segunda-feira, 18 de abril de 2011

A autoridade da memória. Artigo de Reyes Mate

 


17/9/2008

unisinos

Professor de pesquisa do Conselho Superior de Pesquisa Científica (CSIC, no original em espanhol), Reyes Mate, em artigo publicado no jornal espanhol El País, comenta as intenções do juiz espanhol Baltasar Garzón de realizar um censo estatal de vítimas da Guerra Civil, com o objetivo de, possivelmente, incriminar os autores.

Mate também é autor de “La herencia del olvido” [A herança do esquecimento] (Errata Naturae, 2008, Madri) e “Memórias de Auschwitz” (Nova Harmonia, 2006) 

O artigo foi publicado no dia 14-09-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Confira a íntegra do texto:

“A memória”, escreve Walter Benjamin, “abre expedientes que o direito e a história dão por cancelados”. Que seja um juiz, Baltasar Garzón, quem tencione as competências do direito até o limite de suas possibilidades somente significa que a onda expansiva da memória acaba alcançando o direito.

A solicitude por parte do juiz de realizar um censo estatal de vítimas da
Guerra Civil, em vista de uma possível incriminação dos autores, é algo a mais do que um pleito legal. É uma iniciativa que vem se somar a outras, nas quais a memória transbordou as fronteiras do conveniente, seja no direito ou no saber. 

Recordemos que o Tribunal de Nüremberg, para se aproximar do descomedimento dos crimes nazistas, teve que inventar a figura do “crime contra a humanidade”, acabando por instalar séculos de jurisprudência na prescrição do crime ou na não-retroatividade da lei.

E sem ir tão longe, aí está a Assembléia Nacional francesa que, em 2001, aprovou a
Lei Taubira, que condena a escravidão por “crime contra a humanidade” e consagra o dia 10 de maio como dia que relembra “o tráfico de negros, a escravidão e suas abolições”. Essa lei, promovida por descendentes de escravos, deixou perplexo o bom francês que se perguntava por que recordar agora algo que já foi abolido em 1848 e que ninguém se lembra mais. 

Pois a razão é para que ele e pessoas como ele revisassem o republicanismo francês, do qual se sentem tão orgulhosos, capaz de negar com uma mão o que a outra prometia. 

Com efeito, enquanto pregava na metrópole o princípio da igualdade entre todos os citoyens, condenava além-mar os negros à escravidão. Isso produz como resultado um republicanismo de baixa qualidade. E poderíamos seguir relembrando como a memória de Auschwitz, por exemplo, está obrigando a repensar veneráveis conceitos, como o de moralidade ou racionalidade, instados por uns fantasmas, as vítimas, que durante séculos têm sido invisíveis.

Parece indiscutível que vivemos tempos de grande sensibilidade pela memória, daí o impacto que teve o anúncio do juiz
Garzón. O que temos que assumir é que essa sensibilização geral, que afeta a memória dos passados mais diversos, vem envolta em uma cultura da memória com conteúdos muito precisos, que convém tê-los presentes em face a turbulências futuras.

Em primeiro lugar, a memória se refere ao lado mais tenebroso e oculto do passado. Há passados que não precisam de memória, porque já estão recolhidos no presente (o passado dos vencedores) e outros (os esquecidos) que clamam por sua presença. Como estes não esquecem, as histórias “científicas”, que não foram contadas por eles, estão sempre em situação precária.

Em segundo lugar, a memória é uma categoria interpretativa. Sua função é dar significação moral e política a algo que sempre esteve presente e passou despercebido. Isso é o que permite dizer que a memória é justiça. 

Ninguém vai reparar o dano feito ao avô republicano abandonado em um galpão, mas a memória pode lhe resgatar da indiferença e dizer-nos que se cometeu uma injustiça e esta segue vigente. Essa forma modesta, mas persistente, de justiça não é impunidade, ainda que se entenda a justiça não tanto como castigo ao culpado, mas sim como memória do irreparável.  

Aimé Césaire, o líder negro da Martinica, descendente de escravos, prefere essa forma de reparação moral, que é a consciência por parte dos franceses da irreparabilidade do dano.

Em terceiro lugar, a memória é o início de um processo que pugna por acabar em reconciliação. A memória não resolve os problemas, mas os complica, porque, como bem se diz, “abre feridas” e, se as abre, é porque estão fechadas em falso.

Não se pode aventurar-se pelo caminho da memória sem se comprometer a pensar nos passos que levem à reconciliação dos afetados pela memória (os netos) em uma sociedade que se responsabilize pelos sujeitos daquela (os avós).

Dessas e de outras rubricas se deduz que a memória é perigosa. De alguma maneira, ela questiona a legitimidade do nosso presente, ainda que seja democrático, construído sobre o esquecimento de tantas injustiças. 

Perigosa, também, porque coloca à prova nossas convicções morais. Não podemos entregar-nos às vitimas do ETA [grupo separatista basco] e pedir que se vire a página com as da repressão franquista. Fazendo isso, demonstramos que não entendemos o principal, a saber, que ao recordar as vítimas o que nos move não é a promoção de nossa causa, mas sim a injustiça que foi feita a eles em vista de um futuro que desterre a violência da política.

A memória radicaliza o sentido da justiça, e esse é um caminho de longo percurso, porque o passado doloroso, ao qual começamos a nos mostrar coletivamente, certamente tem muitas surpresas reservadas para nós.

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