29/10/2011
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48879
Foram necessários mais de 25 anos para que o Brasil finalmente autorizasse para si uma reflexão oficial sobre os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Após vários meses de tensos debates, o Senado aprovou por unanimidade, na noite de quarta-feira (26), um mês depois da Câmara dos Deputados, uma lei prevendo a instauração de uma “Comissão da Verdade”, encarregada de esclarecer os assassinatos, desaparecimentos e torturas ocorridos durante esse período. O Brasil é o último país da América Latina a implantar um mecanismo do gênero.
A reportagem é de Nicolas Bourcier, publicada pelo jornal Le Monde, e reproduzida pelo portal Uol, 29-10-2011.
O texto foi ratificado já na quinta-feira pela presidente Dilma Rousseff, ela mesma uma ex-guerrilheira torturada no cárcere da ditadura. Iniciado por seu mentor e predecessor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto de criação dessa Comissão havia sido apresentado como “uma das prioridades do governo” por Rousseff logo nos primeiros dias de seu mandato.
A comissão será composta por sete pessoas, todas nomeadas pela chefe de Estado. Elas terão dois anos para examinar as violações dos direitos humanos cometidas, segundo seu plano de ação, entre 1946 e 1988. “O período escolhido foi maior que o da ditadura para não antagonizar os militares”, reconhece Paulo Sérgio Pinheiro, pesquisador do Centro de Estudos sobre a Violência na Universidade de São Paulo e membro do grupo de reflexão interministerial encarregado do dossiê. “Mas todos sabem que a comissão trabalhará somente os anos da ditadura”.
Ao contrário de outros países da região, a lei votada em Brasília não permite questionar a anistia de 1979, que havia permitido a volta dos exilados políticos, ao mesmo tempo em que protegia os militares e policiais torturadores de processos na Justiça. A anulação dessa anistia, desejada por famílias de vítimas e por organizações políticas de extrema esquerda, se depara com os comandantes das forças armadas e com os oficiais superiores em reserva.
“É preciso entender que a criação dessa Comissão é o resultado de um longo trabalho e do melhor consenso possível neste Brasil de hoje”, ressalta Paulo Sérgio Pinheiro. “É a peça legislativa mais importante para o trabalho de memória sobre a ditadura”.
400 mortos e desaparecidos
O Brasil reconhece oficialmente 400 mortos e desaparecidos durante os anos de chumbo. Cerca de 5.000 pessoas teriam sido torturadas. Até hoje, somente parte das famílias de vítimas da ditadura recebeu uma indenização do Estado.
É pouco, se comparado com a Argentina, que anulou suas leis de anistia em 2003 e condenou 200 militares envolvidos em crimes cometidos pelas juntas militares. Na quarta-feira mesmo um tribunal de Buenos Aires condenou, em um estrondoso julgamento, doze torturadores à prisão perpétua. O Congresso uruguaio também votou, na quinta-feira (27) – a proximidade de datas foi um acaso - , um projeto de lei que torna imprescritíveis os crimes cometidos durante a ditadura.
A instauração da comissão por parte de Brasília é uma “primeira etapa” na busca pela verdade, afirmou Maria do Rosário Nunes, ministra encarregada dos direitos humanos. Esse passo foi considerado insuficiente para ONGs próximas de famílias de vítimas e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL, extrema esquerda), que criticam a falta de recursos e de ambição da Comissão.
Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos havia condenado o Brasil por violações dos direitos humanos sob a ditadura, declarando sua lei de anistia “sem efeito jurídico”.
domingo, 30 de outubro de 2011
Entidade vê atraso do País para apurar ditadura
29/10/2011
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48880
O Brasil ainda está atrasado em relação aos outros países da América Latina na investigação de seu passado, na avaliação de algumas das principais entidades defensoras de direitos humanos do mundo. Segundo elas, a Comissão da Verdade aprovada pelo Senado nesta semana deve ser encarada apenas como um primeiro passo e não a conclusão do processo de investigação dos crimes cometidos durante o regime militar.
A reportagem é de Gustavo Chacra e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-10-2011.
Eduardo Gonzalez, diretor do International Center for Transitional Justice, em Nova York, disse haver "uma desconexão entre a situação no Brasil em relação ao restante da região", no que se refere à investigação e punição dos crimes cometidos durante o regime militar. "E essa desconexão é totalmente desnecessária", acrescentou em entrevista ao Estado.
"O Brasil deveria ser o líder em toda a América Latina, e não estar atrás. Não dá para comparar o capital humano e jurídico do País a outras nações. Não há sentido estar tão atrasado. Isso é muito estranho", afirmou. "Nos outros países do continente, as anistias foram revogadas ou não são aplicadas."
José Miguel Vivanco, diretor da divisão de Américas do Human Rights Watch, elogiou a Comissão da Verdade. "Esse pode ser um primeiro passo para o esclarecimento de sérias violações aos direitos humanos ocorridas no período de exceção brasileiro", ressaltou. Em sua avaliação, a iniciativa pode "criar na população um clamor por justiça", indicando que deve haver punição dos crimes no futuro.
Nada secreto, Gonzalez adverte, levando em conta as experiências em outros países, que são necessárias três condições para o êxito da comissão. "Primeiro, é preciso haver acesso irrestrito aos arquivos. Não podem argumentar que algo seja secreto. Em segundo lugar, o Estado precisa conceder todo o apoio ao processo, mas sem afetar a independência. Por último, deve existir total transparência, com todas as declarações sendo públicas", afirmou.
Para ele, razões históricas levaram o Brasil a ficar para trás na investigação de seu passado. "Foi uma abertura gradual, controlada e bem cuidadosa. Nessa transição lenta, as forças do regime anterior mantiveram algum poder. Mas hoje a democracia evoluiu e não é preciso haver receio", disse.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48880
O Brasil ainda está atrasado em relação aos outros países da América Latina na investigação de seu passado, na avaliação de algumas das principais entidades defensoras de direitos humanos do mundo. Segundo elas, a Comissão da Verdade aprovada pelo Senado nesta semana deve ser encarada apenas como um primeiro passo e não a conclusão do processo de investigação dos crimes cometidos durante o regime militar.
A reportagem é de Gustavo Chacra e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-10-2011.
Eduardo Gonzalez, diretor do International Center for Transitional Justice, em Nova York, disse haver "uma desconexão entre a situação no Brasil em relação ao restante da região", no que se refere à investigação e punição dos crimes cometidos durante o regime militar. "E essa desconexão é totalmente desnecessária", acrescentou em entrevista ao Estado.
"O Brasil deveria ser o líder em toda a América Latina, e não estar atrás. Não dá para comparar o capital humano e jurídico do País a outras nações. Não há sentido estar tão atrasado. Isso é muito estranho", afirmou. "Nos outros países do continente, as anistias foram revogadas ou não são aplicadas."
José Miguel Vivanco, diretor da divisão de Américas do Human Rights Watch, elogiou a Comissão da Verdade. "Esse pode ser um primeiro passo para o esclarecimento de sérias violações aos direitos humanos ocorridas no período de exceção brasileiro", ressaltou. Em sua avaliação, a iniciativa pode "criar na população um clamor por justiça", indicando que deve haver punição dos crimes no futuro.
Nada secreto, Gonzalez adverte, levando em conta as experiências em outros países, que são necessárias três condições para o êxito da comissão. "Primeiro, é preciso haver acesso irrestrito aos arquivos. Não podem argumentar que algo seja secreto. Em segundo lugar, o Estado precisa conceder todo o apoio ao processo, mas sem afetar a independência. Por último, deve existir total transparência, com todas as declarações sendo públicas", afirmou.
Para ele, razões históricas levaram o Brasil a ficar para trás na investigação de seu passado. "Foi uma abertura gradual, controlada e bem cuidadosa. Nessa transição lenta, as forças do regime anterior mantiveram algum poder. Mas hoje a democracia evoluiu e não é preciso haver receio", disse.
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quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Senado derruba sigilo eterno de documentos
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48753
O Senado aprovou ontem à noite o projeto de lei que garante e facilita o acesso a documentos públicos nos três Poderes da República e em todos os níveis de governo: municípios, Estados e União.
A reportagem é de Márcio Falcão e Fernando Rodrigues e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 26-10-2011.
O texto havia sido aprovado pela Câmara e agora vai à sanção presidencial. Entrará em vigor 180 dias após a assinatura de Dilma Rousseff.
O aspecto mais conhecido da lei é a fixação do prazo máximo de 50 anos para que os documentos ultrassecretos fiquem com acesso restrito.
Hoje esses documentos são considerados sigilosos por até 30 anos, mas esse prazo pode ser renovado indefinidamente. A política foi adotada pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
Por essa proposta, todo documento oficial sigiloso pode receber graus de classificação: reservado (por cinco anos), secreto (15 anos) e ultrassecreto (25 anos).
Só no caso de documentos ultrassecretos será permitida uma renovação de prazo. Esses dados no grau máximo de sigilo podem ser classificados apenas pelo presidente da República, vice-presidente, ministros, comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e chefes de missões diplomáticas no exterior.
O governo federal, no passado, chegou a considerar como sigilosos telegramas diplomáticos, documentos do período da ditadura militar e da Guerra do Paraguai.
O projeto prevê ainda a criação de uma Comissão Mista de Reavaliação de Informações composta por integrantes dos três Poderes.
Esse grupo terá mandato de dois anos e poder para reavaliar casos de documentos tidos como ultrassecretos.
Com a lei, todos os órgãos e entidades públicas terão prazo de até dois anos para fazer "reavaliação das informações classificadas como ultrassecretas e secretas".
Não está claro se será facultado aos agentes zerar a contagem dos prazos de sigilo de todo o acervo público.
Mas todos os órgãos terão de publicar anualmente um "rol de documentos classificados em cada grau de sigilo, com identificação para referência futura". Ou seja, será possível a qualquer cidadão saber quais informações não estão sendo liberadas.
Hoje isso é impossível, o que dificulta a transparência.
A nova lei não trata apenas de documentos sigilosos, mas também de tudo que for produzido pelos governos.
A ideia é garantir que a sociedade possa controlar as atividades governamentais.
O projeto estabelece que qualquer cidadão poderá requerer informações sem precisar justificar o pedido. Há previsão ainda para que os documentos sejam disponibilizados em formato digital para facilitar análises.
A votação impôs uma derrota ao presidente do Senado, José Sarney(PMDB-AP), e ao senador Fernando Collor (PTB-AL). Ex-presidentes, eles defendiam a previsão de sigilo eterno para alguns documentos ultrassecretos.
A discussão sobre os documentos ultrassecretos dominou a votação.Collor apresentou voto em separado propondo o sigilo eterno e disse que o país precisa de salvaguardas: "O Brasil será o primeiro país a abrir todas as suas informações. Não podemos hipotecar o futuro".
O relatório de Collor foi derrubado por votos de governistas e oposicionistas. O líder do PT, Humberto Costa (PE), disse que "não há como um documento produzir embaraço depois de 50 anos".
REPERCUSSÃO
Renato Lessa, professor de teoria política da UFF:
"Temos de comemorar. É uma medida ótima para a redemocratização, para a sociedade como um todo. Essa lei leva às últimas consequências a ideia de que documentos são públicos. Os 50 anos de sigilo me parecem excessivos, mas é um avanço."
Sérgio Amadeu, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil:
"Não acreditava que o governo derrotaria Sarney e Collor. É vitória da transparência. A lei, ao falar de disponibilização de dados on-line, é mais um movimento dessa onda que põe o Brasil na vanguarda, como o marco civil da internet."
Marcelo Ridenti, professor de sociologia da Unicamp:
"Essa lei é um meio termo entre uma proposta conservadora, a favor do sigilo eterno, e uma radical, contra qualquer tipo de sigilo. Os 50 anos são excessivos. Um prazo razoável seria de até 20 anos. Os fatos da época mais dura da ditadura só serão conhecidos quase em 2020."
