou os outros perseguidos.

Por causa dessa nota, Orlando Yorio se comunicou comigo do Uruguai, onde vivia. Por telefone e por e-mail, refutou as afirmações de Bergoglio e Oliveira. "Bergoglio não nos avisou do perigo iminente" e "também não tenho nenhum motivo para pensar que ele fez alguma coisa pela nossa liberdade, mas sim todo o contrário", disse.

Os dois sacerdotes "foram libertados pela gestão de Emilio Mignone e a intercessão do Vaticano e não pela atuação de Bergoglio, que foi quem os entregou", acrescentou Angélica Sosa de Mignone, Chela, a esposa durante meio século do fundador do CELS. Seus testemunhos foram incluídos na nota "La llaga abierta", publicada no dia 09 de maio de 1999. Também foram transmitidas ali as posições de Bergoglio e do outro padre sequestrado naquele dia, Francisco Jalics.

Questão de Estilo

Em seu livro, Bergoglio diz agora que Yorio e Jalics "estavam preparando uma congregação religiosa, e lhe entregaram o primeiro rascunho das regras aos bispos Pironio, Zazpe e Serra. Conservo a cópia que me deram". Bergoglio também me entregou uma cópia. Expressa o tipo de dúvidas e de conflitos que foram comuns em um alto número de sacerdotes a partir do Concílio Vaticano II, com "a crise das congregações religiosas, os sinais dos tempos modernos, a coincidência com o sentir da busca dos jovens e a confirmação espiritual que sentimos em nosso modo de viver atual".

O problema, nesse caso, era como compatibilizar "o estilo inaciano da vida religiosa" com "a vida moderna [que] pedia um estilo novo". A ata acrescenta que as Congregações Apostólicas estão organizadas de modo que seus superiores "parecem se ocupar mais com as obras do que pela atenção espiritual de seus súditos". Em troca, eles idealizam o modelo das fundações monásticas e propõem que "a comunidade se una em torno de uma busca espiritual e de um projeto de vida e não em torno de obras". Isso apresenta uma "incompatibilidade pessoal" aos sacerdotes subordinados à disciplina de sua congregação.

Em sua carta ao padre Moura, Yorio menciona essa ata como resposta à pressão de Bergoglio para que dissolvessem a comunidade em Bajo Flores. Acrescenta que deixaram para Pironio, Zazpe e Serra "um esboço de estruturação de vida religiosa em caso de que não pudéssemos continuar na Companhia e fosse possível realizá-la fora", o que não implica que eles quisessem sair dela. Em uma viagem posterior à Argentina, Pironio disse-lhe que não havia consultado o assunto em Roma, porque Bergoglio "havia ido lhe ver para lhe dizer que o padre geral era contrário a nós". Zazpe respondeu que "o provincial andava dizendo que nos tiraria da Companhia", e Serra comunicou-lhe que lhe retirariam a licença na arquidiocese porque Bergoglio havia comunicado "que eu estava saindo da Companhia".

Segundo Bergoglio, o superior jesuíta Pedro Arrupe disse que eles deviam escolher entre a comunidade em que viviam e a Companhia de Jesus. "Como eles persistiram em seu projeto e o grupo se dissolveu, pediram a saída da Companhia". Bergoglio acrescenta que a renúncia de Yorio foi aceita no dia 19 de março de 1976. "Diante dos rumores da iminência do golpe, eu lhes disse que tivessem muito cuidado. Lembro que lhes ofereci, se chegasse a ser conveniente para sua segurança, que viessem viver na casa provincial da Companhia", disse Bergoglio. Afirma também que nunca acreditou que eles estivessem envolvidos em atividades subversivas. "Mas, por causa de sua relação com alguns padres das vilas de emergência, eles ficavam muito expostos à paranoia da caça às bruxas. Como permaneceram no bairro, Yorio e Jalics foram sequestrados durante um rastreamento".

Papeizinhos

Bergoglio também nega ter aconselhado os funcionários de Culto da Chancelaria que rejeitassem a solicitação de renovação do passaporte de Jalics, que ele mesmo apresentou. Segundo Bergoglio, o funcionário que recebeu o pedido lhe perguntou pelas "circunstâncias que precipitaram a saída de Jalics". Ele diz que respondeu: "Ele e seu companheiro são acusados de serem guerrilheiros e não tinham nada a ver".

O cardeal acrescenta que "o autor da denúncia contra mim revisou o arquivo da Secretaria de Culto, e a única coisa que mencionou foi que encontrou um papelzinho daquele funcionário no qual ele havia escrito que eu lhe disse que fossem acusados como guerrilheiros. Eu havia entregue essa parte da conversa, mas não a outra na qual eu lhe indicava que os sacerdotes não tinham nada a ver. Além disso, o autor da denúncia ignora minha carta, na qual eu colocava minha cara por Jalics e fazia o pedido".

Não foi nada disso. Em notas publicadas aqui e em meus livros "El Silencio" e "Doble juego", narrei a história completa e publiquei todos os documentos, começando pela carta de cuja omissão Bergoglio reclama. Depois, segue a recomendação do funcionário de Culto que o recebeu, Anselmo Orcoyen: "Em atenção aos antecedentes do requerente, esta Direção Nacional é da opinião de que não deve aceder".

O terceiro documento é o definitório. Esse papelzinho, assinado por Orcoyen, diz que Jalics tinha atividade dissolvente em comunidades religiosas femininas e conflitos de obediência, que esteve com Yorio na ESMA (detido, diz, em vez de sequestrado) por "suspeito contato com guerrilheiros". O ponto mais interessante é o seguinte, porque remete a intimidades da Companhia de Jesus, vistas a partir da ótica de Bergoglio, que não tinha nenhuma necessidade de confiar ao funcionário da ditadura: "Viviam em uma pequena comunidade que o Superior Jesuíta dissolveu em fevereiro de 1976 e se negaram a obedecer solicitando a saída da Companhia em 19/03".

