segunda-feira, 18 de abril de 2011

'Quem inaugurou a Operação Condor, quando sequer havia esse nome, foi o Brasil'. Entrevista especial com Jair Krischke

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Entrevista especial com Jair Krischke

Depois de a Justiça da Itália determinar a prisão preventiva de 146 pessoas da América Latina, incluindo 13 brasileiros, em função do desaparecimento de dois italianos em 1980, durante a ditadura militar, a discussão sobre a existência da Operação Condor voltou à tona.

Por mais que o governo não oficialize, as provas estão aí: o Brasil não apenas participou, mas foi quem coordenou a atividade. Além disso, uma das grandes lutas é para que o Brasil abra os arquivos da ditadura, pois todos os países que passaram por esse período político já o fizeram. Para Jair Krischke, ativista dos direitos humanos, “quem inaugurou a Operação Condor, quando sequer havia esse nome, foi o Brasil”. 

Em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone, Krischke falou sobre o desenrolar desse processo movido pela Itália, sobre os arquivos que continuam fechados, a influência dos Estados Unidos em relação à Operação Condor e sobre os direitos humanos no Brasil. 

“Isto é uma exigência da democracia. Não se pode imaginar uma democracia sólida no Brasil, sem que este período seja examinado, sem que a sociedade brasileira saiba quem fez e o que fez, quem foi o responsável e por qual ato. Isto é fundamental para a democracia. 

Do que serve essa democracia se ela é incapaz de revolver o seu passado e colocar as vísceras das suas misérias e das suas barbáries à mostra, para que a sociedade conheça? Sem resolver esse problema, nossa democracia será sempre precária”, afirmou.

Jair Krischke é graduado em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, ele fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (a principal Organização Não-Governamental ligada aos Direitos Humanos da Região Sul) e o Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno.


Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando todos os países que passaram por uma ditadura militar já abriram seus arquivos relacionados a este período, o Brasil é o único que se recusa a mexer em tais documentos e, por isso, é acusado de obstruir essa apuração. Como é esse trabalho de resgate histórico de uma época tão sofrida e da qual é tão difícil de se recolher informações? 
 Jair Krischke – Eu chamo a atenção para o seguinte: o presidente Lula, em quem depositávamos muita esperança, até agora não recebeu os familiares dos mortos e desaparecidos. Quase no final do ano passado, houve uma cerimônia de lançamento de um livro que relata os trabalhos da Comissão de Mortes e Desaparecidos. Para esta cerimônia, familiares foram convidados. Mas não para serem recebidos formalmente pelo presidente, para ele dar uma atenção a estes reclames. Pelo contrário, os arquivos continuam intactos e o governo em silêncio. 

E isso é tão interessante e desolador que há uma decisão judicial, com bastante tempo, que manda o Exército abrir os arquivos referentes ao Araguaia. E, para surpresa nossa, o presidente Lula determinou à Advocacia-Geral da União que recorresse. 

O recurso foi feito, mas perdido. Foi conduzido até o Supremo que determinou a manutenção de uma primeira decisão de abertura, e, até agora, o Governo Federal não cumpriu uma decisão judicial, que é simples e singela, a de abrir os arquivos do caso específico da Guerrilha do Araguaia. 

O Brasil, que foi o exportador da doutrina da Segurança Nacional para todos os seus vizinhos, que treinou e capacitou os repressores na arte da tortura e do interrrogatório, resiste olimpicamente a examinar este período. 

No Uruguai, neste exato momento em que nós estamos conversando, temos na prisão um ex-presidente da democracia, um ex-presidente da ditadura, um ex-ministro de Relações Exteriores, junto com vários oficiais do exército. 

Na Argentina, outros generais e coronéis estão presos. No Chile, é a mesma coisa. 
No Brasil, até agora, nem o Cabo da Guarda foi molestado pela Justiça brasileira. 

Com essa decisão da Justiça italiana, houve aqui um “frisson”. Sim, eles terão que prestar contas à Justiça italiana, porque é assim que a humanidade deve proceder. 

Não andamos todos estes séculos de civilização para chegar a este ponto de tapar, de esconder crimes bárbaros. Não se trata de vinganças, mas, sim da responsabilidade que o Estado tem. E por isso nós cobramos do Estado.

