Terça, 04 de dezembro de 2012
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516008-a-historia-de-um-sobrevivente-dos-anos-de-chumbo-entrevista-com-anivaldo-padilha
“Sou grato por ter pertencido a uma geração, ou melhor, a uma
parte da minha geração que não se calou diante da tirania”, diz o
sociólogo e membro do grupo de trabalho constituído pela Comissão
Nacional da Verdade que investiga o papel das igrejas durante a ditadura militar.
Confira a entrevista.
Depois de ter tido sua história de vida marcada pelas torturas da ditadura, Anivaldo Padilha acaba de encerrar um ciclo, após o julgamento de seu caso na Comissão de Anistia. “No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos se levantaram, o presidente da comissão Dr. Paulo Abraão
pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu
desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado
por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava
resgatada”, disse à IHU On-Line.
Líder da juventude metodista e do movimento ecumênico de juventude no Brasil e na América Latina durante os anos 1960, Padilha
lutou contra a opressão e pela democracia. Na entrevista a seguir,
concedida por e-mail, ele resgata essa história e diz que na prisão
conheceu o “lado mais cruel e diabólico do ser humano”, mas também “o
lado mais sublime, que é a capacidade de ser solidário em
situações-limite”. E complementa: “Tudo isso contribuiu para que muitos
de nós pudéssemos descobrir e encontrar dentro de si aquela força para
resistir que muitas vezes não pensávamos possuir”.
Quase 50 anos depois, Padilha
avalia que a situação do país melhorou, especialmente no âmbito
jurídico-institucional. “Conseguimos, no período pós-ditadura, construir
um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca).
Entretanto, paralelamente a esses avanços, mantivemos estruturas e
instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias
civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de
cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no
estadual”, conclui.
Anivaldo Padilha
é formado em Ciências Sociais e membro da Igreja Metodista. Esteve
exilado por 13 anos no Chile, EUA e Suíça. De regresso ao Brasil, em
1984, incorporou-se ao Centro Ecumênico de Documentação e Informação –
CEDI. Em 1994, participou da fundação de KOINONIA Presença Ecumênica e
Serviço. É membro da equipe de assessores de KOINONIA, membro da
Diretoria do Conselho Latino-Americano de Igrejas (Região Brasil) e da
Junta Diretiva do Church World Service, dos Estados Unidos e mora em São
Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em
maio deste ano, o senhor recebeu indenização da Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça pelos graves danos que lhe foram causados na época
da ditadura. Como se sente diante desta decisão?
Anivaldo Padilha –
Com muita sinceridade, devo dizer que o aspecto mais importante da
anistia é o caráter político da decisão, e não a indenização que vou
receber. Nunca lutei por dinheiro e, sim, pela democracia.
A sessão da Comissão de Anistia
na qual meu caso foi julgado representou um momento ímpar para mim. Eu
já havia assistido a algumas sessões da Comissão e já conhecia o ritual.
No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos
se levantaram, o presidente da Comissão Dr. Paulo Abraão
pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu
desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado
por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava
resgatada. Naquele momento compreendi o significado simbólico daquele
gesto que eu já havia presenciado em outras ocasiões, mas não tinha
ainda noção do que representava para uma pessoa que teve seus direitos
violentamente agredidos por uma política de terror oficialmente
executada pela ditadura.
Ao mesmo tempo, senti que, apesar de
tudo e de todos os problemas que enfrentei, a minha luta e a de todos
que lutaram contra a ditadura valeu a pena. A Anistia, para mim, marcou o
encerramento de um ciclo importante da minha vida, mas, acima de tudo,
representa estímulo e incentivo para o início ou continuidade um novo
ciclo sem, contudo, significar mudança de rumos ou de lados. Se antes a
luta foi contra a ditadura, hoje é a luta pelo aprofundamento da
democracia que conquistamos até agora. Ou seja, vejo a construção da
democracia como um processo permanente e sinto-me feliz por fazer parte
desse processo.
IHU On-Line – Na época em que foi preso e torturado, qual era sua atuação na Ação Popular – AP e na liderança ecumênica jovem?
Anivaldo Padilha – Como militante da AP eu
atuava no movimento estudantil (cursava Ciências Sociais na USP) e me
dedicava ao trabalho de conscientização e de organização de setores da
classe média. Ao mesmo tempo, trabalhava na Igreja Metodista como
diretor do Departamento Nacional de Juventude e editor da “Cruz de Malta”,
uma revista publicada por essa igreja e dirigida especificamente ao
público jovem. Eu era também o secretário, para o Brasil, da União Latino-americana de Juventudes Ecumênicas.
Sempre procurei separar minha militância política na AP da
minha participação e atuação na igreja e no movimento ecumênico apesar
de que, em muitos casos, havia certa coincidência. Por exemplo, a defesa
dos direitos humanos, a oposição à ditadura, a crítica às estruturas
injustas da nossa sociedade e os esforços para a superação das
desigualdades econômicas e sociais no Brasil eram bandeiras ecumênicas
que em grande parte coincidiam com as posições políticas dos diversos
movimentos que se opunham à ditadura. Meu trabalho eclesial e ecumênico
envolvia a promoção de reflexões bíblico-teológicas, produção de
materiais educativos visando a formação ecumênica da juventude não só
metodista mas de outras igrejas também, o envolvimento de jovens em
projetos sociais e o incentivo à solidariedade com pessoas perseguidas
pela ditadura.