Luiz Werneck Vianna, professor da PUC-RJ:
"É um grande avanço democrático."
O Senado aprovou ontem à noite o projeto de lei que garante e facilita o acesso a documentos públicos nos três Poderes da República e em todos os níveis de governo: municípios, Estados e União.
A reportagem é de Márcio Falcão e Fernando Rodrigues e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 26-10-2011.
O texto havia sido aprovado pela Câmara e agora vai à sanção presidencial. Entrará em vigor 180 dias após a assinatura de Dilma Rousseff.
O aspecto mais conhecido da lei é a fixação do prazo máximo de 50 anos para que os documentos ultrassecretos fiquem com acesso restrito.
Hoje esses documentos são considerados sigilosos por até 30 anos, mas esse prazo pode ser renovado indefinidamente. A política foi adotada pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
Por essa proposta, todo documento oficial sigiloso pode receber graus de classificação: reservado (por cinco anos), secreto (15 anos) e ultrassecreto (25 anos).
Só no caso de documentos ultrassecretos será permitida uma renovação de prazo. Esses dados no grau máximo de sigilo podem ser classificados apenas pelo presidente da República, vice-presidente, ministros, comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e chefes de missões diplomáticas no exterior.
O governo federal, no passado, chegou a considerar como sigilosos telegramas diplomáticos, documentos do período da ditadura militar e da Guerra do Paraguai.
O projeto prevê ainda a criação de uma Comissão Mista de Reavaliação de Informações composta por integrantes dos três Poderes.
Esse grupo terá mandato de dois anos e poder para reavaliar casos de documentos tidos como ultrassecretos.
Com a lei, todos os órgãos e entidades públicas terão prazo de até dois anos para fazer "reavaliação das informações classificadas como ultrassecretas e secretas".
Não está claro se será facultado aos agentes zerar a contagem dos prazos de sigilo de todo o acervo público.
Mas todos os órgãos terão de publicar anualmente um "rol de documentos classificados em cada grau de sigilo, com identificação para referência futura". Ou seja, será possível a qualquer cidadão saber quais informações não estão sendo liberadas.
Hoje isso é impossível, o que dificulta a transparência.
A nova lei não trata apenas de documentos sigilosos, mas também de tudo que for produzido pelos governos.
A ideia é garantir que a sociedade possa controlar as atividades governamentais.
O projeto estabelece que qualquer cidadão poderá requerer informações sem precisar justificar o pedido. Há previsão ainda para que os documentos sejam disponibilizados em formato digital para facilitar análises.
A votação impôs uma derrota ao presidente do Senado, José Sarney(PMDB-AP), e ao senador Fernando Collor (PTB-AL). Ex-presidentes, eles defendiam a previsão de sigilo eterno para alguns documentos ultrassecretos.
A discussão sobre os documentos ultrassecretos dominou a votação.Collor apresentou voto em separado propondo o sigilo eterno e disse que o país precisa de salvaguardas: "O Brasil será o primeiro país a abrir todas as suas informações. Não podemos hipotecar o futuro".
O relatório de Collor foi derrubado por votos de governistas e oposicionistas. O líder do PT, Humberto Costa (PE), disse que "não há como um documento produzir embaraço depois de 50 anos".
REPERCUSSÃO
Renato Lessa, professor de teoria política da UFF:
"Temos de comemorar. É uma medida ótima para a redemocratização, para a sociedade como um todo. Essa lei leva às últimas consequências a ideia de que documentos são públicos. Os 50 anos de sigilo me parecem excessivos, mas é um avanço."
Sérgio Amadeu, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil:
"Não acreditava que o governo derrotaria Sarney e Collor. É vitória da transparência. A lei, ao falar de disponibilização de dados on-line, é mais um movimento dessa onda que põe o Brasil na vanguarda, como o marco civil da internet."
Marcelo Ridenti, professor de sociologia da Unicamp:
"Essa lei é um meio termo entre uma proposta conservadora, a favor do sigilo eterno, e uma radical, contra qualquer tipo de sigilo. Os 50 anos são excessivos. Um prazo razoável seria de até 20 anos. Os fatos da época mais dura da ditadura só serão conhecidos quase em 2020."
Luiz Werneck Vianna, professor da PUC-RJ:
"É um grande avanço democrático."
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terça-feira, 25 de outubro de 2011
Luiza Erundina dá uma aula aos que querem ver o passado enterrado
sábado, 22 de outubro de 2011
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2011/10/luiza-erundina-da-uma-aula-aos-que.html
Os que cometeram crimes de lesa-humanidade, crimes de tortura, de desaparecimentos forçados, de mortes, em nome do Estado, estão impunes até hoje. Desenterrar o passado, portanto, lhes causa medo
Elzita Santa Cruz, 97 anos, até hoje espera reencontrar seu filho desaparecido na ditadura |
A pernambucana Elzita Santa Cruz (foto ao lado), de 97 anos, não muda de casa nem de telefone porque acredita que a qualquer momento chegará uma notícia sobre o filho Fernando, desaparecido aos 25 anos, na ditadura militar. Prêmio Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República por causa de sua luta, Elzita declarou apoio eleitoral à presidenta Dilma Rousseff em 2010. Na época, escreveu à candidata que Lula avançou pouco, mas tinha a “certeza” de que ela, eleita, não pouparia esforços para descobrir o paradeiro dos desaparecidos políticos do País.
A paraibana Luiza Erundina, de 77 anos, deputada federal pelo PSB, é uma das mais firmes referências nacionais na luta pela redemocratização do Brasil. Mas embarga a voz quando lembra de dona Elzita. Erundina está convencida de que o governo Dilma não dará conta da expectativa da amiga pernambucana. “Temo que esse arremedo de Comissão da Verdade e as meias verdades, que ela eventualmente possa apurar terminem acabando com a causa e o ânimo das pessoas.” As pessoas vão morrendo e as memórias, quando não preservadas, se apagam.
Leia também:
- Cantor Lobão exalta ditadura militar e ataca Chico Buarque e Che Guevara
- Danilo Gentili: 'Se Dilma foi presa e torturada, é porque foi idiota'
- Torturador de Dilma hoje goza uma vida mansa no Guarujá
Erundina conta que se entristece porque toda a luta das donas Elzitas não foi suficiente para que o Brasil criasse mecanismos que impeçam essa história de se repetir, seja como farsa, seja como tragédia. Nem de fazer realmente sua democratização. “Aqueles que patrocinaram a ditadura ainda estão no poder.”
Confira a excelente entrevista concedida a revista CartaCapital:
Confira a excelente entrevista concedida a revista CartaCapital:
CC: O Brasil terá uma Comissão da Verdade ou da Meia Verdade?
Luiza Erundina: Se o projeto aprovado na Câmara se mantiver nos mesmos termos, não há perspectivas de um resultado concreto ou justo em relação aos crimes e aos responsáveis por eles na ditadura. É insuficiente e inadequado. Por exemplo, o prazo das investigações, de 1946 a 1988, é muito amplo, pega desde a ditadura Vargas. E para apenas sete integrantes investigarem em dois anos. Os membros são escolhidos pela presidenta, sem nenhum mecanismo de consulta. A comissão não tem autonomia orçamentária, é totalmente subordinada à Casa Civil. Prevê a possibilidade de militares integrarem a comissão. E não se conseguiu mudar a interpretação da Lei da Anistia. Então não será feita Justiça.
CC: E há a condenação da Corte Interamericana…
LE: Sim. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, no julgamento do caso da Guerrilha do Araguaia, condenou o Brasil a uma série de medidas de investigação, identificação dos responsáveis e da memória e da verdade sobre os crimes e exigiu, entre outras coisas, que a Lei da Anistia tenha outra interpretação. Na interpretação da OEA, a Lei da Anistia, de 1979, afetou o dever do Estado de investigar e punir. Então, a Ordem dos Advogados do Brasil entrou com uma ação no STF, requerendo um parecer nos termos exigidos pela OEA. E o STF decidiu, no fim de 2010, pela manutenção da interpretação atual.
Deputada luta pela aprovação de uma Comissão justa |
LE: Sim, porque, como a lei atual está, mesmo que essa Comissão da Verdade venha a descobrir provas de assassinatos, os criminosos ficarão impunes, por causa da interpretação do STF. E o projeto de lei do governo Lula, apresentado em maio de 2010, para criar a Comissão da Verdade, foi retirado e aprovado no fim de uma sessão à noite, em regime de urgência urgentíssima, o que limitou ainda mais a possibilidade de se apresentarem emendas. O governo fez um rolo compressor para que o projeto fosse apresentado nesses termos. E negociaram com a oposição algumas emendas. Mas recusaram emendas de avanço.
CC: Qual o interesse do governo em aprovar a Comissão dessa forma?
LE: O que ouvimos é que ou se aprovava a proposta nos termos em que ela estava ou haveria dificuldades em razão da pressão da área militar. E que os termos teriam sido negociados pelo então ministro Nelson Jobim com a área militar. Assim, essa proposta que acabou apresentada pelo Lula foi para diluir a luta.
CC: Depois não houve só uma ação da direita, mas o próprio governo articulou contra o seu projeto…
LE: Sem dúvida. A defesa que os representantes do governo fizeram, na companhia, inclusive, de parlamentares ditos de esquerda, comunistas, alguns que até foram vítimas também… Olha, é inexplicável. Mas o governo baixou o rolo compressor nesse caso também. E outra coisa: conseguimos aprovar requerimentos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara para fazer duas audiências públicas, uma sobre a Comissão da Verdade e a sentença da OEA e outra sobre o caso do Araguaia. E convidamos os ministros dos Direitos Humanos (Maria do Rosário), da Justiça (José Eduardo Cardozo) e das Relações Exteriores (Antonio Patriota). Eles absolutamente não compareceram. É muito frustrante. Acho que é simplesmente para se encerrar a discussão, para dar uma resposta meio enviesada à Corte da OEA. Agora, se a pressão crescer, pode ser que a comissão sirva para alguma coisa.
CC: Da forma como está, a Comissão da Verdade não corre o risco de enterrar a história, ao contrário de atender à decisão da OEA?
LE: Sim. O objetivo expresso no texto do projeto é resgatar a memória para ver a verdade histórica e fazer a reconciliação nacional. Sem tocar em justiça. É incrível, pois todos os países que sofreram ditaduras tiveram comissões da verdade com a perspectiva de fazer justiça: Argentina, Uruguai, África, Alemanha. A nossa preocupação é exatamente essa. A Comissão, tão cercada de cuidados para se enxergar a verdade por inteiro, pode ser pior que nada… Não dá para identificar responsáveis de crimes e não levá-los à Justiça. Temo que esse arremedo de -Comissão da Verdade, com as meias-verdades que, eventualmente, possam ser apuradas, acabe com a causa e o ânimo das pessoas. Têm familiares que ainda vivem sob a expectativa de informações sobre aqueles que se envolveram -naquele processo. Há o caso do Fernando Santa Cruz, por exemplo, cuja mãe, dona Elzita Santa Cruz, de 97 anos, ainda espera. Muitos filhos dela sofreram prisões, torturas, mas o Fernando desapareceu no Rio de Janeiro e até hoje não há nenhum sinal dele. E a mãe, tão velhinha, quase 100 anos, mora na mesma casa em Pernambuco, e não concorda em sair de lá, embora a casa tenha muitas escadas que lhe prejudicam a mobilidade, porque ela acha que precisa ficar lá porque, se o filho aparecer, saberá onde ela está. Ela não permite, por exemplo, a mudança o número do seu telefone, porque todas as vezes que ele toca, o coraçãozinho dela palpita, pensando que é o filho. É uma tortura. E assim há centenas de casos de pessoas que continuam com suas feridas abertas, querendo saber onde estão as ossadas. Ora, ao menos uma satisfação é devida. Pior que a morte é o desaparecimento. E não há essa perspectiva de se chegar à verdade. Acho muito duro e injusto.