Ele acrescenta que Yorio foi expulso da Companhia e que "nenhum bispo da Grande Buenos Aires quis lhe receber". A "Nota Bene" final é inegável: Orcoyen diz que esses dados lhe foram repassados "pelo padre Jorge Mario Bergoglio, firmante da nota, com especial recomendação de que não se fizesse o que é solicitado".

(não duvido nada que Bergoglio seja eleito Papa - ele tem o perfil ideal para o cargo)

Bergoglio - "Mentiras e calúnias" na Igreja argentina

 Fonte: Unsinos

 Em 1995, o jesuíta Francisco Jalics publicou um livro, "Ejercicios de meditación". Ao narrar seu sequestro, dizia que "muitas pessoas que sustentavam convicções políticas de extrema direita viam com maus olhos nossa presença nas favelas. Interpretavam o fato de que vivêssemos ali como um apoio à guerrilha e se propuseram nos denunciar como terroristas. 

Nós sabíamos de onde soprava o vento e quem era o responsável por essas calúnias. Assim, fui falar com a pessoa em questão e lhe expliquei que ele estava jogando com as nossas vidas. O homem me prometeu que faria saber aos militares que não éramos terroristas. Por declarações posteriores de um oficial e 30 documentos aos quais pude ter acesso mais tarde, pudemos comprovar sem lugar a dúvidas que esse homem não cumpriu sua promessa, mas, pelo contrário, havia apresentado uma falsa denúncia aos militares".

Em outra parte do livro, ele acrescenta que essa pessoa tornou "crível a calúnia, valendo-se de sua autoridade" e "testemunhou diante dos oficiais que nos sequestraram que havíamos trabalhado na cena da ação terrorista. Pouco antes, eu havia manifestado a essa pessoa que ele estava jogando com as nossas vidas. Ele devia ter consciência de que nos mandava a uma morte certa com as suas declarações".

A identidade dessa pessoa que é revelada em uma carta que Orlando Yorio escreveu em Roma em novembro de 1977, dirigida ao assistente geral da Companhia de Jesus, padre Moura. Esse texto permite conhecer o resto da história, pelo testemunho direto de uma das vítimas.

A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/12, 10-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Nessa recapitulação escrita 18 anos antes que o livro de Jalics, Yorio conta a mesma coisa, mas em vez de "uma pessoa" diz Jorge Mario Bergoglio [cardeal arcebispo de Buenos Aires]. Conta que Jalics falou duas vezes com o provincial, que "se comprometeu a frear os rumores dentro da Companhia e a se adiantar para falar com os membros das Forças Armadas para testemunhar nossa inocência". Também menciona as críticas que circulavam na Companhia de Jesus contra ele e Jalics: "Fazer orações estranhas, conviver com mulheres, heresias, compromisso com a guerrilha", semelhantes às que Bergoglio transmitiu à Chancelaria. Yorio não conhecia a existência desse documento, que eu encontrei cinco anos depois de sua morte. Em seu livro, Bergoglio diz o mesmo que lhes transmitia a Jalics e Yorio: que ele não acreditava na veracidade dessas acusações. Por que, então, devia comunicá-las ao governo militar, como prova o documento que se reproduz abaixo?

 

Uma boca importante

Quando Bergoglio disse que havia recebido relatórios negativos sobre ele, Yorio falou com os consultados por meio de seu superior. Pelo menos três deles (os sacerdotes Oliva, José Ignacio Vicentini e Juan Carlos Scannone) lhe disseram que não haviam opinado contra ele, mas sim a favor. No clima da Argentina, a acusação de pertencimento à guerrilha em "uma boca importante (como a de um jesuíta) podia significar simplesmente a nossa morte. As forças de extrema direita já haviam metralhado um sacerdote em sua casinha e haviam raptado, torturado e abandonado morto a um outro. Os dois viviam em favelas. Nós havíamos recebido avisos no sentido de nos cuidarmos", escreveu Yorio ao padre Moura.

Ele acrescenta que Jalics falou não menos do que duas vezes com Bergoglio para fazer com que ele visse o perigo em que essas versões os colocavam. Segundo Yorio, "Bergoglio reconheceu a gravidade do fato e se comprometeu a frear os rumores dentro da Companhia e a falar com membros das Forças Armadas para testemunhar nossa inocência. [Mas como] o provincial não fazia nada para nos defender, começamos a suspeitar de sua honestidade. Estávamos cansados da província e totalmente inseguros".

Tinham seus motivos. Durante anos, Bergoglio os havia submetido a um fustigamento insidioso, sem assumir de forma aberta as acusações contra ele, que sempre atribuía a outros sacerdotes ou bispos que, uma vez confrontados, o desmentiam. Bergoglio havia lhes garantido uma continuidade de três anos em seu trabalho na vila de Bajo Flores. Mas informou ao arcebispo Juan Carlos Aramburu que estavam ali sem autorização. O aviso lhes chegou por meio de um dos fundadores do Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo e da pastoral "villera", Rodolfo Ricciardelli, a quem o próprio Aramburu havia contado. Quando Yorio o consultou, Bergoglio lhe disse que Aramburu "era um mentiroso" e que empregava essas "táticas para incomodar a Companhia".


A infâmia pública

Em nosso intercâmbio epistolar, Yorio defendeu que, no clima de medo e delação instalado dentro da Igreja e da sociedade, os sacerdotes que trabalhavam entre os mais pobres "eram demonizados, postos em suspeita dentro de nossas próprias instituições e acusados de subverter a ordem social". 

