Um presidente deposto e outro conduzido ao poder por homens armados marcam o início da Revolução ‘Democrática’ de 1964. Entenda os eventos que levaram à instauração da ditadura civil-militar no Brasil
João Roberto Martins Filho
Tropas mineiras se deslocam em Brasília em 4 de abril de 1964.
No mesmo
dia, Jango fugiu para o exílio /
Imagem: Arquivo Nacional
A radicalização de Goulart dava ares de verdade à mensagem de que ele se rendia ao comunismo. No começo de março, com a adesão do sempre cauteloso general Castello Branco ao movimento, a relação de forças no seio das Forças Armadas começara a pender a favor do golpe. Mas ainda pairava no ar o fantasma de um confronto com o “dispositivo militar” do presidente, comandado pelo chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. Chegou-se a uma situação na qual o que contava era a capacidade de cada lado de arregimentar legiões.
Respeitado no Exército, Castello Branco sabia que, sem o apoio da maioria dos oficiais, o movimento anti-Goulart fracassaria. No campo civil, as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” tinham feito seu papel, permitindo dizer que o povo brasileiro chamava as Forças Armadas para salvar o país do comunismo.
Na manhã de 31 de março, o general recebeu com irritação a notícia de que a ala mineira da rebelião resolvera precipitar os acontecimentos. Carlos Luiz Guedes, comandante da Infantaria Divisionária 4, e Olympio Mourão Filho, chefe da 4ª Divisão de Infantaria, de Juiz de Fora, agiam em acordo com o governador Magalhães Pinto. Por volta das 7 horas da manhã do dia 31 de março, o general Castello Branco ligou para Magalhães pedindo que convencesse Mourão a não deslocar seus homens para o Rio de Janeiro. Não obteve sucesso. Batizada de “Coluna Tiradentes”, a tropa saiu de Juiz de Fora à tarde, sob o comando do general Antonio Carlos Muricy, atingindo a divisa com o Rio de Janeiro no final do dia.
Na ex-capital do país, o chefe da Casa Militar do governador, coronel Fontenelle, mandou bloquear as ruas de acesso ao palácio com caminhões de lixo, temendo um ataque de tropas legalistas. Na Praia de Botafogo, vista como alvo provável de um desembarque de fuzileiros navais comandados pelo almirante Aragão, inimigo público e visceral de Lacerda e partidário de Goulart, Fontenelle mandou colocar tonéis de petróleo vazios.
Atraída pelos rumores, uma pequena multidão se concentrou nos arredores do Palácio Guanabara. Sarcasticamente, o próprio Lacerda descreveu anos depois a movimentação: “Então apareciam no Guanabara uns velhinhos, uns almirantes reformados, uns generais reformadíssimos, que saíam de casa com a sua pistolinha! Mas apareceu também uma rapaziada enorme, gente para todo lado, gente que ficava nas esquinas atrás de colunas”.
Surgiram boatos de que o Corpo de Fuzileiros Navais estaria se deslocando da Ilha do Governador para atacar Lacerda. As linhas telefônicas do Palácio foram cortadas, com exceção de uma, graças à qual Lacerda conseguiu se comunicar com o governador Ademar de Barros, em São Paulo, e com a UnitedPress, no exterior. O governador de Pernambuco, Miguel Arraes, pronunciou-se em defesa do regime constitucional. No Paraná, seu colega Nei Braga anunciou apoio ao golpe.
No histórico prédio do Ministério da Guerra, no Rio, em seu gabinete da Chefia do Estado-Maior do Exército, o general Castello Branco acompanhava o desenrolar dos fatos. Caberia a ele neutralizar qualquer movimento de tropas a partir do Rio de Janeiro ou de Petrópolis para enfrentar a coluna de Mourão. Em telefonema a Lacerda, Castello procurou explicar que a questão agora era militar: São Paulo, o Nordeste e o Rio Grande do Sul precisavam se definir. Feito isso, as tropas paulistas e mineiras marchariam em diversas colunas para o Rio de Janeiro. Em nenhum outro lugar os acontecimentos foram tão decisivos.