CC: Muitos são contra, acham que é preciso enterrar o passado. O que dizer a eles?
LE: Os que são contra apurar a verdade e fazer justiça alegam que também os opositores da ditadura cometeram crimes. Só que, nesse caso, eles pagaram: com condenações, processos, prisões, torturas, punições severas pela Lei de Segurança Nacional. Não é verdade que os dois lados tiveram o mesmo tratamento. Só os que cometeram crimes de lesa-humanidade, crimes de tortura, de desaparecimentos forçados, de mortes, em nome do Estado, estão impunes até hoje. Essa verdade que vai chegar por meio dessa comissão, se é que se chegará a alguma, vai ser para quê? Só para a memória? Olha, é preciso que seja mais até para o Brasil concluir sua democratização. Porque, enquanto não se virar essa página, passar aquele período a limpo, a redemocratização ficará incompleta.
CC: Uma vez a senhora disse que a ditadura militar caiu de podre e não por uma resistência. Logo não houve uma ruptura com o regime que desse início à democracia…
LE: Hoje, os que patrocinaram a ditadura ainda estão no poder. Ainda são as mesmas forças. É só olhar quem está no Congresso, nas instituições políticas.
CC: Há ainda algum caminho para que seu projeto possa chegar ao plenário?
LE: Ele deveria ter sido distribuído para a Comissão de Justiça e Cidadania, mas a Comissão de Relações Exteriores e Segurança Nacional requereu que a matéria fosse para aquela comissão. Já havia uma clara intenção. Agora vai para decisão da Comissão de Justiça e Cidadania. Não vamos deixar de lutar, não. Se for aprovada na CCJ, vai para o Plenário da Câmara. Se não, morre.
CC: Na sua avaliação, haverá ainda outros mecanismos possíveis para que o Brasil possa realmente conhecer suas verdades?
LE: Acho muito difícil. O tempo passa, os mais diretamente interessados vão morrendo. O ânimo de luta se arrefece, a memória se distancia, as novas gerações não viveram aquilo e no Brasil não há uma cultura de se preservar a memória e de se levar os jovens a conhecerem a história. É só um repetido: “Vamos esquecer, para quê revanche…”.
Leia mais:
- Advogado espanta o Brasil com relato sobre mortes e tortura na ditadura
- Histórias pouco conhecidas: os evangélicos e a ditadura militar no Brasil
- Cabo Anselmo mentiu de novo. Sua mulher estava grávida, sim, quando assassinada
CC: O que o Brasil dirá à OEA até dezembro, quando vence o prazo para a sentença?
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quinta-feira, 20 de outubro de 2011
Comissão da Verdade é aprovada na CCJ
20/10/2011
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48544
O projeto de criação da Comissão Nacional da Verdade foi aprovado ontem, em votação simbólica, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ). O texto segue agora para a Comissão de Direitos Humanos. No entanto, o líder do governo na Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), deve pedir a tramitação do projeto com urgência e, se a mudança de rito for aprovada, a proposta não precisará mais do aval das comissões, seguindo direto para a votação em plenário.
A reportagem é de Daniela Martins e publicada pelo jornal Valor, 20-10-2011.
A Comissão da Verdade, que visa a investigar os crimes contra os direitos humanos entre 1946 e 1988, poderá também, segundo emenda do relator da proposta, senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos, como o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos.
O texto aprovado na Câmara determina que se busque esclarecer os casos de torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres e suas autorias durante a ditadura militar.
O colegiado, composto por sete membros, poderá solicitar documentos, convocar depoimentos, determinar a realização de perícias e diligências em busca de informações e documentos. O projeto obriga servidores públicos e militares a colaborar com a comissão, ponto que gerou polêmica entre membros das Forças Armadas.
Na Câmara, o texto recebeu emenda impedindo que integrantes das direções de partidos políticos façam parte da comissão. O projeto também ganhou um artigo para garantir que qualquer pessoa possa dar depoimento à comissão, mesmo sem ser convidada.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48544
O projeto de criação da Comissão Nacional da Verdade foi aprovado ontem, em votação simbólica, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ). O texto segue agora para a Comissão de Direitos Humanos. No entanto, o líder do governo na Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), deve pedir a tramitação do projeto com urgência e, se a mudança de rito for aprovada, a proposta não precisará mais do aval das comissões, seguindo direto para a votação em plenário.
A reportagem é de Daniela Martins e publicada pelo jornal Valor, 20-10-2011.
A Comissão da Verdade, que visa a investigar os crimes contra os direitos humanos entre 1946 e 1988, poderá também, segundo emenda do relator da proposta, senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos, como o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos.
O texto aprovado na Câmara determina que se busque esclarecer os casos de torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres e suas autorias durante a ditadura militar.
O colegiado, composto por sete membros, poderá solicitar documentos, convocar depoimentos, determinar a realização de perícias e diligências em busca de informações e documentos. O projeto obriga servidores públicos e militares a colaborar com a comissão, ponto que gerou polêmica entre membros das Forças Armadas.
Na Câmara, o texto recebeu emenda impedindo que integrantes das direções de partidos políticos façam parte da comissão. O projeto também ganhou um artigo para garantir que qualquer pessoa possa dar depoimento à comissão, mesmo sem ser convidada.
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quarta-feira, 19 de outubro de 2011
Na América Latina, só Brasil ainda não teve Comissão da Verdade
19/10/2011
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48511
De todos os países latino-americanos que sofreram com ditaduras, o Brasil é o único que ainda não acertou as contas com o passado. No continente, Guatemala, Argentina, Chile, El Salvador, Peru, Uruguai, Paraguai, Haiti, Panamá e Bolívia já instalaram Comissões da Verdade, enquanto outros instituíram ao menos comissões informais. No mundo, mais de 30 países já apostaram na iniciativa para resgatar sua memória e, em muitos casos, identificar e punir culpados.
“Toda Comissão da Verdade deve ter como objetivo fundamental reparar danos causados pela epidemia de ditaduras que ocorreram em todos os continentes do mundo a partir da década de 1960”, afirmou o paraguaio Carlos Portiro, que foi membro da Comissão da Verdade do país dele.
A reportagem é de Najla Passos e publicada por Carta Maior, 19-10-2011.
Segundo Portiro, essas comissões devem ser instaladas imediatamente após o fim do regime de exceção, para avaliar as infrações aos direitos humanos e, a partir daí, decidir como repará-los.
“O Brasil e o Paraguai, entretanto, demoraram muito mais tempo para dar início a este processo do que seria o natural”, disse. O Paraguai levou 14 anos após o fim da ditadura para instalar sua comissão. No Brasil, a ditadura foi-se há 25 anos e, até agora, não houve comissão. Para Portiro, mesmo levando em conta as realidades nacionais, "precisamos admitir que, no Brasil, continua ocorrendo uma guerra contra a memória.”
Sobre a experiência paraguaia, o monsenhor Mário Medina, reconhecido militante pelos Direitos Humanos daquele país, apresentou um vídeo com os números finais que dão a dimensão do trabalho realizado. Foram oito audiências públicas, nacionais e internacionais, para debater o tema e garantir a participação da sociedade civil no processo.
Após mais de quatro anos de trabalho, a comissão identificou 20 mil vítimas diretas, 51 mil executados, 336 desaparecidos, 3,5 mil exilados diretos e 17 mil indiretos. Entretanto, também identificou, nominou e tomou as providencias necessárias para penalizar 690 torturadores.
A professora de História Simone Rodrigues Pinto, da Universidade de Brasília (UnB), apresentou estudo comparativo entre as diferentes comissões instaladas na América Latina. Segundo ela, essas Comissões são bem diferentes em todos os aspectos: período, número de membros, orçamento, autonomia, capacidade de punir, suporte governamental, entre outros aspectos.
Como exemplo de bom resultado, ela citou o caso da Guatemala, que obteve muito impacto ao investigar 23 mil assassinatos, contabilizar seis mil desaparecidos e 626 massacres. “Essa comissão tinha apenas três membros oficiais e durou somente 18 meses, mas contava com uma equipe de trabalho de cem pessoas”.
No caso da comissão argentina, criada imediatamente após o término da ditadura, foram nove meses de trabalho, com uma comissão de 13 pessoas mais equipe de 60 membros que conseguiram investigar 9 mil casos, revelando autores e desencadeando vários julgamentos.
No Chile, foram duas comissões em dois momentos diversos. A primeira investigou os 2.920 casos de assassinatos e desaparecimentos. A segunda tomou como objeto os demais crimes, que totalizaram 27 mil denúncias de violação dos direitos humanos. “em ambos os casos, elas tiveram oito membros, todos eles chilenos”, acrescentou Simone.
“Não é necessário defender a importância da Comissão da Verdade. Quanto a isso, todos temos acordo. A questão é qual tipo de comissão queremos criar e com quais objetivos.”
Para a professora, há um movimento internacional pela memória e pela verdade, desde 1974, quando foi instalada a primeira comissão, em Uganda, na África. “é importante que aja, pelo menos, a identificação e responsabilização social e moral dos torturadores e agentes da ditadura. Em muitos casos, nem as famílias dessas pessoas sabem os crimes que eles praticaram”, defendeu.
Ex-presidente de Honduras, deposto por golpe no país, Manuel Zelaya participou do seminário e defendeu que vítimas de ditaduras integrem comissões da verdade, algo não previsto no projeto aprovado pelos deputados e que está em debate no Senado. “Quando as comissões são oficiais, não têm o mesmo impacto”, disse.
Segundo ele, “As sombras que fizeram com que o Brasil e outros países latino-americanos vivessem sob golpes de Estado continuam vivas, tão vivas que Honduras viveu golpe de Estado recentemente.”
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48511
De todos os países latino-americanos que sofreram com ditaduras, o Brasil é o único que ainda não acertou as contas com o passado. No continente, Guatemala, Argentina, Chile, El Salvador, Peru, Uruguai, Paraguai, Haiti, Panamá e Bolívia já instalaram Comissões da Verdade, enquanto outros instituíram ao menos comissões informais. No mundo, mais de 30 países já apostaram na iniciativa para resgatar sua memória e, em muitos casos, identificar e punir culpados.
“Toda Comissão da Verdade deve ter como objetivo fundamental reparar danos causados pela epidemia de ditaduras que ocorreram em todos os continentes do mundo a partir da década de 1960”, afirmou o paraguaio Carlos Portiro, que foi membro da Comissão da Verdade do país dele.
A reportagem é de Najla Passos e publicada por Carta Maior, 19-10-2011.
Segundo Portiro, essas comissões devem ser instaladas imediatamente após o fim do regime de exceção, para avaliar as infrações aos direitos humanos e, a partir daí, decidir como repará-los.
“O Brasil e o Paraguai, entretanto, demoraram muito mais tempo para dar início a este processo do que seria o natural”, disse. O Paraguai levou 14 anos após o fim da ditadura para instalar sua comissão. No Brasil, a ditadura foi-se há 25 anos e, até agora, não houve comissão. Para Portiro, mesmo levando em conta as realidades nacionais, "precisamos admitir que, no Brasil, continua ocorrendo uma guerra contra a memória.”
Sobre a experiência paraguaia, o monsenhor Mário Medina, reconhecido militante pelos Direitos Humanos daquele país, apresentou um vídeo com os números finais que dão a dimensão do trabalho realizado. Foram oito audiências públicas, nacionais e internacionais, para debater o tema e garantir a participação da sociedade civil no processo.