Nesse contexto, foram submetidos por Bergoglio "à proibição e à infâmia pública de não poder exercer o sacerdócio, dando assim ocasião e justificação para que as forças repressivas fizessem com que desaparecêssemos. Podiam nos avisar de que havia perigos, mas sem frear as difamações das que os mesmos que nos faziam o serviço de nos avisar eram cúmplices. Podiam nos alertar que estávamos marcados e acusados, mas mantendo no mistério e na ambiguidade as causas da acusação, tirando-nos assim a possibilidade de nos defender".

Uma vez que saíram da Companhia de Jesus, Bergoglio lhe recomendou que fossem ver o bispo de Morón, Miguel Raspanti, em cuja diocese poderiam salvar o sacerdócio e a vida. O provincial se ofereceu para enviar um relatório favorável para que os aceitasse. Yorio e Jalics souberam pelo vigário e por alguns sacerdotes da diocese de Morón que la carta do provincial Bergoglio a Raspanti continha acusações "suficientes para que não pudéssemos exercer mais o sacerdócio".

– Não é verdade. Meu relatório foi favorável. O que acontece é que Raspanti é uma pessoa de idade que às vezes se confunde – defendeu-se Bergoglio diante de Yorio. Mas em seu novo encontro com o bispo de Morón, ratificou as acusações, segundo o relato que Raspanti transmitiu a outro sacerdote da comunidade de Bajo Flores, Luis Dourrón. Yorio insistiu então com Bergoglio.

– Raspanti diz que seus sacerdotes se opõem a que vocês entrem na diocese – arguiu desta vez o provincial.

Outra alternativa possível era que eles se integrassem à Equipe da Pastoral "Villera" do Arcebispado de Buenos Aires. Seu responsável, padre Héctor Botán, propôs isso ao arcebispo Aramburu.

– Impossível. Há acusações muito graves contra eles. Não quero nem vê-los – respondeu-lhe.

Um dos sacerdotes "villeros" se queixou ao vigário episcopal da região de Flores, Mario José Serra.

– As acusações vêm do provincial – explicou-lhe Serra.

O próprio Serra foi encarregado de comunicar a Yorio que haviam lhe retirado sua licença para exercer seu ministério na arquidiocese, devido ao fato de que o provincial havia informado que "eu saí da Companhia".

– Não tinham por que te tirar a licença. Essas são coisas do Aramburu. Eu te dou licença para que continues celebrando missa em privado, até que consigas um bispo – disse-lhe Bergoglio.

A última tentativa para lhes conseguir um bispo que os incardinasse foi feita pelo sacerdote da arquidiocese Eduardo González. Convocado à Assembleia Plenária do Episcopado que começou no dia 10 de maio de 1976, ele propôs o caso ao arcebispo de Santa Fe, Vicente Zazpe.

– Não é possível se encarregar deles, porque o provincial anda dizendo que vai lhes tirar da Companhia – defendeu.

A Equipe da Pastoral "Villera" enviou uma carta de protesto a Bergoglio, com cópia ao nuncio Pio Laghi, a Aramburu e a Raspanti, que não responderam. O tempo havia se esgotado, e poucos dias depois Yorio e Jalics foram sequestrados, conduzidos à Esma [Escola de Mecânica da Armada] e depois a uma casa operativa, na qual foram torturados.

Um interrogador com ostensivos conhecimentos teológicos disse a Yorio que sabiam que ele não era guerrilheiro, mas que, com o seu trabalho na vila, unia os pobres, e isso era subversivo. Sua liberdade foi negociada pelo governo em troca de que o episcopado recebesse o chefe do Estado Maior do Exército, Roberto Viola, e o ministro da Economia, José Martínez de Hoz. Um dia antes dessa visita ao episcopado, Yorio e Jalics foram drogados e depositados por um helicóptero em um banhado de Cañuelas.

Depois de recuperar a liberdade, Yorio se refugiou em uma igreja e depois na casa de sua mãe. A proteção de um bispo era mais urgente do que nunca. O único que o aceitou foi Jorge Novak. Quando começaram as batidas policiais na região e soube que perguntavam por Yorio, Novak insistiu para que ele saísse do país. "Bergoglio não queria me mandar para Roma, mas por pressão da minha família e de Novak eu saí. Estava escondido, porque houve uma ordem de Videla para me buscar", escreveu-me Yorio em 1999.

Quando reapareceram em Cañuelas, a então irmã Norma Gorriarán, da Companhia de Maria, visitou Yorio na casa de sua mãe. Em uma entrevista para o meu livro "Historia política de la Iglesia Católica argentina", realizada no dia 27 de julho de 2006, ele lembrou que estavam descascando ervilhas quando chegou a irmã de Yorio com a informação de que o estavam buscando. "Eu o levei a uma casa de irmãs em Villa Urquiza, onde tive Orlando por um mês, em uma salinha, no terraço".

Bergoglio exigiu que dissesse onde estava Yorio, "aparentemente para protegê-lo. Mas não me parecia confiável". A religiosa se negou. Bergoglio "tremia, furioso pelo fato de que uma freira insignificante o enfrentava. Apontava para mim e me dizia: `Você é responsável pelos riscos que Orlando corre, onde quer que esteja`. Ele queria saber onde ele estava".

Por último, Laghi conseguiu os documentos para ele, e Bergoglio lhe pagou a passagem para Roma. "Mas ele não pôde me dar nenhuma explicação sobre o ocorrido antes. Adiantou-se a me pedir por favor que não as desse, porque se sentia muito confuso e não saberia me dar essas informações. Eu também não lhe disse nada. O que poderia lhe dizer?".

