Educação elitizada, saúde privatizada, projetos de cultura
abortados: o Brasil de 2012 não se livrou das heranças do golpe contra
João Goulart em 1º de abril de 1964
Publicado em 30/03/2012, 08:25
"Onde estão os mortos e
desaparecidos?", questiona o rapaz a um antigo militar, no Rio.
Pergunta pertinente. E atual (©Fernando Rabelo/Folhapress)
São Paulo – A instalação da Comissão da Verdade, as ações contra
agentes do Estado envolvidos em torturas e sequestros, manifestações pró
e contra a punição de militares: o Brasil de 2012 não tem as
manifestações de massa das nações vizinhas quando se trata de direitos
humanos, mas não se pode afirmar que impere o marasmo de outrora.
Passados 48 anos do golpe contra o presidente constitucional João Goulart, a transição lenta, gradual e segura proposta pelos militares segue o curso do rio, com águas não tão mansas. É bem verdade que o regime autoritário que vigorou durante mais de duas décadas é um ilustre desconhecido para boa parte da população, ou um fato distante, mas quem desconhece os efeitos de uma educação de nível vexatório? Ou a dificuldade em contar com o serviço público de saúde?
A recente movimentação em torno do legado da ditadura ajuda a que o 1º de abril, data em que os militares deixaram a caserna – com apoio de parte da sociedade civil –, sirva à reflexão sobre os rumos do país, da mesma maneira que ocorre no 24 de março argentino. Enquanto saudosos defendem que se vire essa página da história, é razoável propor que, antes de virá-la, possamos lê-la.
A educação que se recebe atualmente tem, e muito, ligação com aquilo que foi feito lá atrás, nos anos seguintes ao golpe. A filósofa Marilena Chauí, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), considera que o acesso exclusivo ao ensino superior, deixando de fora as classes baixas, foi o prêmio garantido a setores da classe média que formaram um certo esquadrão ideológico do regime.
A transformação no currículo escolar e a orientação dos cursos universitários a uma formação técnica foram, para a professora, o caminho encontrado para a formação rápida de uma mão de obra “dócil”. "Além disso, eles criaram a disciplina de educação moral e cívica, para todos os graus do ensino. Na universidade, havia professores que eram escalados para dar essa matéria, em todos os cursos, nas ciências duras, biológicas e humanas. A universidade que nós conhecemos hoje ainda é a universidade que a ditadura produziu", relembra.
Nada mais exemplar neste sentido que a atual situação da USP, outrora de Chauí, Antonio Cândido, Aziz Ab'Saber, e que hoje tem um reitor que se vale de um Estatuto anacrônico, aprovado há 40 anos, para impor dificuldades à circulação do livre pensamento, tão caro ao ensino superior. João Grandino Rodas, persona non grata na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, transformou a Polícia Militar em frequentadora do campus, com o acúmulo de episódios de abuso de autoridade e de repressões gratuitas.
Por falar em gratuita, na saúde o regime abriu caminho ao ingresso das empresas privadas e criaram-se novas formas de mau uso do dinheiro público. A unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) foi a maneira de dizer que o serviço, até então prestado pelos hospitais ligados a essas entidades, não tinha mais condições de ser ofertado a todos os segurados. Era necessário que o Estado repassasse recursos ao setor particular, que passaria a cuidar da administração das unidades de saúde.
“Naquele momento, tudo o que é do Estado é visto como burocrático, lento, de baixa qualidade”, lamenta Sarah Escorel, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “É uma lógica financeira revestida do que seria um aspecto de modernização. Apresenta-se um cálculo de custo-benefício e argumenta-se que os países avançados, em especial os Estados Unidos, não têm serviço público.”
E o que dizer das transformações no setor de cultura? O golpe dá cabo, de imediato, de uma série de iniciativas populares no teatro, no cinema, na literatura. É difícil mensurar aquilo que foi perdido, o que jamais foi retomado e o que deixou de ocorrer em termos de inovação e de difusão de novas ideias. Para o cineasta Silvio Tendler, acompanhado de perto pela censura, a arte incomodou muito o regime porque era a grande forma de contestação. “Jornais tinham de ser reescritos, piadas refeitas, porque imbecis determinavam o que a gente poderia falar ou não”, diz o diretor de Jango, que lamenta o estágio atual do Brasil na tarefa de passar a limpo sua história. “O Brasil é um dos poucos países no mundo onde não houve uma Comissão da Verdade e torturadores e canalhas continuam em liberdade. Cometeram os crimes e ficou por isso mesmo.”
Até agora. Crescem as ações do Ministério Público Federal (MPF) contestando a validade da leitura proferida em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei de Anistia, aprovada em 1979, impede a punição penal de torturadores e sequestradores com base em um suposto processo de “reconciliação nacional”. Tomando como referência a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, também em 2010, procuradores têm lembrado que os corpos não apareceram – ou seja, os crimes ainda estão por aí.
O resumo da ópera está nas palavras de Aldo Corrêa, que perdeu irmão, irmã e cunhada entre 1973 e 1974 no episódio conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Elmo Corrêa, Telma Regina Cordeira Corrêa e Maria Célia Corrêa são três das pessoas apontadas pelo MPF no Pará como vítimas do coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, responsável pela repressão aos grupos de resistência à ditadura. “Não sei o que passa na cabeça deles de alegar que a Lei de Anistia considerou os desaparecidos como mortos. Isso é para eles. Para nós, familiares, não estão mortos. Se estão mortos, cadê o corpo? Como pode chegar a essa conclusão por mim?”, questiona.