IHU On-Line – O que implica o fato de o Governo ainda não ter aberto esses arquivos?
Jair Krischke – Faço minhas as palavras do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, César Brito, que diz solenemente: há muito já vi o Brasil mostrar as feridas não cicatrizadas de nossa memória. E essa recusa sistemática do Estado brasileiro em pôr a limpo o que se passou no período da repressão, agora, com essa decisão da Justiça italiana, nos traz o constrangimento de uma censura externa para a qual nós não temos defesa moral. O Brasil tem se negado a fazer e, por isso, agora “paga um mico” internacional, de ver o que deveria ter sido feito aqui ser exigido fora do país.

IHU On-Line – A Operação Condor foi uma idéia brasileira?
Jair Krischke – Quem inaugurou a Operação Condor, quando sequer havia esse nome, foi o Brasil. O país a praticou na Argentina nos anos 1970, 1972, 1974, quando este país ainda vivia a democracia. 

O golpe na Argentina foi em março de 1976. E a reunião que criou a Operação Condor foi celebrada no final de novembro, em Santiago, no Chile. Então, quem tinha a experiência e a prática? O Brasil tinha praticado isso e, quando passou a ser chamada de Operação Condor, teve uma presença muito discreta. Eu costumo dizer que os militares brasileiros sempre tiveram a cautela de não deixar impressões digitais. 

Eles praticavam, faziam, sim, mas tinham cautela para não deixar vestígios. Mas volto a frisar: o Brasil treinou os agentes chilenos, uruguaios, argentinos e paraguaios, isto é, teve influência nos golpes militares. 

O embaixador brasileiro de Santiago do Chile, naquele momento, Câmara Canto, era considerado o quinto homem da junta militar, dada a importância dele. No estádio nacional, onde centenas de milhares de presos eram submetidos às torturas e aos vexames, se encontravam brasileiros orientando a tortura e os interrogatórios. E existem testemunhas disso. 

Por tudo isso, o Brasil teve, sim, um papel protagônico, especialmente em razão dessa cautela de não deixarem as impressões digitais. Eu gosto muito de lembrar aquele filme Estado de sítio, de Costa-Gravas, em que há uma cena muito interessante. Nela, aparece um avião Varig baixando no aeroporto de Carrasco. O avião estaciona e dele são retiradas caixas que sugerem conter aparelhos de tortura. Na cena seguinte, aparece aquele estadunidense que veio ensinar tortura no Brasil, que andou por Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, treinando as nossas polícias e depois foi para o Uruguai.

Ele aparece dando uma aula de tortura, e, na parede ao fundo, uma bandeira do Brasil e uma do Uruguai. É claro que isso não é casualidade. O cineasta sabia o que estava fazendo.


IHU On-Line – Qual é a influência que os Estados Unidos tiveram nessa idéia da Operação?
Jair Krischke – Essa intervenção estadunidense é muito forte. Nós não podemos esquecer que todos os ditadores, estes que lideraram a repressão, em toda a nossa América Latina, foram oficiais treinados na Escola das Américas, que ficava no canal do Panamá. 

Mais recentemente, quando o canal do Panamá foi devolvido ao governo panamenho, esta Escola das Américas foi transferida para território estadunidense, onde ainda hoje é freqüentada por militares aqui da América Latina, inclusive, por brasileiros. 

A história dos facínoras deste período negro, um período recente, passa pela Escola das Américas. E, mais ainda, podemos criticar os Estados Unidos por “n” razões que, certamente, serão verdadeiras. Mas eles lá cumprem a Lei. Estou me referindo à Lei de classificação e desclassificação de documentos. E aqui no Brasil se fez uma cópia, afinal a Lei brasileira que rege a matéria é uma cópia da Lei estadunidense. Essa Lei diz que quem pode classificar um documento como ultra-secreto é o presidente da República. 

Quem pode classificar um documento como secreto é o Ministro de Estado. Desse modo, se tem a hierarquia e quem pode classificar. E a Lei diz também que um documento ultra-secreto é mantido em sigilo durante 50 anos, renováveis por outros 50. Aqui no Brasil, esses documentos, que deveriam estar à disposição, já passaram e ultrapassaram este período, e o Estado brasileiro não cumpre a Lei. 

Os Estados Unidos cumprem. E, como cumprem, nós podemos conhecer o que aconteceu com os documentos norte-americanos. Deles, há um conjunto fantástico, quando o então presidente General Médici vai a Washington visitar Richard Nixon para tratar de uma intervenção brasileira em um processo eleitoral uruguaio. 