Após mais de quatro anos de trabalho, a comissão identificou 20 mil vítimas diretas, 51 mil executados, 336 desaparecidos, 3,5 mil exilados diretos e 17 mil indiretos. Entretanto, também identificou, nominou e tomou as providencias necessárias para penalizar 690 torturadores.
A professora de História Simone Rodrigues Pinto, da Universidade de Brasília (UnB), apresentou estudo comparativo entre as diferentes comissões instaladas na América Latina. Segundo ela, essas Comissões são bem diferentes em todos os aspectos: período, número de membros, orçamento, autonomia, capacidade de punir, suporte governamental, entre outros aspectos.
Como exemplo de bom resultado, ela citou o caso da Guatemala, que obteve muito impacto ao investigar 23 mil assassinatos, contabilizar seis mil desaparecidos e 626 massacres. “Essa comissão tinha apenas três membros oficiais e durou somente 18 meses, mas contava com uma equipe de trabalho de cem pessoas”.
No caso da comissão argentina, criada imediatamente após o término da ditadura, foram nove meses de trabalho, com uma comissão de 13 pessoas mais equipe de 60 membros que conseguiram investigar 9 mil casos, revelando autores e desencadeando vários julgamentos.
No Chile, foram duas comissões em dois momentos diversos. A primeira investigou os 2.920 casos de assassinatos e desaparecimentos. A segunda tomou como objeto os demais crimes, que totalizaram 27 mil denúncias de violação dos direitos humanos. “em ambos os casos, elas tiveram oito membros, todos eles chilenos”, acrescentou Simone.
“Não é necessário defender a importância da Comissão da Verdade. Quanto a isso, todos temos acordo. A questão é qual tipo de comissão queremos criar e com quais objetivos.”
Para a professora, há um movimento internacional pela memória e pela verdade, desde 1974, quando foi instalada a primeira comissão, em Uganda, na África. “é importante que aja, pelo menos, a identificação e responsabilização social e moral dos torturadores e agentes da ditadura. Em muitos casos, nem as famílias dessas pessoas sabem os crimes que eles praticaram”, defendeu.
Ex-presidente de Honduras, deposto por golpe no país, Manuel Zelaya participou do seminário e defendeu que vítimas de ditaduras integrem comissões da verdade, algo não previsto no projeto aprovado pelos deputados e que está em debate no Senado. “Quando as comissões são oficiais, não têm o mesmo impacto”, disse.
Segundo ele, “As sombras que fizeram com que o Brasil e outros países latino-americanos vivessem sob golpes de Estado continuam vivas, tão vivas que Honduras viveu golpe de Estado recentemente.”
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Só pressão da sociedade fará governo aperfeiçoar comissão da verdade, diz Erundina
19/10/2011
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48508
O Senado realizou nesta terça-feira (18) uma audiência pública para discutir o projeto da Comissão da Verdade (PLC 88/11), sobre os crimes praticados pela Ditadura Militar. No encontro, senadores como Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), Pedro Taques (PDT-MT) e Lídice da Mata (PSB-BA) defenderam que os resultados da investigação sejam levados à Justiça e que os culpados sejam punidos.
Para isso, é possível que o projeto original aprovado na Câmara tenha de ser alterado, uma vez que ele não faz menção à reparação ou punição judicial. Esse comedimento tem sido criticado por famílias de vítimas e desaparecidos políticos, que pedem que torturadores, seqüestradores e homicidas ligados ao regime sejam levados ao banco dos réus.
A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), que integra a Comissão de Direitos Humanos na Câmara, onde o projeto foi aprovado em regime de urgência, considera improvável que haja alterações no texto no Senado. Entretanto, lembra que a pressão externa pode surtir efeito, como ocorreu em outros países da América do Sul que instalaram comissões semelhantes.
“Acredito que nos outros países também foi difícil conduzir esse processo. Não é verdade que eles são mais abertos para isso do que nós. Nós ajudamos a eleger esse governo e muitos dos que fazem pressão por uma comissão da verdade também ajudaram a elegê-lo. É a sociedade brasileira que precisa empurrar tudo isso”, disse Erundina.
A entrevista é de Marcel Gomes e publicada por Carta Maior, 19-10-2011.
Eis a entrevista.
O projeto da comissão da verdade foi pouco debatido na Câmara. No Senado, a chance de aperfeiçoamento é maior?
É muito difícil. Nas duas audiências públicas que fizemos na Câmara, nenhum dos ministros que tem relação com o problema, como Direitos Humanos, Justiça e Defesa, compareceu. Ao contrário, eles sempre pressionaram por uma aprovação rápida e para que nada fosse alterado. Para piorar, ainda houve o gesto de acolher duas emendas da oposição, uma do DEM e outra do PSDB, e rejeitar propostas que deputados estavam fazendo em conjunto com os familiares de desaparecidos.
O que pode fazer a diferença?
A pressão da sociedade. Nós estamos atuando em várias frentes. Já houve duas mobilizações em São Paulo e há um comitê paulista em defesa da verdade e da justiça. Acredito que nos outros países também foi difícil conduzir esse processo. Não é verdade que eles são mais abertos para isso do que nós. Nós ajudamos a eleger esse governo e muitos dos que fazem pressão por uma comissão da verdade também ajudaram a elegê-lo. É a sociedade brasileira que precisa empurrar tudo isso.
Na sua opinião, quais os equívocos do projeto?
A proposta prevê abranger as investigações entre 1946 a 1988 em apenas dois anos e com apenas sete membros indicados pela presidência da República. É muito trabalho para pouco tempo. Além disso, a comissão não possui autonomia orçamentária para fazer a investigação e o texto do projeto até deixa subentendido que um militar poderia fazer parte dela.
E os objetivos da comissão?
São muito comedidos. O projeto não fala em justiça, mas apenas em memória, verdade e conciliação nacional. Tudo bem, não se quer revanche, não é esse o propósito. Mas os resultados do trabalho dessa comissão devem terminar na Justiça, para que ela analise objetivamente se deve punir alguém.
A pressão dos militares não é muito forte?
Mas um presidente da República tem poder para ousar, ser mais ofensivo. Quando eu era prefeita de São Paulo, descobrimos uma vala comum no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, construído em 1971, quando Paulo Maluf era prefeito. Foram encontrados 1049 corpos em sacos plásticos sem nenhuma identificação. Ainda na minha gestão, sete foram identificados e devolvidos às suas famílias. Se o governo de um município, ainda que do porte de São Paulo, pôde fazer isso, um presidente poderia muito mais.
Como a senhora vê a presença de Cabo Anselmo no programa Roda Viva, da TV Cultura?
Veja o que acontece em nosso país. De um lado, há uma comissão da verdade com todas essas limitações e restrições. De outro, se abre um espaço privilegiado de uma emissora pública para um cara como ele, que matou a própria mulher grávida de seis meses, se infiltrou nos grupos de resistência e fez o trabalho sujo que levou a morte e ao desaparecimento de muita gente. É um absurdo.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=48508
O Senado realizou nesta terça-feira (18) uma audiência pública para discutir o projeto da Comissão da Verdade (PLC 88/11), sobre os crimes praticados pela Ditadura Militar. No encontro, senadores como Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), Pedro Taques (PDT-MT) e Lídice da Mata (PSB-BA) defenderam que os resultados da investigação sejam levados à Justiça e que os culpados sejam punidos.
Para isso, é possível que o projeto original aprovado na Câmara tenha de ser alterado, uma vez que ele não faz menção à reparação ou punição judicial. Esse comedimento tem sido criticado por famílias de vítimas e desaparecidos políticos, que pedem que torturadores, seqüestradores e homicidas ligados ao regime sejam levados ao banco dos réus.
A deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), que integra a Comissão de Direitos Humanos na Câmara, onde o projeto foi aprovado em regime de urgência, considera improvável que haja alterações no texto no Senado. Entretanto, lembra que a pressão externa pode surtir efeito, como ocorreu em outros países da América do Sul que instalaram comissões semelhantes.
“Acredito que nos outros países também foi difícil conduzir esse processo. Não é verdade que eles são mais abertos para isso do que nós. Nós ajudamos a eleger esse governo e muitos dos que fazem pressão por uma comissão da verdade também ajudaram a elegê-lo. É a sociedade brasileira que precisa empurrar tudo isso”, disse Erundina.
A entrevista é de Marcel Gomes e publicada por Carta Maior, 19-10-2011.
Eis a entrevista.
O projeto da comissão da verdade foi pouco debatido na Câmara. No Senado, a chance de aperfeiçoamento é maior?
É muito difícil. Nas duas audiências públicas que fizemos na Câmara, nenhum dos ministros que tem relação com o problema, como Direitos Humanos, Justiça e Defesa, compareceu. Ao contrário, eles sempre pressionaram por uma aprovação rápida e para que nada fosse alterado. Para piorar, ainda houve o gesto de acolher duas emendas da oposição, uma do DEM e outra do PSDB, e rejeitar propostas que deputados estavam fazendo em conjunto com os familiares de desaparecidos.
O que pode fazer a diferença?
A pressão da sociedade. Nós estamos atuando em várias frentes. Já houve duas mobilizações em São Paulo e há um comitê paulista em defesa da verdade e da justiça. Acredito que nos outros países também foi difícil conduzir esse processo. Não é verdade que eles são mais abertos para isso do que nós. Nós ajudamos a eleger esse governo e muitos dos que fazem pressão por uma comissão da verdade também ajudaram a elegê-lo. É a sociedade brasileira que precisa empurrar tudo isso.
Na sua opinião, quais os equívocos do projeto?
A proposta prevê abranger as investigações entre 1946 a 1988 em apenas dois anos e com apenas sete membros indicados pela presidência da República. É muito trabalho para pouco tempo. Além disso, a comissão não possui autonomia orçamentária para fazer a investigação e o texto do projeto até deixa subentendido que um militar poderia fazer parte dela.
E os objetivos da comissão?
São muito comedidos. O projeto não fala em justiça, mas apenas em memória, verdade e conciliação nacional. Tudo bem, não se quer revanche, não é esse o propósito. Mas os resultados do trabalho dessa comissão devem terminar na Justiça, para que ela analise objetivamente se deve punir alguém.
A pressão dos militares não é muito forte?
Mas um presidente da República tem poder para ousar, ser mais ofensivo. Quando eu era prefeita de São Paulo, descobrimos uma vala comum no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, construído em 1971, quando Paulo Maluf era prefeito. Foram encontrados 1049 corpos em sacos plásticos sem nenhuma identificação. Ainda na minha gestão, sete foram identificados e devolvidos às suas famílias. Se o governo de um município, ainda que do porte de São Paulo, pôde fazer isso, um presidente poderia muito mais.
Como a senhora vê a presença de Cabo Anselmo no programa Roda Viva, da TV Cultura?
Veja o que acontece em nosso país. De um lado, há uma comissão da verdade com todas essas limitações e restrições. De outro, se abre um espaço privilegiado de uma emissora pública para um cara como ele, que matou a própria mulher grávida de seis meses, se infiltrou nos grupos de resistência e fez o trabalho sujo que levou a morte e ao desaparecimento de muita gente. É um absurdo.
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Comissão da Verdade
domingo, 9 de outubro de 2011
Comissão da Verdade e consolidação da democracia. Entrevista especial com Jair Krischke
20/9/2011
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500463-comissao-da-verdade-e-consolidacao-da-democracia-entrevista-especial-com-jair-krischke
Uma grande oportunidade de promovermos a consolidação de nossa democracia, esclarecendo os crimes contra a humanidade que foram cometidos entre os anos 1964 a 1985. Essa é a percepção do advogado Jair Krischke sobre as potencialidades da Comissão da Verdade, que nesta quarta-feira, dia 21-09-2011, será votada no Congresso.
