domingo, 17 de março de 2013

Temos que revolucionar o que está nos sufocando

abj-noticias
jun 2011

Com 65 anos, Nilce Azevedo Cardoso hoje é psicopedagoga clínica em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Após ter passado cinco anos como clandestina dentro de seu próprio país, entrou em coma e teve amnésia devido às torturas sofridas pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Rio Grande do Sul. Tendo sido perseguida ao longo de sua vida por ser “comunista”, após estes traumas, tratou-se e foi estudar novamente. Aposentou-se como professora de Física. Apesar de todo sofrimento que passou e mesmo não tendo seus torturadores julgados, Nilce ainda acredita na luta dos movimentos sociais.

Nesta entrevista, concedida por e-mail, diz que tudo valeu a pena, pois ainda que a construção da democracia no Brasil avance apenas a passos lentos, os principais objetivos do movimento anti-ditatorial foram alcançados. E apesar de uma aparente comodidade da juventude atual, ela afirma que os jovens lutam sim, mas para combater outros males.


ABJ Notícias - A senhora ingressou na universidade em 1964. Durante esta época, participou de movimentos políticos. O que lhe motivou a participar desses movimentos?
Nilce Azevedo Cardoso - Entrei na faculdade tendo feito vestibular. E comigo entraram os tanques! Já isso me modificou a vida! O que estaria acontecendo? Eu morava em Ribeirão Preto. Sou paulista e vinha de cidade do interior, para uma universidade, em São Paulo capital, com muitos sonhos, e encontro uma situação de golpe de estado. Fiz USP, Física. Tiravam nossos professores, sumiam com as pessoas, nada era permitido fazer e uma ditadura começou a ser implantada. E durou depois 20 anos. Se eu não tinha, como não tinha mesmo, posição política, passei a ter e a combater a ditadura, pela volta de uma democracia que já estaria sendo construída com Jango no poder, antes do golpe. Indignação, então me fez participar do movimento.

ABJN - A senhora escreveu uma carta ao seu pai, que foi relatada em um livro da Assembleia Legislativa do RS chamado “Relatório Azul”. Nesse documento há detalhes de como foram as torturas recebidas, é algo muito forte de se ler. Valeu a pena passar por tudo aquilo?
Nilce - Sim, valeu a pena, pois fiz o que achei que deveria ter feito. Os responsáveis pelas torturas ainda responderão por seus atos, se conseguirmos que a justiça seja feita. Precisamos, antes, abrir todos os arquivos da ditadura. Lá encontraremos quem são os responsáveis pelas torturas e assassinatos de jovens que lutaram por um Brasil melhor e por socialismo. Tortura é algo inenarrável! O terror que não tem nome! Uma marca jamais apagável em nosso corpo e nossa alma. Gostaria de não ter sido torturada, certamente, mas se fui, os responsáveis terão que ser responsabilizados. A luta valeu a pena, isso sim!

ABJN - O Brasil de hoje é ou está perto de ser o Brasil que a senhora idealizava?
Nilce - Certamente o Brasil de hoje está melhor do que o que eu tinha naquela época. Primeiro porque nada se compara com um regime de ditadura, onde não existem cidadãos, porque estão sem direito algum. Lutamos para terminar a ditadura. Conseguimos. Lutamos por eleições diretas. Conseguimos. Lutamos por democracia. Nós lutávamos por um socialismo brasileiro a ser construído. Estamos a construir ainda . Se sabemos dos escândalos é porque temos democracia. Agora precisamos que a corrupção, que existe desde que o país foi invadido por Portugal, termine. Mas parece até fazer parte do ser humano, então precisamos ter um regime de governo com controle civil dos cidadãos, com transparência e responsabilidades assumidas. Sempre em prol do povo e não de interesses de uma pequena parcela da população.

ABJN - Hoje a juventude está acomodada e, por este motivo, não se mobiliza como antes?
Nilce - A sociedade tem tomado atitudes sim. E estamos podendo ver nestas eleições quem é quem, o que defendem. E poderemos daqui para frente cobrar, o que ainda não temos feito , enquanto conjunto, até as últimas consequências. Acho que a juventude se mobiliza sim , mas por outras lutas. São fruto de todos os anos de ditadura e as consequências são enormes. E, se não tomarmos cuidado de nosso povo, os traficantes o farão. O crack vencerá a parada... O bullying cada vez mais está aparecendo nas escolas e o prazer de aprender tem desaparecido. Mas ainda acredito que os jovens têm muita potência de luta. E será preciso que se mobilizem. Muitos estão fazendo isso.

ABJN - Precisam acontecer coisas piores e escândalos maiores do que os que já estão havendo, em nosso governo, para que a sociedade tome uma atitude?
Nilce - Não serão precisos escândalos, pois já há o suficiente. O que é preciso é muito amor. Fomos uma juventude movida a amor, solidariedade, generosidade. Demos nossas vidas por um país! Quer generosidade maior? Esses valores devem voltar a serem vividos. Lestes alguma estatística sobre o número de jovens que se suicidam? Que são assassinados no dia a dia? Que não tem juventude, e às vezes não puderam ser crianças? Ainda há escravos em nosso país. Agora têm sido denunciado os responsáveis.Temos agora menos brasileiros à beira da morte por miséria. Temos muitos que agora entram nas universidades. Mas há muito ainda para fazer. Precisamos todos construir uma nação livre, solidária, transformadora e crítica. Temos que revolucionar o que está nos sufocando. Em cada lugar serão necessárias ações concretas para que os jovens possam falar!

ABJN - Vê-se que os adolescentes de hoje não têm muito conhecimento sobre o período ditatorial. Por que, na sua opinião, isso acontece?
Nilce - Não há ainda interesse em contar a História verdadeira. Sempre alguém conta a história. Os que viveram têm que contar a história, caso contrário ela ficará contada pelos militares que fizeram o golpe, e pelos torturadores. Procura ver o filme “Utopia ou barbárie”, é um documentário de Sílvio Tendler. Também o filme “Cidadão Boesler”. Verás como tudo aconteceu. O diretor fez uma pesquisa de anos para fazer esse documentário. Excelentes esses dois filmes. Imperdíveis! Estamos pedindo que o primeiro concorra ao Oscar. É preciso lutar pelo conhecimento do que se passou nesses 20 anos de Brasil ditadura. Só assim poderemos fazer um novo Brasil. Quem desconhece o passado corre o risco de cometer os mesmos erros. Saber, tomar conhecimento, exige tomada de posição, nem sempre fácil nos dias de hoje, em que fomos transformados em mercadoria, por esse capitalismo arrasador. Tudo é passageiro, efêmero, descartável! Se quisermos deixar de ser assim teremos que lutar muito.

ABJN - Se este assunto fosse exposto mais claramente, pelas escolas e sociedade, não incentivaria a alguns jovens a se desacomodarem e, pelo menos, votarem com mais consciência?
Nilce - Certamente! Mas para isso é necessário contrariar interesses.

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