quarta-feira, 22 de junho de 2011

Crimes, sigilos e estocadas em Dilma

22/6/2011

unisinos

Os documentos reservados trazem claros indícios de que o Brasil teve um papel nada secundário na rede de sequestros e assassinatos tecida pelos generais sul-americanos. Sarney e Collor fizeram estremecer a aliança no governo.

A reportagem é de Darío Pignotti e está publicada no jornal argentino Página/12, 19-06-2011. A tradução é do Cepat.

Ataquem a Dilma. Desde o início da corrida rumo à presidência, um ano e meio atrás, Dilma Rousseff foi objeto de ao menos três investidas para dissuadi-la a jogar luz sobre os crimes da ditadura, a última delas na semana passada.

Declarações de um senador e uma militante de direitos humanos, assim como documentos secretos aos quais Página/12 teve acesso, indicam que por trás de todo o teatro empreendido para impedir a abertura dos arquivos da ditadura há um objetivo inconfessável: ocultar a participação brasileira na Operação Condor, mais prolongada e comprometedora do que se suspeita.

Em 2010, militares retirados berraram diante do “risco” que representava para o País a chegada de uma ex-guerrilheira ao Palácio do Planalto; este ano, um general da ativa, e com classe de ministro, formulou comentários antipáticos a qualquer averiguação sobre o passado, pressão à qual se somaram na semana passada dois ex-presidentes civis, ambos com simpatias nos quartéis.

José Sarney e Fernando Collor de Mello fizeram estremecer a, por momentos, frágil aliança governante, na qual eles ocupam a ala conservadora, ao propor que se sancione o sigilo interno dos documentos do regime e de outros governos do passado, exatamente nas antípodas do compromisso de trabalhar pela verdade assumido por Dilma em seu discurso de posse no dia 1º de janeiro passado.

Saber quem matou e torturou dissidentes da ditadura é inconveniente, pois “abrirá feridas” do passado, deixando o país exposto a escândalos equiparáveis aos causados pelo Wikileaks aos organismos de defesa e diplomáticos dos Estados Unidos, prognosticou com voz vacilante o octogenário Sarney.

Ventilar as histórias desconhecidas do regime seria uma ameaça aos altos interesses do Estado, comunicou em estilo solene Collor de Mello, recordado por sua efêmera passagem pelo Palácio do Planalto, no qual permaneceu menos de três anos devendo que renunciar em 1992, minutos antes que o Congresso aprovasse um impeachment contra ele.

Dilma acusou o impacto da estocada de Sarney e Collor, referendada por sue vice-presidente Michel Temer, tão direitista quanto aqueles, e fez saber que, em benefício da governabilidade declinaria da proposta de abrir os arquivos militares.

Mas depois de alguns dias de vacilação, e seus respectivos puxões de orelha de seu companheiro Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, a presidenta Dilma Rousseff se refez e na sexta-feira prometeu que “em matéria de direitos humanos não existe nenhum documento ultrassecreto”.

Não há uma mas várias razões que explicam tamanha pressão para manter longe dos olhos do público os bastidores do poder de fato.

Os jornais O Estado de São Paulo e Folha de S.Paulo, baseados em fontes diplomáticas e de Defesa, publicaram no sábado que nos papéis até hoje ocultados são detalhados projetos nucleares cuja divulgação poderia ressentir a relação com a Argentina, assim como dados sobre os subornos pagos à ditadura paraguaia para construir a Itaipu Binacional.

Este jornal consultou o senador Cristovam Buarque e a Janaína Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos sobre o abalo político da semana passada. “Não estou em condições de afirmar todas as razões de Sarney e Collor para pressionar de maneira tão forte como eles fizeram, mas se sabe que eles são sensíveis a um lobby histórico das Forças Armadas e do Itamaraty contra vários temas e a Operação Condor é algo que incomoda muita gente”, responde Buarque.

“Há mil motivos para tanta coação contra a presidenta Dilma, mas é obvio que também querem esconder a gravíssima participação do Brasil na Operação Condor. Os militares estão por trás das pressões de Sarney, ele sempre foi servil às Forças Armadas; já em 1975 pronunciou um discurso ameaçante, dizendo que ninguém tinha direito a investigá-las”, resenhou Janaína Teles.

Centenas de documentos rotulados como “sigilosos”, “confidenciais” e “reservados”, que foram analisados por este jornal reforçam as afirmações do senador Buarque e da historiadora Teles. Três desses papéis, com data de 3 de abril de 1978, 5 de abril de 1973 e 17 de junho de 1971, trazem claros indícios de que o Brasil foi uma parte nada desprezível da rede de sequestros e assassinatos tecida pelos generais sul-americanos.

O primeiro destes papéis reporta o rastreamento de um grupo de membros da organização Montoneros que se reuniria no interior do Brasil para retornar à Argentina durante a Copa do Mundo de 1978. Desprende-se de outros relatórios que os serviços secretos brasileiros montaram uma operação especial para impedir o retorno dos guerrilheiros.

O segundo papel, rotulado como “sigiloso”, demonstra o possível rastreamento realizado pelos agentes brasileiros, certamente abastecidos por informações dos serviços argentinos, de altos dirigentes políticos brasileiros na Argentina e na Europa, e as negociações que estes mantiveram com o general Juan Perón antes de sua radicação definitiva em Buenos Aires.

O terceiro, também classificado como “sigiloso”, foi reportado no dia 17 de junho de 1971 e é o mais revelador dos três documentos: descreve minuciosamente o sequestro no Aeroporto Internacional de Ezeiza, em uma operação com agentes de ambos os países, do guerrilheiro brasileiro Edmur Pericles Camargo, procedente do Chile. O informe foi elaborado pelo agregado militar em Buenos Aires e está com o selo da “Embaixada do Brasil”.

“A Operação Condor brasileira trabalhava desde muito antes de 1975, quando foi oficializada a Operação Condor regional no Chile (somando-se aos serviços da Argentina, Uruguai e Paraguai), estava organizada e contou com um esquema muito profissional de diplomatas-espiões pertencentes à Chancelaria, onde se criou especialmente para estes fins o CIEX (Centro de Informações no Exterior)”, explica Janaína Teles.

“Muitos militantes que haviam sido detectados pelos diplomatas do CIEX refugiando-se na Argentina, Chile ou Uruguai, mais tarde foram sequestrados e assassinados pela ditadura”.

Esse modus operandi, articulado por diplomatas e serviços de inteligência, possivelmente foi aplicado em um dos casos mais enigmáticos que até hoje não foi esclarecido na trama terrorista traçada entre Brasil e Argentina.

O argentino Antonio Pregoni, o francês Jean Henri Raya Ribard e o brasileiro Caipy Alves de Castro deixaram Buenos Aires em meados de novembro de 1973 e no dia 24 desse mês os três desapareceram no bairro carioca de Copacabana, segundo o informe elaborado por Teles, pesquisadora da Universidade de São Paulo.

“Estes desaparecimentos do Rio de Janeiro são como a ponta de um novelo repressivo que será muito difícil reconstruir caso não tivermos acesso aos arquivos que seguem sigilosos. O Brasil está na contramão da história, é o país mais atrasado na luta pela verdade e a justiça”, pondera Teles.

Para ela e as organizações de direitos humanos “Dilma simboliza uma esperança”, talvez a última de que o Brasil acabe com a amnésia.

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