Yorio lembrou que apenas em Roma o secretário do geral dos jesuítas "tirou a venda dos meus olhos". Esse jesuíta colombiano, o padre Cándido Gaviña, "me informou que eu havia sido expulso da Companhia. Também me contou que o embaixador argentino no Vaticano havia lhe informado que o governo dizia que havíamos sido capturados pelas Forças Armadas porque os nossos superiores eclesiásticos haviam informado o governo que pelo menos um de nós era guerrilheiro. Gavigna pediu-lhe que confirmasse isso por escrito, e o embaixador o fez".

Em troca, Jalics viajou aos Estados Unidos e depois à Alemanha. Escreveu que tinha mais ressentimento para quem os havia entregue do que contra seus capturadores e, apesar da distância, "não cessavam as mentiras, calúnias e ações injustas". Mas, conta em seu livro, em 1980, queimou os documentos comprovatórios do que ele chama de "o delito" de seus perseguidores. Até então, os havia guardado com a secreta intenção de utilizá-los. "Desde então me sinto verdadeiramente livre e posso dizer que perdoei de todo o coração".

Em 1990, durante uma de suas visitas ao país, Jalics se reuniu no instituto Fe y Oración, da rua Oro 2760, com Emilio e Chela Mignone. Segundo a ata desse encontro, escrita por Mignone, Jalics lhes disse que "Bergoglio se opôs a que, uma vez posto em liberdade, ele permanecesse na Argentina e falou com todos os bispos para que não o aceitassem em suas dioceses em caso de se retirar da Companhia de Jesus". Bergoglio diz agora que, quando Jalics vem ao país, ele o visita. A família de Yorio tem uma informação diferente: é Bergoglio quem o busca, como parte de sua operação de dissimulação.

 

 

 

O papel de Bergoglio na ditadura argentina 

Fonte : Unisinos

Diante de um grande público, no qual se encontravam membros da Igreja Católica e de outras confissões, foi apresentado nesta sexta-feira o livro "El jesuita: Conversaciones con el cardenal Jorge Bergoglio", dos jornalistas Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin.

A nota é do jornal Clarín, 12-06-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

No livro, Bergoglio defende sua atuação durante a última ditadura depois que o jornalista Horacio Verbitsky o acusou em uma série de artigos de ter virtualmente "entregue" ao governo militar dois sacerdotes de sua congregação, a Companhia de Jesus, que trabalhavam em uma vila portenha.

Bergoglio também se refere à atuação da Igreja nos anos de chumbo. A apresentação esteve a cargo de "Canela" (a jornalista Gigliola Zecchin); Juan Carr, da Rede Solidária e de Alberto Zimerman, da DAIA..

Videla admite execuções em ditadura argentina e agradece ajuda da Igreja

Fonte: Unisinos

17 de Fevereiro de 2012

"A ditadura militar cumpriu seus objetivos." Com estas palavras o general Jorge Rafael Videla justificou o golpe militar do qual participou em 1976, dando início a um regime militar de sete anos de duração, que deixou milhares de civis torturados e mortos pela ditadura, além de centenas de milhares de exilados políticos e econômicos.

A reportagem é de Ariel Palacios e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 17-02-2012.

Em entrevista à revista espanhola Cambio 16 - suas primeiras declarações à imprensa desde o fim da ditadura, em 1983 - Videla, de 87 anos, que está preso há vários anos na Unidade 34 do Serviço Penitenciário do quartel de Campo de Mayo por crimes contra a humanidade, reconheceu a morte de 7 mil civis por parte da ditadura.

A declaração significa uma drástica mudança na posição de Videla, que durante as últimas três décadas, nos diversos julgamentos aos quais foi submetido, negou a existência de desaparecidos, de uma política sistemática de campos de concentração e da eliminação física dos críticos do regime.

Na entrevista, concedida à publicação madrilenha após oito meses de negociações, Videla desconsiderou o número de 30 mil desaparecidos, estatística defendida pelas organizações de direitos humanos desde 1983, além de negar os 10 mil mortos oficiais registrados pela Comissão Nacional de Desaparecidos (Conadep), dirigida nos anos 80 pelo escritor Ernesto Sábato.

O ex-ditador, que cumpre duas penas perpétuas pelo assassinato de civis, afirma que os julgamentos de ex-integrantes da ditadura - que ocorreram desde a revogação das leis do perdão em 2004 no Parlamento e a confirmação dessa medida pela Corte Suprema em 2007 - "não são justiça, mas vingança" dos governos do ex-presidente Néstor Kirchner e da presidente Cristina Kirchner. "Agora predomina o espírito de absoluta revanche. Não existe justiça."

Videla - que até esta semana só havia falado no banco dos réus e para os escritores de uma biografia sua, O Ditador - reclamou que os militares são tratados como "os malvados" e os integrantes de grupos "terroristas" (os guerrilheiros e militantes de organizações como Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo) são apresentados como os "bons".

O ex-ditador sustentou que sua relação com o clero foi excelente. "Mantivemos uma relação muito cordial, sincera e aberta", afirmou. "Capelães militares davam assistência para nós e nunca foi quebrada essa relação de colaboração e amizade."

Avaliação
Segundo Videla, a situação institucional atual, com o governo da presidente Cristina Kirchner, é "pior" do que na época de María Estela Martínez de Perón, mais conhecida como "Isabelita", a presidente que o general depôs em 24 de março de 1976.

As declarações do militar tiveram ampla repercussão. Taty Almeida, uma das líderes das Mães da Praça de Mayo-Linha Fundadora, afirmou que Videla e outros ex-ditadores "estavam acostumados à impunidade e nunca imaginaram que um dia chegaria a Justiça legal". A organização Hijos, composta por filhos de desaparecidos, respondeu a Videla: "Nossa única vingança é a de ser felizes".