Em São Paulo, às 22 horas, Ademar de Barros declarou apoio ao golpe. Uma hora depois, o general Amaury Kruel, chefe do II Exército, com sede na capital paulista, aderiu ao movimento, após tentar convencer Goulart a demitir ministros “comunistas”. Às 2 horas da manhã, Ademar foi de novo à televisão anunciar que as tropas do general Kruel seguiam pela Via Dutra rumo ao Rio de Janeiro, para se reunir à “Coluna Tiradentes”. Entre os paisanos, os governadores de Goiás, Mato Grosso e dos estados do Sul tinham declarado apoio ao golpe.
Como disse depois o general Cordeiro de Farias, “o Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º”. A coluna de Minas Gerais defrontou-se, na altura do Rio Paraibuna, com o batalhão de Petrópolis, chefiado por um tenente-coronel de nome Kerensky. Os tenentes de Mourão conversaram diretamente com seus camaradas vindos do estado da Guanabara, conseguindo sua adesão. Às 3h30, o marechal Odílio Denys, ex-ministro da Guerra, visitou a coluna e logrou, por telefone, convencer o coronel comandante do Regimento Sampaio a alinhar-se às legiões em revolta.
Gradualmente, a hipótese de confronto militar se extinguia. Às 7 horas, Mourão e seus comandados puseram-se de novo em movimento. Alguns oficiais da Força Aérea levantaram voo de Pirassununga (SP) com o objetivo de atacar as colunas golpistas, mas não receberam ordens para disparar. Também na Força Aérea, o esforço miúdo de doutrinação do pré-golpe mostrava resultados. Às 12 horas, o Regimento de Artilharia de Costa, ao lado do Forte de Copacabana, foi neutralizado pelo impulsivo general Montagna, que ultrapassou a assustada sentinela dando-lhe um empurrão. Do Recife, o general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, anunciou seu apoio. Ações isoladas dos fuzileiros navais do almirante Aragão não conseguiram virar o jogo militar. O “almirante vermelho” acabou preso.
Jango resolveu deixar o Rio de Janeiro pouco antes das 13 horas, embarcando para Brasília. O ministro da Justiça, Abelardo Jurema, foi detido no Aeroporto Santos Dumont e levado para a Escola de Comando e Estado Maior do Exército, na Urca, um dos centros nervosos do movimento. No Recife, às 20 horas, tropas do Exército prenderam o governador Miguel Arraes, conduzido a um quartel, de onde seria transferido, no dia 2, para Fernando de Noronha.
Reunidos na Cinelândia, manifestantes pró-Goulart tentaram invadir o Clube Militar, mas foram rechaçados a tiros. Instigados ao vivo pelo apresentador de rádio e de TV Flávio Cavalcanti, bandos anticomunistas atearam fogo à sede da União Nacional dos Estudantes, a UNE, na Praia do Flamengo. Em toda a cidade, tropas policiais e militares começaram a prender líderes políticos ligados a Goulart. A Faculdade Nacional de Filosofia foi atacada a tiros de metralhadora.
No Centro da cidade, uma reunião de emergência convocada pelo Comando Geral dos Trabalhadores foi dissolvida, com prisões de alguns líderes importantes. O jornal Última Hora, de Samuel Wainer, foi empastelado. Às 17 horas, oficiais da Marinha conseguiram tomar o prédio de seu ministério. Houve violentos conflitos entre manifestantes e soldados nas ruas da ex-capital, com mortos e feridos.
Às 23h30, Goulart voou para Porto Alegre, onde esperava resistir com apoio do Exército. De madrugada, com o Congresso Nacional cercado por tropas militares e sob protesto de um grupo de parlamentares, seu presidente, o senador Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da Presidência, embora o presidente ainda estivesse em território nacional. Às 11h45 do dia 2 de abril, ele fugiu para São Borja, dali rumando para uma fazenda no Uruguai.
Por alguns dias, para dar uma aparência de legalidade ao golpe, a Presidência da República passou a ser ocupada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Conduzido ao Planalto “em um carro literalmente coberto por homens armados”, como relatou o terceiro secretário da Embaixada Americana em Brasília, Robert Bentley, Mazzilli tomou o poder na calada da noite. Ainda no dia 2, os Estados Unidos reconheceram o novo regime. Começava o período da oficialmente chamada Revolução Democrática de 1964.
João Roberto Martins Filho é professor da Universidade Federal de São Carlos e organizador de O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas (Edufscar, 2006).
Nenhum comentário:
Postar um comentário