Ainda esperançoso, mas um pouco menos entusiasmado quando da posse da presidente Dilma Rousseff sobre o esclarecimento dos crimes desse período, Krischke disse, por telefone à IHU On-Line, que o ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, era um dos entraves à Comissão. Agora, com o “arejamento” de sua saída, a situação melhora, mas ainda há pessoas que vão contra a instauração da iniciativa, como Fernando Collor de Mello e José Sarney.
Krischke acentua que a documentação a ser analisada pela Comissão da Verdade deve ser disponibilizada para o público, e que um relatório final após os dois anos de trabalho também precisa ser levado a conhecimento geral, garantindo “à sociedade brasileira o direito à verdade”.
Outros temas da conversa foram o lobby “quase invencível” dos militares no Congresso e a falta de ideologia entre os partidos. Tudo virou um negócio, lamenta. “Você já viu alguém nesse país se assumir como direitista? Ou assumir que é racista?”
Jair Krischke, formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos Direitos Humanos da Região Sul do Brasil. Também é o fundador do Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No início do ano o senhor estava bem otimista quanto à abertura dos arquivos da ditadura pelo governo Dilma. Hoje, qual é a sua percepção sobre o assunto?
Jair Krischke – Continuo esperançoso, mas com menos entusiasmo. Há uma situação “interessante” nesse país. Muitas pessoas que seriam parceiras e que deveriam se juntar a essa causa não têm feito isso. Para ser aprovada no Congresso, a Comissão da Verdade deve ter a base aliada aciona pela presidente. Vejo que na própria base aliada existem setores refratários à criação da Comissão. Isso é que me deixa preocupado, cauteloso. Por outro lado, se já foi anunciado que a Comissão irá à votação dia 21 de setembro, provavelmente uma articulação já foi feita. Dilma não correria o risco de submeter à votação e esta não ser aprovada. Penso que essa medida foi tomada.
Além disso, preocupa-me o texto que será aprovado, pois tal qual está, não está bem. Dou um exemplo: o período que querem votar para ser investigado abrange 1946 a 1985. Isso é tempo demais, um período muito longo, tão longo que é absolutamente impossível aos sete membros da Comissão darem cabo do trabalho em dois anos, como está previsto. Quantos assessores serão contratados para auxiliar esses sete membros?
IHU On-Line – Essa dilatação de prazo foi proposital para que se perdesse o foco do trabalho?
Jair Krischke – Sim. Qualquer criatura se dá conta de que esse período é muito longo e precisaria de mais conselheiros ou um número de assessores bem maior. Em dois anos é impossível fazer esse trabalho. Isso me preocupa. Houve outras comissões semelhantes no Brasil, e notamos que não é muito importante o número de membros dos conselheiros, mas sim o número de pessoas que irão investigar.
IHU On-Line – Como percebe a relação do governo Dilma com os militares, sobretudo a partir dos episódios envolvendo o general José Elito e o ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim?
Jair Krischke – Penso que Dilma continua com sua posição de presidente da República e comandante em chefe das Forças Armadas, conforme estabelece a Constituição. Ela se pauta por isso. Ocorre que Dilma tem uma postura muito discreta nesses assuntos. Ela não está se exibindo de suas prerrogativas. Discretamente, ela faz o que deveria fazer. O episódio envolvendo o general José Elito mostrou a todos qual é a sua postura, ou seja, de não admitir certas declarações ou atitudes. Não chegou a haver um estresse maior nesse caso, pois Dilma foi firme e discreta ao mesmo tempo.
Já quanto ao que houve com Nelson Jobim, devemos dizer que se trata de algo muito diferente. Ele é um civil, então ministro da Defesa e que se aproximou em demasia dos militares. Ele chegava a aparecer fardado, algo absolutamente indevido, inclusive deixando-se registrar em foto trajando uniformes militares e com uma serpente na mão. Foi algo ridículo. Além disso, começou a tomar atitudes inconvenientes. Homem do PMDB e ministro, foi “cozido” em banho maria por Dilma, que não o recebia em audiências. Ele acabou pedindo para sair após diversas declarações bobas. Ele era um dos tantos obstáculos para a concretização da Comissão da Verdade, mas não era o único, porque dentro da base aliada, como por exemplo no PMDB, Sarney não quer a abertura dos arquivos. Ele tem dito isso abertamente.
Está no Congresso, no Senado, uma nova lei que trata dos arquivos que é de classificação e desclassificação dos documentos. Collor de Mello, relator na comissão de relações exteriores e defesa, queria alterar mandando novamente o sigilo para a eternidade. Isso faz pouco tempo. Collor de Mello, essa figura triste do Brasil, senador da República do PTB, partido da base aliada, joga contra. Assim, não é só Jobim que representava um empecilho à Comissão da Verdade.
IHU On-Line – A saída de Jobim pode "acelerar" a aprovação da Comissão? Por quê?
Jair Krischke – De certa forma acelerou, sim. Contudo, penso que essas outras figuras também representam dificuldades. Temos que ser muito objetivos em tais assuntos. Há dificuldades enormes. Eu gostaria de ver tudo mais claro, quem tem qual posição. Penso que, bem ou mal, a Comissão está indo. Torço para que saia pelo melhor lado.
IHU On-Line – O que significou a demissão de Jobim do governo Dilma?
Jair Krischke – Significou um arejamento. A posição dele como ministro civil da Defesa era mais realista do que o rei. Ele tinha uma posição muito mais militar do que os próprios militares, inclusive do que aqueles que já estão em casa, de pijamas. Ele ter se afastado foi, sim, um ganho para o governo. Não sei dizer se a troca por Celso Amorim realmente é positiva, se ele irá, de forma efetiva, ter uma contribuição muito diferente e até onde ele pretende avançar com a Comissão da Verdade. É um quebra-cabeças muito pesado. Agora é uma situação diferente. Como ministro de relações exteriores, Amorim aproximou o Brasil de vários países com perfil de esquerda, é verdade, mas muito por interesses legítimos econômicos. Mas isso não quer dizer absolutamente uma declaração de fé ideológica.
No texto da Comissão da Verdade está expressa a vontade de promover a reconciliação nacional. Mas o que significa isso? Nossa proposta seria promover a consolidação da democracia. Porque reconciliação, a meu ver, é algo maior. Ela traz exigências. A primeira delas é que o autor do fato, o violador dos direitos humanos, deve reconhecer que errou. Em segundo lugar, deve pedir perdão. Em terceiro lugar, cabe às vítimas perdoar ou não, porque isso é de foro íntimo. Mas não posso falar em reconciliação sem que o autor da violação não reconheça seu erro, desculpando-se. Então, aquela frase em que se fala em "promover a reconciliação nacional”, a nossa ideia é que seja substituída pela expressão “promover a consolidação da democracia”. Porque nosso processo de democratização não termina nunca.
Dia 14-09-2011 dei uma palestra na Unisinos e falei nela que não houve uma transição democrática em nosso país, mas uma transação. Precisamos chegar num momento em que a democracia tenha vigência plena. Nesse sentido, a Comissão da Verdade é uma oportunidade grandiosa para promovermos a consolidação da democracia, fazendo com que realmente aconteça a diminuição do período de 1946 a 1985 previsto para ser abarcado. O período abrangido pela Comissão da Verdade deve ser de 1964 a 1985.
Essa Comissão deve ter poderes para apurar quem foram os responsável pela prática de graves violações dos direitos humanos nesse período. Não se trata de ter poderes para julgar. Ela apura e depois envia para as autoridades competentes, como o Ministério Público, por exemplo. Essa comissão tem o dever de apurar e vai trabalhar com documentos, examinando-os.
Direito à verdade
Crimes contra a humanidade não prescrevem. Já temos uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos condenando o Brasil por causa da guerrilha do Araguaia, e essa sentença diz que deve ser observada a jurisprudência internacional, a qual afirma que crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. Nessa sentença, há esse aspecto que deve ser levado em conta, de que o Brasil deve adequar sua legislação a isso para punir os responsáveis. Essa documentação que será examinada deve ser disponibilizada, inclusive, para o público. Ao final de dois anos de trabalho é preciso que o relatório garanta à sociedade brasileira o direito à verdade. Nessa Comissão não pode haver nenhum militar, assim como não pode haver nenhum familiar de vítima do regime militar. Deve ser composta por pessoas absolutamente isentas, reconhecidas pela sociedade. Sua tarefa é de uma importância tão grande que devem ser exemplares.
IHU On-Line – O que está em jogo no quadro de negociações com o Congresso para criar a Comissão da Verdade? Quais são as dificuldades para aprovar esse projeto?
Jair Krischke – Certas coisas incríveis só acontecem no Brasil. Os militares continuam atuando fortemente no Congresso Nacional. Eles têm, permanentemente nessa casa, um grupo lobista de seus interesses junto aos deputados. Em sua maioria, são coronéis que sempre estão no Congresso “batendo ponto”, fazendo lobby com os políticos para que seja aprovado aquilo que é de interesse dos militares. Os militares são parte do Estado brasileiro e não deveriam fazer lobby em lugar nenhum. Eles são comandados pela presidente da República. No Congresso Nacional as coisas têm que acontecer segundo o desejo e disposições da presidente, e eles não tem nada que estarem lá pressionando. Mas isso acontece todos os dias. Estão lá permanentemente.
Há uma convenção da ONU sobre as desaparições forçadas e que ficou no Congresso por mais de dez anos. Quando foi atribuído ao deputado federal eleito Vieira da Cunha presidir a Comissão de Relações Exteriores, esse projeto de lei assinado pelo Brasil foi para o Congresso no intuito de ser validado. Nesse momento, ele perguntou-me seu eu tinha algum pedido para a Comissão. Respondi-lhe que sim, mencionando a aprovação dessa convenção, parada há cinco anos. O lobby potentíssimo para não aprovar entrou em ação, pois os militares receavam, assim como receiam até hoje, que o Brasil, assinando e agora sendo referendada pelo Congresso a comissão de desaparições, eles teriam que prestar contas das desaparições propriamente ditas que cometeram. A força desse lobby dos militares é quase invencível. Os deputados acabam cedendo, se rendendo. Temos deputados da base do governo que se dobram a isso.
IHU On-Line – Como vê a posição do DEM em relação à Comissão da Verdade? E os demais partidos, como tem reagido à proposta?
Jair Krischke – O DEM não me preocupa. O que penso é que a nossa classe política está devendo muito ao Brasil, lamentavelmente. Fizeram do Congresso Nacional um balcão de negócios e já não gozam mais da opinião pública brasileira, do seu eleitorado, aquilo que seria fundamental: o respeito. Raros são os parlamentares, tanto deputados federais como senadores, que são homens respeitados pela opinião pública. Hoje, no Brasil, olhamos para o Congresso Nacional e percebemos que não há mais ideologia. Tudo é negócio. Sou do tempo em que esquerda era esquerda, centro era centro e direita era direita. Hoje essa fronteira está borrada. Você já viu alguém nesse país se assumir como direitista? Ou assumir que é racista? No Brasil, especialmente no Congresso Nacional, prevalece de forma notória a hipocrisia, pura e simples. Dizem uma coisa e fazem outra. O DEM, se for interessante para ele, irá votar a favor da Comissão da Verdade.
O cenário político em geral é muito ruim, pois ficaram pessoas que não querem ter compromissos com a população. Acho mais coerente que a pessoa assumisse suas posições, seja de direita ou esquerda, e tivesse essa clareza e representatividade no Congresso, como ocorre na França, por exemplo.
IHU On-Line – A sociedade brasileira tem acompanhado o desenrolar da Comissão? Acredita que nosso povo esteja suficientemente ciente da importância desse tema não apenas em termos históricos, mas de consolidação da democracia em nosso país?
