Terça, 26 de março de 2013
unisinos
No terceiro dia do julgamento por genocídio do ex-presidente Efraín Ríos Montt, os sobreviventes de massacres perpetrados pelo Exército contra a população civil desarmada continuaram narrando, na quinta-feira, dia 21, o horror vivido durante a guerra civil que ensanguentou o país centro-americano entre 1960 e 1996 e, especialmente, durante o mandato de Ríos Montt (1982-83). No primeiro plano, o principal imputado escutava, tieso como um manequim e sem mostrar emoção alguma, os relatos da selvageria com que as tropas sob seu comando massacraram comunidades rurais indígenas inteiras.
A reportagem é de José Elías e publicada no jornal espanhol El País, 21-03-2013. A tradução é do Cepat.
“Meu pai tinha 82 anos quando foi assassinado. Encontrei-o estirado em uma casa vizinha. Seu corpo estava coberto de sangue”, contou Diego Velásquez, que, às perguntas da juíza, precisou que o assassinato ocorreu no dia 20 de julho de 1982. Não pôde precisar se havia sido vítima das balas dos soldados ou se havia sido morto a facadas. “Só lembro que estava coberto de sangue”, disse através de um intérprete.
Juan López Mateo, sobrevivente de uma matança em uma aldeia de Nebaj (departamento de Quiché, ao norte do país), perdeu a sua família no dia 02 de setembro de 1982. Salvou a vida porque havia saído muito cedo para a milpa (plantio do milho). “Quando voltava para casa escutei o pranto de uma criança, o que me alertou que algo ruim estava acontecendo”, narrou. Conforme se aproximava do povoado, “escutei tiros. Eram cerca das 10 horas da manhã”, disse. Conseguiu chegar à sua casa pelas três horas da tarde, quando os solados já tinham ido embora. “Na minha casa encontrei os cadáveres da minha mulher e de meus filhos, de cinco e dois anos”, contou com a voz entrecortada. Perguntado se havia visto mais pessoas assassinadas, limitou-se a responder que “eram muitas”, mas que 31 anos depois não podia arriscar um número. Recordou que um de seus filhos havia sido asfixiado com uma corda e outro estava com a cabeça destroçada a golpes. Os soldados também queimaram a casa e destruíram todos os seus bens. “Foi o Exército”, expressou sem sombra de dúvida.
Quando cheguei em casa, encontrei os meus sogros e os meus três filhos mortos. Também mataram as quatro vacas que tinha.
Outra testemunha, Pedro Álvarez Brito, contou ao tribunal que os militares assassinaram toda a sua família. “O Exército cercou a casa”. Sua irmã, “que apenas tinha dado à luz”, outro de seus irmãos pequenos e ele mesmo conseguiram refugiar-se em um “temascal” (banho maia de vapor), de onde viram como a totalidade dos moradores da aldeia foi introduzida, à força, em uma casa.
“Um dos soldados”, acrescentou, “começou a apropriar-se das galinhas e frangos da família” dona da casa. Recorda que as aves eram 60, o maior patrimônio doméstico. “Por uma infelicidade, uma das galinhas, que não se deixava pegar, se meteu no ‘temascal’”, o que fez com que ele e seus irmãos fossem descobertos e levados, também à força, à casa. “Depois queimaram a casa”, contou Brito. O relato de outros sobreviventes abundou nessa imagem: que os soldados jogaram gasolina nas casas e meterem fogo para queimar as pessoas vivas.
“Não sei como fiz, mas consegui fugir do meio das chamas e me refugiei sob uma árvore. Assim estive escondido como um animal encurralado, por oito dias, sem comer nem beber. Nu e sem abrigo”. Como os militares haviam assassinado os seus pais e seus irmãos maiores, ficou sozinho. “Agora só peço justiça, para que meus filhos não sofram uma experiência semelhante”, concluiu.
Particularmente cruéis foram os testemunhos sobre os ataques perpetrados a partir de helicópteros. “Atiravam contra tudo o que se movia. Assim morreram indiscriminadamente crianças, mulheres e anciãos”, narrou uma mulher septuagenária.
Atiravam de helicópteros contra tudo o que se movia. Assim morreram indiscriminadamente mulheres, crianças e anciãos.
Em Villa Hortensia de San Juan Cotzal (Quiché), “no dia 10 de setembro de 1982 entraram os militares. Levaram todos os moradores e queimaram as casas. Meu pai, Nicolás Gómez, foi dos que morreram nesse dia”, relatou Inés Gómez. Na mesma incursão, o Exército matou toda a família de outro dos sobreviventes: “Quando cheguei na minha casa, encontrei os meus sogros e meus três filhos mortos. Também mataram as quatro vacas que tinha”.
Pedro Meléndez tinha 10 anos em 1982, quando presenciou o assassinato de seu pai e tio. “Meu pai – disse no tribunal – morreu baleado. Ao meu tio lhe cortaram o pescoço com uma faca”. O drama não terminou nesse momento. Os sobreviventes buscaram refúgio nas montanhas, onde viu morrer de fome os seus irmãos, de cinco, três e um ano de idade.
As denúncias se repetem e todas concordam em descrever um mesmo padrão no ataque. Mudam apenas o lugar e a data. “Creio que o Exército, que nos vigiava, aproveitava que os homens saíam para os trabalhos agrícolas para entrar na aldeia, violar e matar as mulheres”, disse Juan López Matón, que pontualizou que muitos daqueles que conseguiram refugiar-se nas montanhas morreram de fome, “pois os soldados queimavam as plantações”.
O processo, para o qual a promotoria apresentou 205 testemunhos entre peritos e testemunhas, continuará até que o último deles preste declarações. O fato de que os sobreviventes, indígenas, não falem espanhol contribui para a lentidão do julgamento.
Um processo histórico na América Central
— Efraín Ríos Montt, de 86 anos, converteu-se no primeiro ex-chefe de Estado centro-americano julgado por genocídio.
— Para levá-lo à justiça foi preciso esperar até o ano passado, quando Ríos Montt deixou de ser parlamentar: a imunidade parlamentar o protegeu durante anos de responder pelas atrocidades cometidas durante seu mandato, entre 1982 e 1983.
— Militar de carreira, Ríos Montt renunciou ao Exército para concorrer às eleições presidenciais de 1974, nas quais ficou em segundo lugar. Imbuído de um messianismo de requintes milenaristas – marca da Igreja evangélica pentecostal que abraçou em 1978 –, exercia trabalhos de evangelização quando o golpe militar de março de 1982 lhe ofereceu uma oportunidade para chegar ao poder.
— Nos apenas 17 meses que presidiu o país, a violência ensanguentou as zonas rurais. O Exército e os paramilitares executaram uma política de terra queimada com matanças generalizadas de camponeses e indígenas considerados próximos à guerrilha da Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG), sobretudo nos departamentos de Quiché e Huehuetenango.
— Ríos Montt, que ilustrava seus discursos com citações bíblicas, jactou-se da repressão armada como o método expeditivo mais eficaz para privar os insurgentes de sua base popular. “O bom cristão”, disse certa vez, é aquele que brande “a Bíblia e a metralhadora”.
— O ex-presidente é acusado pelo assassinato de ao menos 1.771 indígenas da etnia maia ixil. A promotoria o acusa também de tolerar a prática generalizada de violações, torturas e incêndios provocados contra propriedades de insurgentes.
— Cerca de 200.000 civis, a maioria indígenas de ascendência maia, foram assassinados entre 1960 e 1996 na guerra civil de uma sucessão de Governos de direita contra guerrilhas de inspiração comunista. Cerca de 45.000 pessoas desapareceram nesse período.
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