Antropóloga revela facetas da atuação de juízes durante a ditadura militar argentina

Fonte: Unisinos

18 de Abril de 2012

“Enquanto acima (nos tribunais) rejeitavam os habeas corpus, abaixo (na “morgue”) ordenavam enterrar os corpos destes mesmos que haviam sido rejeitados”, acentuou uma advogada, numa das entrevistas que María José Sarrabayrouse Oliveira realizou para sua pesquisa. O livro “Poder Judicial y Dictadura: El caso de la morgue” é o resultado de sua tese de doutorado. Nele, a partir da análise de um concreto processo judicial, a antropóloga aborda o comportamento dos diferentes atores judiciais, durante o terrorismo de Estado, e as relações que condicionaram suas práticas. Além de fazer uma configuração histórica, ela estabelece três grupos entre os magistrados: os orgânicos, os independentes e os adaptados.

A entrevista é de Victoria Ginzberg, publicada no jornal Página/12, 15-04-2012. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Como começa a sua pesquisa?
Ela é produto da minha tese de doutorado. Minha tese de licenciatura foi sobre a implementação dos julgamentos orais na Justiça nacional. Uma das coisas que me chamou a atenção, como pesquisadora, era que em diferentes personagens do Poder Judiciário surgia a ideia de que “antes, o Poder Judiciário não era assim”. Diziam que havia baixado muito o nível e explicavam que isto acontecia devido à chegada “menemista” (Carlos Menem). A acusação estava em que nomeavam pessoas que vinham de fora, que não eram os “nyc” (nascidos e criados). Comecei a perceber que entre os que eles supunham que valiam, das pessoas da família judiciária, muitos haviam ingressado ou feito sua carreira durante a ditadura. A partir daí, veio-me a ideia de averiguar o que aconteceu com a Justiça durante a ditadura. Cruzou na minha vida a causa da “morgue” judiciária, uma denúncia do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais) à raiz de que pela “morgue” passaram desaparecidos sem a intervenção de um juiz competente, e por ordem de forças militares. No processo estava envolvido o presidente da Câmara do Crime e, por isso, vários juízes se eximiram de intervir.

 
E o que você encontrou? Como se pode caracterizar o comportamento do Poder Judiciário durante a ditadura?
As ações da Justiça foram, em geral, cúmplices. Acredito, também, que esta cumplicidade teve suas nuanças, e tento explicar isto a partir de três grupos: os adaptados, os orgânicos e os independentes. Houve diferentes responsabilidades. E tinham juízes e funcionários do judiciário que atuaram de forma independente. Este é o caso de Carlos Oliveri, que é quem termina levando o caso da “morgue”, produzindo a prova pelo desaparecimento de Norberto Gómez, que é o que, por sua vez, permite a abertura do caso da “morgue”.

Ou seja, que havia rachaduras por onde avançar, embora com limitações.
Totalmente. Tinham coisas que podiam custar a sua vida, mas neste caso, por exemplo, deixou-se a prova sobre um crime assentada num documento público e isso, depois, serviu para uma série de questões. Depois, tiveram claros colaboradores e, por outro lado, esse grande mundo cinzento dos que corriam para um lado ou para o outro... Acredito que o Poder Judiciário tem muito disso, de “adaptação ao meio”. Em relação aos empregados, eram pessoas que viviam disso.

Os médicos fizeram as autopsias que permitiram estabelecer que não aconteceram enfrentamentos, mas, que os assassinatos foram à queima-roupa. Foi um ato de independência ou produto não desejado da burocracia?
É complicado. Quando se lê os depoimentos dos médicos, no expediente administrativo feito à Corte, nos depoimentos anteriores a 30 de outubro de 1983, eles contam que fizeram seu trabalho, sem maiores detalhes. A posteriori, logo depois que fizeram a revolução. Eles mesmos diziam “se não tivesse sido por nós que deixamos o registro, não se saberia sobre isso”. Está correto. Serviu o que fizeram, porém, não sei se foi intencional. Eu penso que se curaram na saúde. Disseram “eu cumpro com minha tarefa”.

Durante a investigação de Oliveri, descobriu-se que houve um acordo do presidente da Câmara do Crime com as autoridades militares.
Tem a ver com essa ideia de que a ditadura criou um Poder Judiciário. O que a ditadura fez, foi montar-se sobre uma estrutura preexistente e utilizá-la em função de seus interesses. Para isso, teve que tirar pessoas, fazer desaparecer pessoas, colocar em cana outros. O que também teve que fazer – e isto mostra o encontro entre o presidente da Câmara do Crime, Mario Pena, e o coronel Roberto Roualdés – é negociar. Quando, em 1971, com o “Camarón” (a Câmara Federal na Penal) se arma um foro antissubversivo, não precisam buscar pessoas de fora, integram-se com a Justiça e são pessoas de renome e com muito poder. Quando assume Cámpora e se revoga o “Camarón”, deram a seus membros uma aposentadoria antecipada. E são os que voltam em 1976.

Atualmente, existem várias pesquisas sobre a cumplicidade dos juízes. Você acredita que a “família judiciária” segue operando ou aconteceu uma ruptura nos laços de lealdade?
Penso que a distância ajuda para que se possa pesquisar. Porém, segue sendo um assunto difícil. Para além das amizades de um juiz com outro, existe algo corporativo, ainda que haja muito mais críticos. Nos casos em que a cumplicidade foi flagrante, talvez não existam problemas, porém, quando o assunto não é tão óbvio, existem problemas. Porque as lealdades não são entre pessoas, são entre grupos. Pertencer a certo grupo, certo setor, o respeito tido a certas pessoas na academia. Sobre Pena, muitos de meus entrevistados diziam “que barbaridade o caso da ‘morgue’”, porém “era um tipo muito afável, muito simpático, um fã do River, muito querido na faculdade”. Acredito que a família judicial segue operando.