Isso porque o Brasil temia, assim como os Estados Unidos, que, na Revolução Uruguaia, fosse eleito o General Liber Seregni, pela Frente Ampla. Havia uma grande reunião de partidos políticos de centro e de esquerda. Então, como isso era inaceitável para o Brasil, ter ao lado um país com uma outra concepção ideológica, o General Médici foi a Washington tratar da interferência brasileira neste processo eleitoral. Inclusive, se Seiren fosse o vencedor, o Brasil colocaria em prática a Operação 30 horas; em 30 horas, o Brasil invadiria o Uruguai e ocuparia o país todo. Trata-se de uma verdade histórica a que temos acesso nos documentos norte-americanos. 


IHU On-Line – A Itália entrou com um processo contra o Brasil para julgar os seus desaparecidos como vítimas da Operação Condor. No que consistirá este processo?
Jair Krischke – O processo não é contra o Brasil, e sim contra brasileiros que praticaram crimes. Neste primeiro momento, é a Itália. Já tenho notícias de que a Espanha deverá fazer o mesmo. Por que a Itália toma esta atitude? Por que aqui no Brasil desapareceram dois cidadãos ítalo-argentinos, que tinham também a nacionalidade italiana. E a Lei italiana entende que quando um cidadão italiano é vítima de um crime político como esse, pois a motivação era política, o Estado italiano também é ofendido. Então, tomou-se esta providência de processar os autores. E o processo seguirá. O Brasil não tem cooperado. Mas estas pessoas serão julgadas, mesmo à revelia, e, fatalmente, condenadas. Já neste momento, estes que estão denunciados não podem sair do Brasil. Se colocarem o pé fora do Brasil, serão presos pela Interpol e levados para a Itália, para responder a um processo. 

Em março de 2007, duas figuras expoentes da repressão argentina foram condenadas. Uma foi o famoso capitão argentino conhecido como o “Anjo Loiro”, porque ele infiltrou-se numa Igreja onde as freiras se reuniam solidárias aos que eram vítimas das ditaduras. O Anjo Loiro sinalizava quais as madres que deveriam ser presas e assassinadas quando as beijava. Aquela madre que o Anjo Loiro beijava, quando terminava a reunião, ao dirigirem-se às suas casas eram presas, torturadas, assassinadas e desaparecidas. 

Ao lado deste, foi condenado um capitão de navio da armada argentina, Jorge Acosta. Estes dois foram, em março de 2007, condenados por esta mesma Justiça italiana à prisão perpétua. A Itália julgará, e isto é inevitável.

IHU On-Line – De que forma as pessoas que operaram dentro desta Operação Condor, ou a família dos que trabalharam na Operação, devem responder a estes processos?
Jair Krischke – Muito tem se falado: “ah, mas tem gente aí que está morta”. Mas também é réu neste processo o General Pinochet, por exemplo. 

Eu costumo dizer que aqui no Brasil a nossa história é composta só por bonzinhos. Nós não temos os mal-feitores na nossa história. A justiça italiana não quer saber efetivamente que cometeu o delito, o crime, e sim da cadeia de comando, quem comandava e a responsabilidade que tinha. Então, isto irá para a história. Tal sanção moral tem essa importância.

IHU On-Line – Como o Brasil pode se beneficiar abrindo esses arquivos da ditadura militar?
Jair Krischke – Isto é uma exigência da democracia. Não se pode imaginar uma democracia sólida no Brasil, sem que este período seja examinado, sem que a sociedade brasileira saiba quem fez e o que fez, quem foi o responsável e por qual ato. Isto é fundamental para a democracia. Do que serve essa democracia se ela é incapaz de revolver o seu passado e colocar as vísceras das suas misérias e das suas barbáries à mostra, para que a sociedade conheça? 

Sem resolver esse problema, nossa democracia será sempre precária. Isto é fundamental para um país civilizado e que quer marchar na fenda da democracia. 

Rever o seu passado e saber o que aconteceu é muito importante. Com esse episódio da Itália, eu tenho visto muitos militares falarem da anistia: “Ah, mas a anistia...”. Só que os dois crimes que a Itália quer investigar aconteceram depois da anistia. A Lei da Anistia é de 28 de agosto de 1979 e estes dois crimes cometidos são datados de 12 de março de 1980 e 26 de junho de 1980. Portanto, estão absolutamente à parte da anistia nem esta poderá salvá-los.