Jair Krischke – Esse é um problema grave, e devo nomear a grande imprensa como responsável por boa parte dele. A grande imprensa brasileira, mesmo sendo qualificadíssima, presta um desserviço à população. A opinião pública brasileira se abastece de informações via televisão, em sua maior parte, e nossa televisão é encantadora, envolvente. Ocorre que o conteúdo é de uma pobreza franciscana. Então, como podemos esperar do povo conhecimento sobre temas como a Comissão da Verdade, se a imprensa, que tem o dever de informar sobre temas dessa natureza, não o faz? O povo brasileiro se mantém um pouco distante disso por falta de informação. Nós passamos 21 anos sob ditadura, e a imprensa estava absolutamente censurada. E agora desenterram entulhos da ditadura como a censura à RBS e ao Estado de São Paulo, o primeiro impedido de citar o nome de um vereador envolvido na farra das diárias, e o segundo impedido de citar o nome do filho de José Sarney desde janeiro do ano passado. E sobre isso ninguém fala. Já temos 26 anos de democracia, mas que não serviram muito para as redações deixassem de lado a autocensura, algo que entrou “pelos poros”. É preciso abordar temas como a Comissão da Verdade. Como não cumpre sua missão nesse aspecto, a imprensa acaba pondo em prática um mecanismo de contenção social, pois não informa o que deveria.
Para ler mais:
08/09/2011 - Comissão da Verdade será votada após aval de militares
14/09/2011 - Planalto quer aprovação até fim do mês da Comissão da Verdade
08/09/2011 - Erundina vê "jogo" com Comissão da Verdade
08/09/2011 - Comissão da Verdade. "É um instrumento limitado". diz Maria do Rosário
07/01/2011 - Governo Dilma: as esperanças para a Comissão da Verdade. Entrevista especial com Jair Krischke
09/01/2010 - PNDH-3. Verdade, justiça e reparação. Entrevista especial com Jair Krischke
13/09/2008 - Memória e ditadura militar: "Precisamos passar a limpo o que aconteceu’. Entrevista especial com Christa Berger
04/01/2011 - Desaparecido político não é vergonha, diz ministro
26/08/2009 - Anistia: "O povo tem memória sim". Entrevista especial com Oswaldo Munteal Filho
22/08/2009 - Lembranças vivas, feridas abertas: a punição aos torturadores da ditadura no Brasil. Entrevista especial com José Carlos Moreira da Silva Filho
31/08/2009 - Os 30 anos da anistia no Brasil. Entrevista especial com Jair Krischke
08/01/2010 - Revisão da lei de anistia. A pregação contrária trata a impunidade como imunidade
Tortura, crime contra a humanidade. Um debate urgente e necessário. Edição 269 da revista IHU On-Line
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500463-comissao-da-verdade-e-consolidacao-da-democracia-entrevista-especial-com-jair-krischke
Uma grande oportunidade de promovermos a consolidação de nossa democracia, esclarecendo os crimes contra a humanidade que foram cometidos entre os anos 1964 a 1985. Essa é a percepção do advogado Jair Krischke sobre as potencialidades da Comissão da Verdade, que nesta quarta-feira, dia 21-09-2011, será votada no Congresso.
Ainda esperançoso, mas um pouco menos entusiasmado quando da posse da presidente Dilma Rousseff sobre o esclarecimento dos crimes desse período, Krischke disse, por telefone à IHU On-Line, que o ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, era um dos entraves à Comissão. Agora, com o “arejamento” de sua saída, a situação melhora, mas ainda há pessoas que vão contra a instauração da iniciativa, como Fernando Collor de Mello e José Sarney.
Krischke acentua que a documentação a ser analisada pela Comissão da Verdade deve ser disponibilizada para o público, e que um relatório final após os dois anos de trabalho também precisa ser levado a conhecimento geral, garantindo “à sociedade brasileira o direito à verdade”.
Outros temas da conversa foram o lobby “quase invencível” dos militares no Congresso e a falta de ideologia entre os partidos. Tudo virou um negócio, lamenta. “Você já viu alguém nesse país se assumir como direitista? Ou assumir que é racista?”
Jair Krischke, formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos Direitos Humanos da Região Sul do Brasil. Também é o fundador do Comitê de Solidariedade com o Povo Chileno.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No início do ano o senhor estava bem otimista quanto à abertura dos arquivos da ditadura pelo governo Dilma. Hoje, qual é a sua percepção sobre o assunto?
Jair Krischke – Continuo esperançoso, mas com menos entusiasmo. Há uma situação “interessante” nesse país. Muitas pessoas que seriam parceiras e que deveriam se juntar a essa causa não têm feito isso. Para ser aprovada no Congresso, a Comissão da Verdade deve ter a base aliada aciona pela presidente. Vejo que na própria base aliada existem setores refratários à criação da Comissão. Isso é que me deixa preocupado, cauteloso. Por outro lado, se já foi anunciado que a Comissão irá à votação dia 21 de setembro, provavelmente uma articulação já foi feita. Dilma não correria o risco de submeter à votação e esta não ser aprovada. Penso que essa medida foi tomada.
Além disso, preocupa-me o texto que será aprovado, pois tal qual está, não está bem. Dou um exemplo: o período que querem votar para ser investigado abrange 1946 a 1985. Isso é tempo demais, um período muito longo, tão longo que é absolutamente impossível aos sete membros da Comissão darem cabo do trabalho em dois anos, como está previsto. Quantos assessores serão contratados para auxiliar esses sete membros?
IHU On-Line – Essa dilatação de prazo foi proposital para que se perdesse o foco do trabalho?
Jair Krischke – Sim. Qualquer criatura se dá conta de que esse período é muito longo e precisaria de mais conselheiros ou um número de assessores bem maior. Em dois anos é impossível fazer esse trabalho. Isso me preocupa. Houve outras comissões semelhantes no Brasil, e notamos que não é muito importante o número de membros dos conselheiros, mas sim o número de pessoas que irão investigar.
IHU On-Line – Como percebe a relação do governo Dilma com os militares, sobretudo a partir dos episódios envolvendo o general José Elito e o ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim?
Jair Krischke – Penso que Dilma continua com sua posição de presidente da República e comandante em chefe das Forças Armadas, conforme estabelece a Constituição. Ela se pauta por isso. Ocorre que Dilma tem uma postura muito discreta nesses assuntos. Ela não está se exibindo de suas prerrogativas. Discretamente, ela faz o que deveria fazer. O episódio envolvendo o general José Elito mostrou a todos qual é a sua postura, ou seja, de não admitir certas declarações ou atitudes. Não chegou a haver um estresse maior nesse caso, pois Dilma foi firme e discreta ao mesmo tempo.
Já quanto ao que houve com Nelson Jobim, devemos dizer que se trata de algo muito diferente. Ele é um civil, então ministro da Defesa e que se aproximou em demasia dos militares. Ele chegava a aparecer fardado, algo absolutamente indevido, inclusive deixando-se registrar em foto trajando uniformes militares e com uma serpente na mão. Foi algo ridículo. Além disso, começou a tomar atitudes inconvenientes. Homem do PMDB e ministro, foi “cozido” em banho maria por Dilma, que não o recebia em audiências. Ele acabou pedindo para sair após diversas declarações bobas. Ele era um dos tantos obstáculos para a concretização da Comissão da Verdade, mas não era o único, porque dentro da base aliada, como por exemplo no PMDB, Sarney não quer a abertura dos arquivos. Ele tem dito isso abertamente.
Está no Congresso, no Senado, uma nova lei que trata dos arquivos que é de classificação e desclassificação dos documentos. Collor de Mello, relator na comissão de relações exteriores e defesa, queria alterar mandando novamente o sigilo para a eternidade. Isso faz pouco tempo. Collor de Mello, essa figura triste do Brasil, senador da República do PTB, partido da base aliada, joga contra. Assim, não é só Jobim que representava um empecilho à Comissão da Verdade.
IHU On-Line – A saída de Jobim pode "acelerar" a aprovação da Comissão? Por quê?
Jair Krischke – De certa forma acelerou, sim. Contudo, penso que essas outras figuras também representam dificuldades. Temos que ser muito objetivos em tais assuntos. Há dificuldades enormes. Eu gostaria de ver tudo mais claro, quem tem qual posição. Penso que, bem ou mal, a Comissão está indo. Torço para que saia pelo melhor lado.
IHU On-Line – O que significou a demissão de Jobim do governo Dilma?
Jair Krischke – Significou um arejamento. A posição dele como ministro civil da Defesa era mais realista do que o rei. Ele tinha uma posição muito mais militar do que os próprios militares, inclusive do que aqueles que já estão em casa, de pijamas. Ele ter se afastado foi, sim, um ganho para o governo. Não sei dizer se a troca por Celso Amorim realmente é positiva, se ele irá, de forma efetiva, ter uma contribuição muito diferente e até onde ele pretende avançar com a Comissão da Verdade. É um quebra-cabeças muito pesado. Agora é uma situação diferente. Como ministro de relações exteriores, Amorim aproximou o Brasil de vários países com perfil de esquerda, é verdade, mas muito por interesses legítimos econômicos. Mas isso não quer dizer absolutamente uma declaração de fé ideológica.
No texto da Comissão da Verdade está expressa a vontade de promover a reconciliação nacional. Mas o que significa isso? Nossa proposta seria promover a consolidação da democracia. Porque reconciliação, a meu ver, é algo maior. Ela traz exigências. A primeira delas é que o autor do fato, o violador dos direitos humanos, deve reconhecer que errou. Em segundo lugar, deve pedir perdão. Em terceiro lugar, cabe às vítimas perdoar ou não, porque isso é de foro íntimo. Mas não posso falar em reconciliação sem que o autor da violação não reconheça seu erro, desculpando-se. Então, aquela frase em que se fala em "promover a reconciliação nacional”, a nossa ideia é que seja substituída pela expressão “promover a consolidação da democracia”. Porque nosso processo de democratização não termina nunca.
Dia 14-09-2011 dei uma palestra na Unisinos e falei nela que não houve uma transição democrática em nosso país, mas uma transação. Precisamos chegar num momento em que a democracia tenha vigência plena. Nesse sentido, a Comissão da Verdade é uma oportunidade grandiosa para promovermos a consolidação da democracia, fazendo com que realmente aconteça a diminuição do período de 1946 a 1985 previsto para ser abarcado. O período abrangido pela Comissão da Verdade deve ser de 1964 a 1985.
Essa Comissão deve ter poderes para apurar quem foram os responsável pela prática de graves violações dos direitos humanos nesse período. Não se trata de ter poderes para julgar. Ela apura e depois envia para as autoridades competentes, como o Ministério Público, por exemplo. Essa comissão tem o dever de apurar e vai trabalhar com documentos, examinando-os.
Direito à verdade
Crimes contra a humanidade não prescrevem. Já temos uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos condenando o Brasil por causa da guerrilha do Araguaia, e essa sentença diz que deve ser observada a jurisprudência internacional, a qual afirma que crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. Nessa sentença, há esse aspecto que deve ser levado em conta, de que o Brasil deve adequar sua legislação a isso para punir os responsáveis. Essa documentação que será examinada deve ser disponibilizada, inclusive, para o público. Ao final de dois anos de trabalho é preciso que o relatório garanta à sociedade brasileira o direito à verdade. Nessa Comissão não pode haver nenhum militar, assim como não pode haver nenhum familiar de vítima do regime militar. Deve ser composta por pessoas absolutamente isentas, reconhecidas pela sociedade. Sua tarefa é de uma importância tão grande que devem ser exemplares.
IHU On-Line – O que está em jogo no quadro de negociações com o Congresso para criar a Comissão da Verdade? Quais são as dificuldades para aprovar esse projeto?