No livro, surge uma espécie de naturalização, na Justiça, sobre o que acontecia na ditadura. Como se fosse normal que entrasse grande quantidade de cadáveres jovens na “morgue”, que não interviesse um juiz, que os militares tinham tomado o controle do que a Justiça deveria fazer.Existe uma questão que se relaciona com qualquer instituição, não somente com a Justiça. Giddens fala de “consciência prática”, que é a forma como o indivíduo funciona cotidianamente, sem ter uma reflexão absoluta sobre o que faz. Porém, mesmo que tenha uma consciência prática, isso não significa que não tenha uma consciência reflexiva: se lhe perguntarem por que você faz determinada coisa, você pode responder. Acredito que, aqui, operava a consciência prática, num contexto de terror. Sabemos quais são as novas regras e pensamos que, neste estado de exceção, este é o funcionamento. E não existiam grandes questionamentos. É a lógica do “eles farão algo” e funciona como uma justificativa, como a daquele que vê que sequestraram seu vizinho. Não é quem denuncia, mas olha para outro lado e se autojustifica. Acredito que houve muito disso por parte dos juízes. É certo, também, os juízes viram um monte de coisas que não dizem. Tinham coisas que estavam fora do cotidiano e eles optaram por naturalizar.

Porém, um juiz não é como qualquer vizinho, ele possui outras responsabilidades.
Claro. E circula por lugares diferentes, possui acesso à informação que outros não têm e possui mais poder do que qualquer filho do vizinho. Então, aquilo como “não me dei conta, não sabia o que estava passando” é relativo, mas, pode-se pensar na naturalização, no sentido em que pensavam que certos valores estavam bem.

E como você enxerga, agora, o Poder Judiciário? Segue priorizando os adaptados?Acredito que sim. Porém, de qualquer maneira, há um ativismo judiciário interessante. Há figuras interessantes. Porém, há muitos adaptados.

Pode-se, também, pensar que o Poder Judiciário, como outras instituições, é produto de seu contexto histórico?Porém, é demasiadamente produto, muito produto.

Sobre o processo da “Morgue” Judiciária, em 1982, o CELS denunciou que, entre 1976 e 1980, a “morgue” havia realizado autopsias, entendido atestados de óbitos e ordenado o enterro de vários cadáveres, de desaparecidos, por ordem das forças militares e sem a intervenção de um juiz competente. O processo foi iniciado a partir de dados que surgiam dos levantamentos sobre o desaparecimento do médico Norberto Gómez, que havia sido feito pelo juiz Carlos Oliveri.
Durante a investigação do processo da “morgue”, soube-se que o presidente da Câmara do Crime, de que dependia a “morgue”, havia chegado a um acordo com o coronel Roberto Roualdés, responsável do comando da subárea da Capital Federal, para que a “morgue” se ocupasse dos cadáveres que os militares deixavam. Os médicos realizavam as autopsias, que estabeleciam que os mortos tinham sido assassinados à queima-roupa, e, depois, as remetiam à Justiça militar.

Quando o CELS denunciou os fatos da “morgue”, que envolviam a Câmara do Crime, vários juízes se eximiram de levar adiante o caso, que, finalmente, ficou sob a responsabilidade do próprio Oliveri.

Em outubro de 1985, Mario Pena, então presidente da Câmara do Crime, foi processado por violação dos deveres de funcionário público, porém, depois o processo prescreveu. De sua parte, a Corte Suprema levou adiante um recurso administrativo sobre o assunto.

Pela 1ª vez, justiça reconhece que João Batista Drumond morreu sob tortura no DOI-Codi

Postado em: 17 abr 2012 às 20:55 | PP

Em decisão inédita, o juiz Guilherme Madeira Dezem, da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo determinou a retificação do assentamento de óbito de João Batista Franco Drummond, lavrado em 16 de outubro de 1976, alterando o local da morte, “avenida 9 de julho” para dependências do “Doi Codi do II Exército em São Paulo”.

ditadura militar joão batista drummond
Justiça afirma que João Batista Drumond morreu de traumatismo craniano para “decorrência de torturas físicas”


O juiz Guilherme Madeira Dezem, do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo, é o primeiro no país a reconhecer a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fundamentar uma sentença sobre crimes cometidos pela ditadura (1964-85). A decisão é inédita também ao reconhecer a mudança da causa e do local da morte do militante João Batista Drumond, assassinado em 1976.

Agora, no atestado de óbito, onde antes se lia “Avenida 9 de Julho” deve constar “DOI-Codi”, um aparelho de repressão do regime, e onde constava “traumatismo craniano” será necessário grafar “decorrência de torturas físicas”.

A ação foi apresentada este ano por Maria Ester Cristelli Drumond, viúva da vítima, que ainda mora com as filhas em Paris, cidade de exílio durante o regime autoritário. “Mesmo que passados 35 anos do fato, o que a família objetivamente almeja é que a verdade prevaleça sobre a mentira. A versão de que estava em fuga e foi atropelado há muito tempo se sabe que é uma farsa montada pela ditadura”, afirmou, por telefone, o advogado responsável pela causa, Egmar José de Oliveira. “Para grata surpresa, o juiz entendeu o pedido e até inovou na decisão com os argumentos. Porque usa como fundamentação a decisão da Corte Interamericana.”

Na decisão, o magistrado cita trecho da sentença da Corte, proferida em 2010, na qual se afirma que o Estado brasileiro falhou na tarefa de garantir que a Lei de Anistia não significasse empecilho para o conhecimento da verdade. Com isso, segundo Dezem, estava equivocada a visão do Ministério Público Estadual de dizer que certidão de óbito não é “local” para discutir crime ou outros elementos de questionamento jurídico. “Não se trata de discutir se tortura pode ser incluída como causa mortis ou não”, discorda o juiz. “Trata-se de reconhecer que, na nova ordem jurídica, há tribunal cujas decisões o Brasil se obrigou a cumprir e esta é mais uma destas decisões.”