No momento em que este texto é publicado, 237 repressores já foram condenados pelo Judiciário argentino, número que pode aumentar a qualquer momento porque há 778 processados. No Brasil, a esperança de abrir caminho para a punição reside novamente no STF, que tem nas mãos recurso da OAB contra a decisão tomada em 2010. O caso deveria ter ido a julgamento ontem (29), mas não foi. Aguarda-se agora nova data.
Passados 48 anos do golpe contra o presidente constitucional João Goulart, a transição lenta, gradual e segura proposta pelos militares segue o curso do rio, com águas não tão mansas. É bem verdade que o regime autoritário que vigorou durante mais de duas décadas é um ilustre desconhecido para boa parte da população, ou um fato distante, mas quem desconhece os efeitos de uma educação de nível vexatório? Ou a dificuldade em contar com o serviço público de saúde?
A recente movimentação em torno do legado da ditadura ajuda a que o 1º de abril, data em que os militares deixaram a caserna – com apoio de parte da sociedade civil –, sirva à reflexão sobre os rumos do país, da mesma maneira que ocorre no 24 de março argentino. Enquanto saudosos defendem que se vire essa página da história, é razoável propor que, antes de virá-la, possamos lê-la.
A educação que se recebe atualmente tem, e muito, ligação com aquilo que foi feito lá atrás, nos anos seguintes ao golpe. A filósofa Marilena Chauí, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), considera que o acesso exclusivo ao ensino superior, deixando de fora as classes baixas, foi o prêmio garantido a setores da classe média que formaram um certo esquadrão ideológico do regime.
A transformação no currículo escolar e a orientação dos cursos universitários a uma formação técnica foram, para a professora, o caminho encontrado para a formação rápida de uma mão de obra “dócil”. "Além disso, eles criaram a disciplina de educação moral e cívica, para todos os graus do ensino. Na universidade, havia professores que eram escalados para dar essa matéria, em todos os cursos, nas ciências duras, biológicas e humanas. A universidade que nós conhecemos hoje ainda é a universidade que a ditadura produziu", relembra.
Nada mais exemplar neste sentido que a atual situação da USP, outrora de Chauí, Antonio Cândido, Aziz Ab'Saber, e que hoje tem um reitor que se vale de um Estatuto anacrônico, aprovado há 40 anos, para impor dificuldades à circulação do livre pensamento, tão caro ao ensino superior. João Grandino Rodas, persona non grata na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, transformou a Polícia Militar em frequentadora do campus, com o acúmulo de episódios de abuso de autoridade e de repressões gratuitas.
Por falar em gratuita, na saúde o regime abriu caminho ao ingresso das empresas privadas e criaram-se novas formas de mau uso do dinheiro público. A unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) foi a maneira de dizer que o serviço, até então prestado pelos hospitais ligados a essas entidades, não tinha mais condições de ser ofertado a todos os segurados. Era necessário que o Estado repassasse recursos ao setor particular, que passaria a cuidar da administração das unidades de saúde.
“Naquele momento, tudo o que é do Estado é visto como burocrático, lento, de baixa qualidade”, lamenta Sarah Escorel, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “É uma lógica financeira revestida do que seria um aspecto de modernização. Apresenta-se um cálculo de custo-benefício e argumenta-se que os países avançados, em especial os Estados Unidos, não têm serviço público.”
E o que dizer das transformações no setor de cultura? O golpe dá cabo, de imediato, de uma série de iniciativas populares no teatro, no cinema, na literatura. É difícil mensurar aquilo que foi perdido, o que jamais foi retomado e o que deixou de ocorrer em termos de inovação e de difusão de novas ideias. Para o cineasta Silvio Tendler, acompanhado de perto pela censura, a arte incomodou muito o regime porque era a grande forma de contestação. “Jornais tinham de ser reescritos, piadas refeitas, porque imbecis determinavam o que a gente poderia falar ou não”, diz o diretor de Jango, que lamenta o estágio atual do Brasil na tarefa de passar a limpo sua história. “O Brasil é um dos poucos países no mundo onde não houve uma Comissão da Verdade e torturadores e canalhas continuam em liberdade. Cometeram os crimes e ficou por isso mesmo.”
Até agora. Crescem as ações do Ministério Público Federal (MPF) contestando a validade da leitura proferida em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei de Anistia, aprovada em 1979, impede a punição penal de torturadores e sequestradores com base em um suposto processo de “reconciliação nacional”. Tomando como referência a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, também em 2010, procuradores têm lembrado que os corpos não apareceram – ou seja, os crimes ainda estão por aí.
O resumo da ópera está nas palavras de Aldo Corrêa, que perdeu irmão, irmã e cunhada entre 1973 e 1974 no episódio conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Elmo Corrêa, Telma Regina Cordeira Corrêa e Maria Célia Corrêa são três das pessoas apontadas pelo MPF no Pará como vítimas do coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, responsável pela repressão aos grupos de resistência à ditadura. “Não sei o que passa na cabeça deles de alegar que a Lei de Anistia considerou os desaparecidos como mortos. Isso é para eles. Para nós, familiares, não estão mortos. Se estão mortos, cadê o corpo? Como pode chegar a essa conclusão por mim?”, questiona.
No momento em que este texto é publicado, 237 repressores já foram condenados pelo Judiciário argentino, número que pode aumentar a qualquer momento porque há 778 processados. No Brasil, a esperança de abrir caminho para a punição reside novamente no STF, que tem nas mãos recurso da OAB contra a decisão tomada em 2010. O caso deveria ter ido a julgamento ontem (29), mas não foi. Aguarda-se agora nova data.
Para
quem quer que continue tudo como agora, é animador o resultado de
levantamento divulgado em fevereiro pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea). Entre 924 entrevistados, 74,8% desconhecem a Lei de
Anistia. Se a educação não tivesse sido desmontada durante a ditadura,
quem sabe seria mais fácil lê-la.
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