Jair Krischke – Certas coisas incríveis só acontecem no Brasil. Os militares continuam atuando fortemente no Congresso Nacional. Eles têm, permanentemente nessa casa, um grupo lobista de seus interesses junto aos deputados. Em sua maioria, são coronéis que sempre estão no Congresso “batendo ponto”, fazendo lobby com os políticos para que seja aprovado aquilo que é de interesse dos militares. Os militares são parte do Estado brasileiro e não deveriam fazer lobby em lugar nenhum. Eles são comandados pela presidente da República. No Congresso Nacional as coisas têm que acontecer segundo o desejo e disposições da presidente, e eles não tem nada que estarem lá pressionando. Mas isso acontece todos os dias. Estão lá permanentemente.
Há uma convenção da ONU sobre as desaparições forçadas e que ficou no Congresso por mais de dez anos. Quando foi atribuído ao deputado federal eleito Vieira da Cunha presidir a Comissão de Relações Exteriores, esse projeto de lei assinado pelo Brasil foi para o Congresso no intuito de ser validado. Nesse momento, ele perguntou-me seu eu tinha algum pedido para a Comissão. Respondi-lhe que sim, mencionando a aprovação dessa convenção, parada há cinco anos. O lobby potentíssimo para não aprovar entrou em ação, pois os militares receavam, assim como receiam até hoje, que o Brasil, assinando e agora sendo referendada pelo Congresso a comissão de desaparições, eles teriam que prestar contas das desaparições propriamente ditas que cometeram. A força desse lobby dos militares é quase invencível. Os deputados acabam cedendo, se rendendo. Temos deputados da base do governo que se dobram a isso.
IHU On-Line – Como vê a posição do DEM em relação à Comissão da Verdade? E os demais partidos, como tem reagido à proposta?
Jair Krischke – O DEM não me preocupa. O que penso é que a nossa classe política está devendo muito ao Brasil, lamentavelmente. Fizeram do Congresso Nacional um balcão de negócios e já não gozam mais da opinião pública brasileira, do seu eleitorado, aquilo que seria fundamental: o respeito. Raros são os parlamentares, tanto deputados federais como senadores, que são homens respeitados pela opinião pública. Hoje, no Brasil, olhamos para o Congresso Nacional e percebemos que não há mais ideologia. Tudo é negócio. Sou do tempo em que esquerda era esquerda, centro era centro e direita era direita. Hoje essa fronteira está borrada. Você já viu alguém nesse país se assumir como direitista? Ou assumir que é racista? No Brasil, especialmente no Congresso Nacional, prevalece de forma notória a hipocrisia, pura e simples. Dizem uma coisa e fazem outra. O DEM, se for interessante para ele, irá votar a favor da Comissão da Verdade.
O cenário político em geral é muito ruim, pois ficaram pessoas que não querem ter compromissos com a população. Acho mais coerente que a pessoa assumisse suas posições, seja de direita ou esquerda, e tivesse essa clareza e representatividade no Congresso, como ocorre na França, por exemplo.
IHU On-Line – A sociedade brasileira tem acompanhado o desenrolar da Comissão? Acredita que nosso povo esteja suficientemente ciente da importância desse tema não apenas em termos históricos, mas de consolidação da democracia em nosso país?
Jair Krischke – Esse é um problema grave, e devo nomear a grande imprensa como responsável por boa parte dele. A grande imprensa brasileira, mesmo sendo qualificadíssima, presta um desserviço à população. A opinião pública brasileira se abastece de informações via televisão, em sua maior parte, e nossa televisão é encantadora, envolvente. Ocorre que o conteúdo é de uma pobreza franciscana. Então, como podemos esperar do povo conhecimento sobre temas como a Comissão da Verdade, se a imprensa, que tem o dever de informar sobre temas dessa natureza, não o faz? O povo brasileiro se mantém um pouco distante disso por falta de informação. Nós passamos 21 anos sob ditadura, e a imprensa estava absolutamente censurada. E agora desenterram entulhos da ditadura como a censura à RBS e ao Estado de São Paulo, o primeiro impedido de citar o nome de um vereador envolvido na farra das diárias, e o segundo impedido de citar o nome do filho de José Sarney desde janeiro do ano passado. E sobre isso ninguém fala. Já temos 26 anos de democracia, mas que não serviram muito para as redações deixassem de lado a autocensura, algo que entrou “pelos poros”. É preciso abordar temas como a Comissão da Verdade. Como não cumpre sua missão nesse aspecto, a imprensa acaba pondo em prática um mecanismo de contenção social, pois não informa o que deveria.
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segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Comissão da Verdade: mais uma farsa, mais um engodo
No último dia 21 de setembro, foi votado pela Câmara Federal o PL 7.376/2010 que criou um arremedo de Comissão Nacional da Verdade. Se a proposta apresentada pelo governo federal já se caracterizava por sua timidez, as emendas apresentadas pelo DEM — e aceitas em um grande acordão pela Presidente da República — piorou ainda mais o projeto.
Antes, o texto do projeto estreitava a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes, negando-lhe orçamento próprio; desviando o foco de sua atuação ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988!), extrapolando assim em duas décadas a já extensa duração da Ditadura Militar.
Além disso, impede que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes, para que estas promovam a justiça.
Por tudo isto, continuamos reiterando as seguintes considerações, que constam de documento com milhares de assinaturas, encaminhado em junho deste ano à presidenta Dilma Roussef:
Para que tenhamos uma Comissão que efetive a Justiça:
― o período de abrangência do projeto de lei deverá ser restrito ao período de 1964 a 1985;
― a expressão “promover a reconciliação nacional” seja substituída por “promover a consolidação da Democracia”, objetivo mais propício para impedir a repetição dos fatos ocorridos sob a ditadura civil-militar;
― no inciso V, do artigo 3º, deve ser suprimida a referência às Leis: 6.683, de 28 de agosto de 1979; 9.140, de 1995; 10.559, de 13 de novembro de 2002, tendo em vista que estas leis se reportam a períodos históricos e objetivos distintos dos que devem ser cumpridos pela Comissão Nacional da Verdade e Justiça.
― o parágrafo 4°, do artigo 4°, que determina que “as atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório”, deve ser substituído por nova redação que delegue à Comissão poderes para apurar os responsáveis pela prática de graves violações de direitos humanos no período em questão e o dever legal de enviar suas conclusões para as autoridades competentes;
Para que tenhamos uma Comissão de verdade:
― o parágrafo 2°, do artigo 4º que dispõe que “os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”, deve ser totalmente suprimido pela necessidade de amplo conhecimento pela sociedade dos fatos que motivaram as graves violações dos direitos humanos;
― o artigo 5°, que determina que “as atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção do sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas”, deve ser modificado, suprimindo-se a exceção nele referida, estabelecendo que todas as atividades sejam públicas, com ampla divulgação pelos meios de comunicação oficiais.
Para que tenhamos uma Comissão da Verdade legítima:
― os critérios de seleção e o processo de designação dos membros da Comissão, previstos no artigo 2º, deverão ser precedidos de consulta à sociedade civil, em particular aos resistentes (militantes, perseguidos, presos, torturados, exilados, suas entidades de representação e de familiares de mortos e desaparecidos);
― os membros designados e as testemunhas, em decorrência de suas atividades, deverão ter a garantia da imunidade civil e penal e a proteção do Estado.
Para que tenhamos uma Comissão com estrutura adequada:
― a Comissão deverá ter autonomia e estrutura administrativa adequada, contando com orçamento próprio, recursos financeiros, técnicos e humanos para atingir seus objetivos e responsabilidades. Consideramos necessário ampliar o número atual de sete (7) membros integrantes da Comissão e o período de sua atuação, previsto para 2 anos.
Entendemos também que esta Comissão Nacional da Verdade deveria ser autônoma e independente do Estado.
A condenação do Brasil pela Organização dos Estados Americanos
Os crimes cometidos pela ditadura que controlou o Brasil por mais de 20 anos permanecem desconhecidos e os documentos que comprovam esses abusos continuam em segredo. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, órgão da Organização dos Estados Americanos, condenou nosso país por esses delitos, exigindo que o governo brasileiro investigue e responsabilize seus autores.
E foi nesse sentido que o Brasil, através do atual governo, apresentou o PL, na tentativa de ter argumento junto à Corte para afirmar que esclareceu os casos de violação de direitos humanos.
Por tudo isto, afirmamos que queremos sim uma Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça que efetivamente investigue onde, quando, como e quem foram os responsáveis pelas atrocidades cometidas em nome da “Segurança Nacional”. Que sejam publicizados e responsabilizados!
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/noticias.asp?CodNoticia=305
26 anos de luta contra a tortura
Setembro de 2011
Publicado em: 30/09/2011
Antes, o texto do projeto estreitava a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes, negando-lhe orçamento próprio; desviando o foco de sua atuação ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988!), extrapolando assim em duas décadas a já extensa duração da Ditadura Militar.
Além disso, impede que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes, para que estas promovam a justiça.
Por tudo isto, continuamos reiterando as seguintes considerações, que constam de documento com milhares de assinaturas, encaminhado em junho deste ano à presidenta Dilma Roussef:
Para que tenhamos uma Comissão que efetive a Justiça:
― o período de abrangência do projeto de lei deverá ser restrito ao período de 1964 a 1985;
― a expressão “promover a reconciliação nacional” seja substituída por “promover a consolidação da Democracia”, objetivo mais propício para impedir a repetição dos fatos ocorridos sob a ditadura civil-militar;
― no inciso V, do artigo 3º, deve ser suprimida a referência às Leis: 6.683, de 28 de agosto de 1979; 9.140, de 1995; 10.559, de 13 de novembro de 2002, tendo em vista que estas leis se reportam a períodos históricos e objetivos distintos dos que devem ser cumpridos pela Comissão Nacional da Verdade e Justiça.
― o parágrafo 4°, do artigo 4°, que determina que “as atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório”, deve ser substituído por nova redação que delegue à Comissão poderes para apurar os responsáveis pela prática de graves violações de direitos humanos no período em questão e o dever legal de enviar suas conclusões para as autoridades competentes;
Para que tenhamos uma Comissão de verdade:
― o parágrafo 2°, do artigo 4º que dispõe que “os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”, deve ser totalmente suprimido pela necessidade de amplo conhecimento pela sociedade dos fatos que motivaram as graves violações dos direitos humanos;
― o artigo 5°, que determina que “as atividades desenvolvidas pela Comissão Nacional da Verdade serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção do sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas”, deve ser modificado, suprimindo-se a exceção nele referida, estabelecendo que todas as atividades sejam públicas, com ampla divulgação pelos meios de comunicação oficiais.
Para que tenhamos uma Comissão da Verdade legítima:
― os critérios de seleção e o processo de designação dos membros da Comissão, previstos no artigo 2º, deverão ser precedidos de consulta à sociedade civil, em particular aos resistentes (militantes, perseguidos, presos, torturados, exilados, suas entidades de representação e de familiares de mortos e desaparecidos);
― os membros designados e as testemunhas, em decorrência de suas atividades, deverão ter a garantia da imunidade civil e penal e a proteção do Estado.
Para que tenhamos uma Comissão com estrutura adequada:
― a Comissão deverá ter autonomia e estrutura administrativa adequada, contando com orçamento próprio, recursos financeiros, técnicos e humanos para atingir seus objetivos e responsabilidades. Consideramos necessário ampliar o número atual de sete (7) membros integrantes da Comissão e o período de sua atuação, previsto para 2 anos.
Entendemos também que esta Comissão Nacional da Verdade deveria ser autônoma e independente do Estado.
A condenação do Brasil pela Organização dos Estados Americanos
Os crimes cometidos pela ditadura que controlou o Brasil por mais de 20 anos permanecem desconhecidos e os documentos que comprovam esses abusos continuam em segredo. A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, órgão da Organização dos Estados Americanos, condenou nosso país por esses delitos, exigindo que o governo brasileiro investigue e responsabilize seus autores.
E foi nesse sentido que o Brasil, através do atual governo, apresentou o PL, na tentativa de ter argumento junto à Corte para afirmar que esclareceu os casos de violação de direitos humanos.