Este ano, o Ministério Público Federal (MPF) se valeu pela primeira vez da decisão da Corte Interamericana para apresentar pedidos de condenação penal de agentes do Estado a serviço da repressão. O caso mais conhecido é o do coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió. A Procuradoria no Pará pediu a condenação dele pela morte de cinco militantes no caso conhecido como Guerrilha do Araguaia, mas a Justiça Federal rapidamente rejeitou o caso valendo-se da argumentação de que a Lei da Anistia garante proteção a este tipo de ação.

A recusa se vale de decisão de 2010 do Supremo Tribunal de interpretar que o dispositivo, aprovado em 1979 pelo Congresso sob intervenção, é fruto de amplo acordo da sociedade para assegurar a transição à democracia e, portanto, não pode ser revisto. Oito meses depois, a Corte Interamericana, reconhecida pelo Brasil e integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), afirmou que não se deveria utilizar a legislação como pretexto para deixar de apurar as violações do passado e garantir a punição de criminosos.

 

Histórico

Em 1972, João Batista, já na clandestinidade, foi condenado à revelia a 14 anos de prisão pela Justiça Militar, que tomou como base a Lei de Segurança Nacional (LSN). Segundo a ação movida pela família, ele, Haroldo Lima, Aldo Arantes, Renato Rabelo, Ruy Frazão e Rogério Lustosa decidiram ingressar no PCdoB.

Quatro anos depois, policiais e militares liderados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e pelo então comandante do II Exército (sob o comando do qual funcionava o DOI-Codi), general Dilermando Gomes Monteiro, invadiram a sede do partido, no bairro da Lapa, em São Paulo, e comandaram o episódio que ficou conhecido como Chacina da Lapa. Nas horas seguintes foram presos vários militantes, entre eles João Batista, que morreu horas depois. A versão do Comando Militar, que forçou a família a aceitar o atestado de óbito falso, é de que ele “foi atropelado na fuga – precisamente na Avenida 9 de Julho com Rua Paim”.

A ação observa que houve reconhecimento na Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, primeiro, e na Comissão de Anistia, depois, de que a causa da morte foi a tortura, e, o local, as dependências do DOI-CODI.

Para o advogado da família, que também é conselheiro da Comissão de Anistia, a decisão ajuda a criar jurisprudência para futuros processos e está em sintonia com o atual momento, de abertura da Comissão da Verdade e de debates na sociedade sobre a necessidade de investigar os fatos do passado. “Essa decisão abre luzes para o restabelecimento da verdade e o resgate da memória no nosso país. O juiz soube compreender o momento histórico que estamos vivendo.”

Leia abaixo a íntegra da sentença

Trata-se de ação promovida por MARIA ESTER CRISTELLI DRUMOND em que pretende a retificação do assento de óbito de seu falecido marido JOÃO BATISTA FRANCO DRUMOND para que conste que faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo e para que a causa morte seja retificada para morte “decorrente de torturas físicas”. Junta documentos com a petição inicial. Trata-se do óbito de seu falecido marido lavrado em 18 de dezembro de 1976, contante do livro 18, às fls. 138v, do Cartório do Registro Civil do 20º Subdistrito Jardim América. Durante a instrução foi colhida prova oral160/169. A autora apresentou já em audiência seus memoriais finais.

O Ministério Público manifesta-se pela procedência em parte do pedido. Afirma que é possível a retificação do local do óbito, bem como afirma estar comprovado o local em que ele ocorreu. Quanto à “causa mortis” afirma não haver previsão legal para o quanto pretendido pelo autor, bem como sustenta não haver prova segura para sua pretensão (fls. 173/175). É, em breve síntese, o que cumpria relatar. FUNDAMENTO E DECIDO. A questão do local do óbito encontra-se amplamente comprovada nos autos. Com efeito, a prova oral é segura em demonstrar que a vítima faleceu nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo.

Neste ponto, o depoimento de Wladimir Pomar é fundamental para que se compreenda o local da morte: afirmou a testemunha que se encontrava com a vítima em reunião do Partido Comunista, ocasião em que foram embora juntos do local. Chamou a atenção da testemunha que a vítima possuía um saquinho de biscoito e que este saco de biscoito foi onde a vítima colocou exemplares do jornal “Classe Operária”. Posteriormente, naquela mesma noite, foram presos (cada um em um local) e a testemunha ouviu de um carcereiro que havia sido preso alguém com um saquinho de biscoitos e dentro o jornal “Classe Operária” (fls. 161/162). 

Ainda, a testemunha Haroldo disse, às fls. 163, que também se encontrava na mesma reunião e no mesmo dia em que houve a prisão.

Afirma que no dia seguinte fora enviado para o Rio de Janeiro e que, no avião, identificou que se encontravam no avião Pomar, Aldo e Elza Monerrat, mas não estava a vítima Drumond. 

Também a testemunha Aldo, às fls. 165, afirma que sua sessão de tortura foi subitamente interrompida e que percebeu que havia algo errado acontecendo no local. Após a tortura, foi levado para uma sala em que ficou algemado e lá pode perceber que havia uma reunião acontecendo e depois entendeu que se tratava da reunião para decidir sobre como lidar com a morte de Drumond.

Nilmário Miranda e Paulo Abrão, por sua vez, atuaram nos processos relativos à análise dos direitos dos anistiados políticos. Seus depoimentos confirmam que, na qualidade de julgadores destes processos administrativos, ficaram convencidos do falecimento de Drumond nas dependências do DOI/CODI. A questão do local do falecimento encontra-se amplamente comprovada nos autos. Neste ponto o representante do Ministério Público, inclusive, manifesta-se favoravelmente à pretensão da autora.