IHU On-Line – Em sua opinião, por que nomes importantes do atual governo, como os ministros Tarso Genro e Nelson Jobim, preferem manter fechados os arquivos da ditadura militar e descartam a possibilidade de extradição dos brasileiros acusados de tortura?
Jair Krischke – Em razão da Constituição Brasileira, é claro. Ela diz que o brasileiro nato não pode ser extraditado. E eu aplaudo essa postura, mas o Brasil é obrigado a julgá-los. O ministro Nelson Jobim não foi um homem que enfrentou a ditadura. Ele não tem absolutamente nenhum um papel, mesmo que menor, na resistência à ditadura. Tarso Genro, sim, tem uma história de resistência. Mas o ministro Nelson Jobim já foi presidente do Supremo, portanto ele tem a obrigação de saber que a anistia não alcança essas pessoas e tem dito solenemente que esses crimes estão prescritos, o que é inverídico. 

Quando um ministro diz isso, ele está tomando uma posição de um inculto, coisa que não confere com a realidade. Ele sabe perfeitamente que os crimes são de desaparição, que é um crime continuado, portanto é um crime passível, sim, do exame pela justiça brasileira e seus autores, e a responsabilização dos mesmos. Agora, a atitude do ministro Tarso Genro me causa um espanto, mesmo que agora, recentemente, ele já tenha mudado um pouco o discurso. Essa mudança de discurso certamente é porque lá na Europa, onde ele esteve recentemente, existe em vigência um entendimento jurídico mais ou menos uniforme sobre este tema do qual ele já tomou consciência e, por isso, está mudando seu discurso. Espero que mude completamente.

IHU On-Line – Recentemente, um ex-militar pela primeira vez declarou que o Brasil fez parte da Operação Condor. Que frestas essa informação abre no país, que afirma não ter participado desta atividade?
Jair Krischke – Eu diria que existe uma farta documentação que evidencia que sim, mas agora certamente você se refere a uma sentença da justiça argentina do dia 18 de dezembro de 2007. Eu estava em Buenos Aires porque fui testemunha nesse processo. Foram condenados seis oficiais do exército argentino, inclusive um ex-comandante e chefe, mais um policial federal argentino. Eles foram condenados a 25 anos de prisão. Testemunharam várias pessoas e um deles disse solenemente: “Nós tínhamos, no Brasil, duas bases de operação. Uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro. E tínhamos uma terceira base em Paso de los Libres, que é território argentino, mas era só cruzar a ponte, portanto copa franca”. 

Há um outro depoente, que se chama Antonio Erminio Simon, coronel do exército argentino, um dos condenados a 25 anos de prisão, que diz solenemente que comandou o serviço de inteligência sediado em Paso de los Libres e que esse serviço era vinculado ao estado maior do exército argentino. Por outro lado, as operações e as ordens de batalha estavam vinculadas ao Comando do Terceiro Exército Brasileiro, que hoje chama-se Comando Militar do Sul e que tem sede em Porto Alegre, com abrangência no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Isto está no processo. É depoimento de um oficial do exército argentino que chefiou o serviço de inteligência naquela região. 

IHU On-Line – Que avaliação você faz em relação à promoção dos direitos humanos no país?
Jair Krischke – Já há avanços. Existe uma consciência bastante maior, mas mesmo assim precária. Ainda aqui no Brasil não se entendeu claramente que violar os direitos humanos não é apenas cometer tortura ou agressão. Quando eu digo Estado, estou falando da União Federal, que inclui os estados federativos e os municípios, que sonega educação aos seus filhos, quando desprotege a infância, quando não cuida da velhice e quando deixa a saúde pública em estado de miséria. Esse Estado viola os direitos humanos brasileiros, não oferecendo proteção às pessoas em relação à violência que está disseminada no Brasil até nos pequenos municípios. 

O crime é algo que está socializado, ou seja, todas as classes sociais estão expostas a essa violência e os Estado não as protege. Isto causa uma situação muito complicada, frente, por exemplo, ao desespero das pessoas. 

Por elas se sentirem inseguras, se faz um filme chamado Tropa de elite, que exibe cenas de policiais torturando uma vítima. Quando isso acontece, a platéia aplaude. 

Eu vejo que também nós temos, em termos de direitos humanos no Brasil, uma sociedade enferma, que está doente. Ela não pode aplaudir, mas aplaude pelo seu desespero. Então, nós avançamos bastante, mas ainda estamos muito longe daquilo que seria minimamente o aceitável. Isto é um compromisso de todos. A questão dos direitos humanos passa por uma consciência coletiva. Todos devemos entender que os direitos humanos são importantes e fundamentais, porque eles envolvem regras de convívio social.

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