Por tudo isto, afirmamos que queremos sim uma Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça que efetivamente investigue onde, quando, como e quem foram os responsáveis pelas atrocidades cometidas em nome da “Segurança Nacional”. Que sejam publicizados e responsabilizados!
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/noticias.asp?CodNoticia=305
26 anos de luta contra a tortura
Setembro de 2011
Publicado em: 30/09/2011
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Rita Candeu
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A assombrosa história de Olderico Barreto, homem que encarou o carrasco Fleury
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2011/10/assombrosa-historia-de-olderico-barreto.html
Leia mais:
Era o dia 28 de agosto de 1971. Olderico, então com 23 anos, tinha sido ferido no ataque do grupo comandado pelo temido delegado Sérgio Paranhos Fleury – chefe de torturadores e de grupo de extermínio da polícia paulista – à casa do seu pai, o velho José Barreto, em Buriti Cristalino, povoado do município de Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina, a cerca de 600 quilômetros de Salvador. Fleury estava à procura do capitão do Exército que virou guerrilheiro, Carlos Lamarca, que estava escondido no mato, a pouca distância do povoado, em companhia do seu irmão mais velho Zequinha (José Campos Barreto), então companheiro de militância no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, antes eles militaram na VPR – Vanguarda Popular Revolucionária) e que se tornara também inimigo da ditadura ao liderar, em 1968, a famosa greve dos metalúrgicos de Osasco, em São Paulo.
"Isso é um bicho", exclamou, espantado, um dos repressores quando costuravam a mão de Olderico Campos Barreto, sem anestesia, e ele não dava um gemido sequer...
Um pouco antes, um grupo de agentes da ditadura do Rio de Janeiro tinha assumido o interrogatório, tachando o pessoal de São Paulo de “bunda-mole” porque não conseguiam arrancar de Olderico a informação sobre onde Lamarca estava escondido. “Vamos ver se ele não fala”, disse um e meteu a boca da pistola no ouvido de Olderico. “Aperta o dedo”, desafiou – ou foi “aperta o gatilho?”, ele se pergunta ao contar o episódio 40 anos depois -, para o espanto dos torturadores, assombrados com tamanho destemor. E um deles soltou o “elogio”: “Isso é um bicho!”
Olderico (esq.) no local onde Lamarca e Zequinha foram mortos |
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Era o dia 28 de agosto de 1971. Olderico, então com 23 anos, tinha sido ferido no ataque do grupo comandado pelo temido delegado Sérgio Paranhos Fleury – chefe de torturadores e de grupo de extermínio da polícia paulista – à casa do seu pai, o velho José Barreto, em Buriti Cristalino, povoado do município de Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina, a cerca de 600 quilômetros de Salvador. Fleury estava à procura do capitão do Exército que virou guerrilheiro, Carlos Lamarca, que estava escondido no mato, a pouca distância do povoado, em companhia do seu irmão mais velho Zequinha (José Campos Barreto), então companheiro de militância no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, antes eles militaram na VPR – Vanguarda Popular Revolucionária) e que se tornara também inimigo da ditadura ao liderar, em 1968, a famosa greve dos metalúrgicos de Osasco, em São Paulo.
Lamarca e Zequinha ouviram a fuzilaria no povoado, na casa do velho José Barreto, e fugiram tentando escapar do cerco. Pelo mato, a pé, fragilizados pela desnutrição, isolados dos moradores levados a vê-los como terroristas, foram mortos poucos dias depois, no dia 17 de setembro, após uma marcha heróica por aquela inóspita região do semi-árido. Já sem condições de oferecer resistência, foram metralhados por um comando do Exército, sob a chefia do então major Nilton Cerqueira, nas proximidades de Pintada, povoado do município de Ipupiara, pertinho do limite com Brotas de Macaúbas. Estes episódios estão no livro “Lamarca, o capitão da guerrilha”, de Emiliano José e Oldack Miranda, que virou filme dirigido por Sérgio Rezende, e no documentário “Do Buriti à Pintada – Lamarca e Zequinha na Bahia”, de Reizinho Pereira dos Santos.
Relatou repetidas vezes, com paciência de missionário, estes assombrosos acontecimentos
Olderico, agora com 63 anos, é a principal testemunha da tenebrosa violência que se abateu sobre a família do patriarca José Barreto, então com 65 anos, que sobreviveu a terríveis torturas. Veio a morrer em 1995. Durante o ataque à sua casa morreram outro dos seus filhos, Otoniel (esboçou uma temerária reação, seguida da tentativa desesperada de fuga, ao ouvir os gritos do pai sob tortura), e o militante Luiz Antônio Santa Bárbara, companheiro de Lamarca e Zequinha, que estava morando em sua casa.
Ao amanhecer do dia 28 de agosto de 1971, Olderico estava no centro do furacão. Por um momento no desigual tiroteio, se viu frente a frente com Fleury, mas teve a sorte de, ferido na mão e no rosto, tombar para dentro de um dos cômodos da casa e sair da linha de fogo. Ele conta tentando entender aqueles momentos de extrema aflição: os truculentos agentes de Fleury chutavam e pisavam na sua mão direita, ferida à bala, e até hoje deformada.
Nos atos públicos e celebrações dos últimos dias 17 e 18, realizados em Brotas de Macaúbas, Buriti e Pintada, para marcar os 40 anos do assassinato de Lamarca e Zequinha, Olderico relatou repetidas vezes às dezenas de visitantes, aos repórteres, fotógrafos e documentaristas, com paciência de missionário, estes assombrosos acontecimentos, já bem conhecidos nos contornos gerais, mas mesmo assim com lances emocionantes, especialmente quando relatados por um tal protagonista. (Depois da prisão e uma temporada em São Paulo, ele decidiu retornar à sua terra pensando em fazer alguma coisa em benefício dos seus conterrâneos. Atualmente é gerente da Cooperativa Agro-mineral Sem Fronteiras Ltda (CASEF) – Brotas se destaca na produção de cristais de quartzo – e um cidadão participante da vida social e política da região, como se pode ver no decorrer deste relato).
Guiados por suas indicações, sua memória e seu entendimento, e entretidos pela atração dos detalhes, vimos o local onde os dois patriotas tombaram, perto de Pintada – o destemido Zequinha ainda com forças para correr e gritar “viva a revolução” e o capitão guerrilheiro já, de fato, tombado, deitado no chão, as forças já quase completamente exauridas. Vimos onde os dois corpos foram quebrados para serem conduzidos pendurados em paus, como carne e ossos de animais, nos ombros dos repressores, e onde foram estendidos em forma “de valete” – cabeça de um com pés do outro – e expostos à execração pública.
Visitamos a então casa da família Barreto em Buriti – o imóvel está em reforma, foi doado ao Instituto Zequinha Barreto para virar um centro de memória. Vimos o quarto onde foi colocado, ferido, junto aos corpos do irmão Otoniel e de Santa Bárbara, Olderico fala do sangue dos três escorrendo; vimos a porta de outro quarto, já nos fundos, por onde ele caiu depois de atingido pelas balas, ficando fora da linha de fogo; o quintal de onde partia a cerrada fuzilaria; a marca de uma bala no batente de uma janela. Fala horrores dos agentes da ditadura comandados por Fleury, mas, ao mesmo tempo, menciona com reverência o Exército brasileiro, assinalando que Zequinha serviu nas Forças Armadas.
“Não é possível que esses homens não tenham direito à terra e ao trabalho”
Ele nos mostrou a rota da tentativa de fuga do irmão Otoniel e o ponto onde finalmente tombou, a uma centena de metros do quintal da casa. Reproduzo de memória o sentido de suas palavras: “Aqui, junto desta cerca de arame, ficou o corpo de Otoniel, desde cedinho quando ocorreu o ataque. Já eram umas 10 horas e as aves de rapina começaram a bicar o corpo. Zé de Virgílio (José Pereira de Oliveira, muito amigo de seu pai) viu que estavam comendo o olho de meu irmão e não aguentou ver aquilo. Cobriu o corpo com um couro de boi e foi pedir aos homens da repressão para evitar tamanha desumanidade”. Lembra sempre da necessidade de resgatar a memória e a verdade do difícil período da ditadura, enfatizando essa coisa terrível de serem tachados de terroristas os que lutavam contra o regime militar, o terrorismo de Estado. Contou até uma passagem engraçada: uma vez ele foi convidado por um amigo para um almoço em sua casa e, ao chegar, o amigo o apresentou à esposa, anunciando se tratar do “maior terrorista do Brasil” (o amigo desconhecia o sentido pejorativo do termo, parecendo achar que “terrorista” era uma espécie de elogio). Deu seu testemunho durante a missa celebrada em louvor aos mártires, no coreto de Buriti, convidado pelo principal celebrante, Dom Frei Luiz Cappio, bispo da Diocese de Barra. Ressaltou mais uma vez a luta do irmão Zequinha e a bela pessoa humana que era o capitão Lamarca e aproveitou para pedir, como sempre faz nas mais variadas oportunidades – dirigindo-se desta vez diretamente ao prefeito de Brotas, Litercílio Júnior, do PT, que estava presente –, melhorias para seu querido povo de Buriti Cristalino.
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No ato público do dia 17, manhã de sábado, na praça central de Brotas de Macaúbas, Olderico foi chamado a discursar entre as diversas autoridades e políticos que participaram dos eventos em defesa da memória e da verdade. Falou novamente da importância de se resgatar a verdadeira história, lembrou as privações de Lamarca no seu precário esconderijo no mato, a sua vontade impossível de manter contato com os camponeses, da vontade impossível de trabalhar fazendo farinha com os moradores da região, falou da seca, da fome, do rádio através do qual o capitão escutava as notícias dos lutadores brasileiros nas emissoras da China, da União Soviética e da Albânia. E, mais uma vez, deu seu recado em favor dos conterrâneos “para os companheiros do governo que estão aqui”. Pediu a construção de estrada e outros melhoramentos para os mineiros. Bradou no seu jeito humanitário: “Não é possível que esses homens não tenham direito à terra e ao trabalho”.
“…jamais voltarão esses grupos que assassinam pessoas, que assassinam seus adversários”
Transcrevo agora o breve discurso de Olderico, também na praça principal de Brotas, na noite de 29 de julho deste ano, logo depois de assistir ao lançamento nacional do documentário “Do Buriti à Pintada”, contendo depoimentos de militantes políticos daquela época, moradores e familiares seus, incluindo o pai José Barreto
Em nome da família Barreto, em nome da minha família, eu queria agradecer a Reizinho e toda a equipe do filme na pessoa de Reizinho, pelos momentos que nos propiciou e agradecer também por ter escolhido a praça de Brotas de Macaúbas para lançar o filme. Normalmente as coisas ocorrem no eixo Rio/São Paulo e a gente só fica sabendo depois. Então, queremos agradecer este privilégio e agradecer a todos que contribuíram com o filme e a todos que estão aqui. Queria dizer a vocês sobre o impacto que vi agora, me ocorreram as mais diferentes sensações… o choro, arrepio, tudo… a emoção de ver e rever pessoas como o meu pai, o resgate que foi um trabalho perfeito. Agradecemos a (Litercílio) Júnior, o prefeito, que facilitou como administrador do município todos os dados para esta comissão, esta equipe que produziu esse trabalho. Isso é democracia, e nós acreditamos nela e acreditamos que o mundo será um dia sempre melhor e jamais voltarão esses grupos que assassinam pessoas, que assassinam seus adversários. Vamos trabalhar por um mundo melhor. Obrigado”. Como comentou um amigo que conheci na viagem a Brotas de Macaúbas, Antônio dos Santos Pinho, professor de História em Salvador, “Olderico fala com alma”.
Postado por
Rita Candeu
às
13:00
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