Resta a questão da causa mortis. Aqui, dois são os óbices apresentados pelo representante do Ministério Público: a) ausência de prova e b) ausência de previsão legal. Vejamos cada um dos pontos. Quanto à ausência de prova, não me parece acertada a manifestação ministerial, com a devida vênia. Nilmário Miranda em seu depoimento esclarece que o julgamento administrativo foi unânime no sentido da responsabilidade do estado pelo homicídio ocorrido nas dependências do DOI/CODI em decorrência da tortura.

É importante notar, inclusive, que não se trata de simples opção política pela via “a” ou “b”, mas de manifestação do direito à memória e à verdade, tanto que na comissão que julgou este caso havia membro das Forças Armadas e que votou favoravelmente à pretensão da autora. Também, da mesma forma, é importante notar que há sentença proferida pela Justiça Federal em 1993 da lavra da Dra. Marianina Galante (fls. 37/50) que reconhece ter havido tortura no presente caso. Então, com a devida vênia, entendo que o primeiro óbice apresentado pelo representante do Ministério Público encontra-se superado.

Quanto ao segundo ponto, entendo que se trata do principal tema a ser observado neste caso: analisar o que efetivamente pode integrar a certidão de óbito como causa mortis. Aqui, a posição do representante do Ministério Público mostra-se dotada de estrita técnica e para a maioria dos casos envolvendo esta questão, não tenho dúvidas que a solução seja de improcedência. Vale dizer: certidão de óbito não é local para discussão atinente a crime ou qualquer outro elemento passível de questionamento ou interpretação jurídica.

É dizer: no atual sistema jurídico, não podem as partes pretender a retificação de certidão de óbito para que se conste que a pessoa morreu em decorrência de latrocínio, ou homicídio, ou qualquer outro elemento. No entanto, há detalhe neste caso que o torna diferente de todos os outros existentes no país. Este caso liga-se ao chamado Direito à Memória e à Verdade e, acima de tudo, liga-se à relação do sistema jurídico interno com a Proteção Internacional dos Direitos Humanos. No Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, houve a condenação do Estado brasileiro em 24.11.2010.

Nesta sentença ficou reconhecido que: “El Estado ha incumplido la obligación de adecuar su derecho interno a la Convención Americana sobre Derechos Humanos, contenida en su artículo 2, en relación con los artículos 8.1, 25 y 1.1 de la misma, como consecuencia de la interpretación y aplicación que le ha dado a la Ley de Amnistía respecto de graves violaciones de derechos humanos. Asimismo, el Estado es responsable por la violación de los derechos a las garantías judiciales y a la protección judicial previstos en los artículos 8.1 y 25.1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, en relación con los artículos 1.1 y 2 de dicho instrumento, por la falta de investigación de los hechos del presente caso, así como del juzgamiento y sanción de los responsables, en perjuicio de los familiares de los desaparecidos y de la persona ejecutada indicados en los párrafos 180 y 181 de la presente Sentencia, en los términos de los párrafos 137 a 182 de la misma.” (p. 116).

Vale dizer, há sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina que o Brasil efetive medidas para o reconhecimento do Direito à Memória e à Verdade. Daí a particularidade deste caso que o afasta de todos os demais com pretensões similares. Não se trata de discutir se tortura pode ser incluída como “causa mortis” ou não. Trata-se de reconhecer que, na nova ordem jurídica, há tribunal cujas decisões o Brasil se obrigou a cumprir e esta é mais uma destas decisões.

Assim é a lição de André de Carvalho Ramos que ensina que “Já no sistema judicial interamericano há o dever do Estado de cumprir integralmente a sentença da Corte, conforme dispõe expressamente o artigo 68.1 da seguinte maneira: ‘Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes’” (RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos, 2ª edição, São Paulo, Editora Saraviva, p. 235). Também é importante notar que neste mesmo julgado da Corte, o juiz Roberto de Figueiredo Caldas em seu voto faz importante advertência: “31.É preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil.

É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas.” Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido para determinar a retificação da certidão de óbito de fls. 21 para que onde se lê “falecido no dia 16 de dezembro de 1976 na Av. 9 de Julho c/R;Paim” conste “falecido no dia 16 de dezembro de 1976 nas dependências do DOI/CODI II Exército, em São Paulo” e onde se lê causa da morte “Traumatismo craniano encefálico” leia-se “decorrente de torturas físicas”.

Após certificado o trânsito em julgado, concedo o prazo de até 30 (trinta) dias para a extração de cópias necessárias. Custas à parte autora. ESTA SENTENÇA SERVIRÁ COMO MANDADO, desde que por cópia extraída pelo setor de reprografia do Tribunal de Justiça, assinada digitalmente por este(a) Magistrado(a) e acompanhada das cópias necessárias ao seu cumprimento, inclusive da certidão de trânsito em julgado, todas numeradas e rubricadas, com certidão abaixo preenchida pela Sra. Coordenadora ao Sr. Oficial da Unidade do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais competente para que proceda às retificações deferidas.

Outrossim, se aplicável, poderá nesta ser exarado o respeitável “CUMPRA-SE” do Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Corregedor Permanente competente, ordenando seu cumprimento pelo Senhor Oficial da respectiva Unidade do Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais. Ciência ao Ministério Público. Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.Certifico e dou fé que em caso de recurso deverá ser recolhido 2% do valor dado à causa, sendo que o mínimo são 05 UFESPs (Lei 11.608, artigo 4º, inc. II, § 1º). Certifico ainda que o valor do porte de remessa ao Tribunal de Justiça é R$20,96 por volume, a ser pago em guia própria à disposição no Banco do Brasil. (Provimento 833/04 do CSM).

João Peres, com Portal Vermelho
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