terça-feira, 17 de maio de 2011

Houve compromissos da Igreja com a repressão na Argentina, diz Pérez Esquivel

15/9/2007

unisinos

“Deus não mata.” Essa inscrição, escrita com o próprio sangue por um detento na parede da Superintendência de Segurança Federal, deixou uma marca que nunca mais se apagou no Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel.

Na última audiência contra o ex-capelão da Polícia bonaerense Christian von Wernich, tanto a Igreja Católica argentina como o Vaticano foram duramente questionados. “Tratei de motivar a cúpula da Igreja para que nos ajudasse na busca dos desaparecidos, mas nunca tivemos resposta”, afirmou.

Depois de relatar seu cativeiro e a vôo da morte do qual se salvou, Pérez Esquivel sentenciou: “Houve concepções ideológicas e interesses que levaram setores da Igreja a se comprometerem com a ditadura e com a repressão”.

A matéria é do jornal Página/12, 14-09-2007. A tradução é do Cepat.


Em sua declaração, descreveu um encontro com o Papa João Paulo II no qual lhe apresentou um relatório com 84 casos de crianças desaparecidas e recebeu uma resposta: “Você tem que pensar também nas crianças dos países comunistas”.

Diante do tribunal também se apresentou o teólogo e ex-sacerdote, Rubén Dri, que enviou ao então presidente da Conferência Episcopal, o cardeal Raúl Primatesta, um documento sobre as violações dos Direitos Humanos que nunca foi respondido.

Os familiares dos funcionários civis que deviam declarar ontem por sua participação na última ditadura, não ficaram para escutar o relato de Pérez Esquivel, presidente do Serviço de Paz e Justiça (Serpaj) na América Latina.

Ele tinha sido citado como Prêmio Nobel da Paz – para o qual foi candidato estando no cativeiro – e por sua participação no Movimento Cristão não violento na América Latina que, em 1975, deu lugar ao Movimento Ecumênico e à Assembléia Permanente pelos Direitos Humanos.

Com seu testemunho, Esquivel deu contas das similitudes do processo militar em toda a América Latina e do “avanço entre luzes e sombras, com grandes contrastes” da Igreja.

Depois de 24 de março de 1976, abandonou o país e viajou para Riobamba, Equador, onde foi preso junto com 14 bispos latino-americanos e 4 norte-americanos por um batalhão do exército local num episódio que foi relacionado com a “Operação Condor” e “a internacional do terror”.

Ali também foram acusados de subversivos, e o bispo de Riobamba lhes respondeu: “O único livro subversivo que temos é o Evangelho”. Para esse encontro eram aguardados dois bispos argentinos, Enrique Angelelli, de La Rioja, e Vicente Zaspe, de Santa Fé. “Com Angelelli havia falado alguns dias antes de seu assassinato. Tinha dificuldades para chegar ao Equador porque haviam assassinado dois sacerdotes de sua diocese”, detalhou Pérez Esquivel de suas últimas conversações com o bispo. “O que acontecia quando se trabalhava nas favelas – declarou –, quando se atendia os pobres e os camponeses, quando se trabalhava com os setores mais necessitados, era que o sistema os via como inimigos”.


De volta à Argentina, no dia 4 de abril de 1977, Pérez Esquivel foi preso no departamento de polícia quando tentava renovar seu passaporte. A partir de então passou pela Superintendência de Segurança Federal – para onde também levaram o diretor do jornal Buenos Aires Herald, Robert Cox e a família Graiver –, pela base aérea de Morón em El Palomar e pela Unidade número 9 de La Plata. “Nunca fui interrogado apesar das torturas”, resumiu. Além disso, fez uma análise clara sobre a situação geral: “A doutrina da segurança nacional, imposta como política para todo o continente, é muito clara: assinala que é preciso esvaziar a religião de conteúdo por causa da ação psicossocial que exerce sobre os povos”.

Em 1981, aconteceu a primeira audiência com o Papa. As Mães e as Avós da Praça de Maio – que ainda estavam em formação – haviam elaborado um relatório com o caso de 84 crianças seqüestradas e desaparecidas no país. “Eu o entreguei nas mãos do Papa – lembrou. Não foi uma reunião feliz. Foi uma reunião muito complicada, um recebimento muito duro e muito frio. Disse ao Papa que lhe levava o dossiê que nos havia sido dado por Chicha Mariani, fundadora das Avós da Praça de Maio”.

“Mandei este relatório por três canais diferentes, mas ele me disse que o mesmo nunca chegou em suas mãos. O Papa guardou isso e depois, muito mal humorado, me disse: Você tem que pensar nas crianças dos países comunistas. Eu lhe respondi que temos que pensar em todas as crianças do mundo, mas estas são crianças seqüestradas e desaparecidas na Argentina por uma ditadura que se diz cristã e ocidental”, relatou.

Em outras oportunidades a Nunciatura Apostólica recebeu uma chamada de intervenção por parte do Vaticano. Alguns desses encontros com o núncio Pio Laghi “foram muito duros e muito críticos”. “Aqui estiveram os três comandantes à noite e lhes falei da questão dos desaparecidos e sobre os direitos humanos na Argentina. O que quer que faça?, eu não posso fazer o que os bispos argentinos não querem fazer”, foi a resposta de Pio Laghi numa dessas reuniões, segundo relatou Pérez Esquivel.

Na madrugada de 5 de maio de 1977 o levaram até o que Pérez Esquivel reconheceu como o aeroporto de San Justo. “Vejo na pista um avião – relatou – e me algemam. O avião era pequeno. Havia um oficial, um suboficial, três soldados, o piloto e o co-piloto. Voa sobre o Rio da Prata, o Paraná das Palmas, o Paraná Guazú, o Paraná Mirim, a ilha Martín García, reconheço a costa do Uruguai, a barra de San Juan. O avião dá voltas e voltas sobre esse lugar até que chega uma ordem para que o avião se dirigisse à Base Aérea de Morón, no Palomar. Ou seja, sou um sobrevivente desses vôos da morte”.

O último testemunho pertenceu a Rubén Dri, teólogo e filósofo que havia sido ordenado sacerdote em Chaco e que teve que se exilar no México a partir de 1976. Ali elaborou um documento sobre as violações dos Direitos Humanos que enviou ao cardeal Primatesta sem que este lhe respondesse. “Achávamos estranho que a hierarquia eclesiástica não denunciasse estes terríveis fatos”, confessou. Além disso, criticou a existência das capelanias porque os militares podem confessar-se com o sacerdote que lhe corresponde.

No julgamento se colocou o problema da responsabilidade do capelão que, segundo Dri, se após denunciar os fatos ao seu bispo não recebe a ordem de abandonar seu cargo, deve renunciar por sua própria conta. “É uma aberração aceitar trabalhar num lugar em que se violam todos os direitos cristãos”. Recusou totalmente que possam ser consideradas como confissões as condições em que Von Wernich atuava nos centros clandestinos. “A confissão não é válida se o que a recebe pertence a outra religião” e, em sendo católico, “tem que haver um consentimento absolutamente explícito”, esclareceu. Além disso, sustentou que é um ato totalmente privado, razão pela qual não é lícito que haja outras pessoas presentes nesse momento.

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