Já minha atuação na AP envolvia esforços que visavam a construção de apoios políticos e logísticos para a ação política da AP.
Era um trabalho clandestino e muito arriscado, realizado com muita
dificuldade pois a ditadura impedia qualquer tipo de oposição aberta.
IHU
On-Line – Como o senhor descreve os 20 dias em que ficou preso no
DOI-CODI, respectivamente Destacamento de Operações de Informações e
Centro de Operações de Defesa Interna?
Anivaldo Padilha – Somados os três períodos em que estive no DOI-CODI e os em que estive no DEOPS, entre o final de fevereiro o final de junho, foram três meses de terror. O período mais difícil foi no DOI-CODI
porque os interrogatórios acompanhados de torturas foram diários
durante cerca de três semanas. E as torturas não eram somente físicas.
Eram acompanhadas de torturas psicológicas para quebrar a resistência do
prisioneiro. Por exemplo, ficar em uma cela suja, dormindo no chão em
um colchão também sujo, sem possibilidade de fazer a higiene pessoal,
como tomar banho ou escovar os dentes, sem ter como trocar de roupa, uma
só refeição diária que no início era composta de restos do jantar do
quartel do exército e posteriormente uma marmita fornecida pelo Grupo Ultra.
Juntamente com esse tratamento vinham os insultos constantes dos
carcereiros e dos membros da guarda. Vivi essa situação durante o
primeiro período de cerca de vinte dias em que estive no DOI-CODI.
A ditadura sabia que é muito difícil para uma pessoa manter o senso de
dignidade diante de uma situação como essa. Entretanto, creio que todos
nós, prisioneiros, tínhamos consciência de que a prisão era também uma
frente de luta e que era necessário reunir todas as forças interiores
que tínhamos para resistir.
Lado mais cruel e diabólico do ser humano
Sempre
digo que conheci na prisão o lado mais cruel e diabólico do ser humano.
É quando o mal que temos dentro de nós assume o controle total dos
nossos atos e passa a agir com total liberdade. É quando o mal se
instala de forma absoluta. Pude vivenciar isso na ação dos torturadores,
mas não era algo simplesmente individual. É claro que alguns deles se
moviam por sentimentos de extremo sadismo, mas é possível até que alguns
deles fossem meigos com seus amigos e familiares. Entretanto, ali no DOI-CODI,
tornavam-se possuídos pelo poder de vida ou de morte que tinham sobre
nós, pois tinham consciência de que estavam executando uma política de
Estado. Sabiam que a tortura não era somente uma técnica sistemática de
interrogatório, mas, acima de tudo, um instrumento de terror usado para
intimidar a sociedade. Não se sentiam pessoalmente responsáveis e
acreditavam na impunidade.
O lado mais sublime do ser humano
Ao
mesmo tempo, conheci o que considero o lado mais sublime do ser humano,
que é a capacidade de ser solidário em situações-limite como a que na
qual nos encontrávamos. Essa solidariedade se manifestava de várias
formas: nas palavras de incentivo e de encorajamento quando um de nós
era levado para interrogatório ou quando regressava das sessões de
torturas e necessitava de cuidados; no respeito às diferenças
político-ideológicas que havia entre os prisioneiros; na manifestação
concreta do amor ao próximo que atingia o ponto máximo na capacidade de
doação da própria vida como aconteceu com vários de nossos companheiros e
companheiras. Tudo isso contribuiu para que muitos de nós pudéssemos
descobrir e encontrar dentro de si aquela força para resistir que muitas
vezes não pensávamos possuir. Não quero fazer uma análise maniqueísta e
reduzir essa experiência a uma luta entre o bem e o mal, mas o fato
objetivo é que naquela situação as fronteiras entre um e o outro se
tornavam muito claras para nós e isso nos ajudava a discernir claramente
de que lado deveríamos estar e encontrar forças para não nos rendermos.
IHU
On-Line – Que sentimento o senhor guarda em relação ao pastor metodista
José Sucasas Jr. e o bispo Isaías Fernando Sucasas, já falecidos, que
lhe denunciaram?
Anivaldo Padilha – É importante esclarecer que as denúncias feitas pelo bispo Isaias Fernandes Sucasas e seu irmão pastor José Sucasas Jr. contra mim não foram a causa imediata da minha prisão. Fui preso juntamente com uma companheira de militância, Eliana Rolemberg, quando fomos à casa do tio de dois jovens da Igreja Metodista retirar um pacote de documentos que eles haviam deixado lá para nós. O tio deles abriu o pacote, considerou o material subversivo e chamou o DEOPS, na época comandado pelo infame delegado Sérgio Fleury. Os sobrinhos não sabiam que o tio deles era informante do DEOPS.
Durante uma das sessões de torturas por que passei, enquanto eu negava
ser comunista e membro de uma organização clandestina, uma dos
torturadores me disse: “Você quer que acreditemos em você ou naquele
pastor que afirma que você é comunista?”. Naquele momento não consegui
saber o nome do tal pastor. Ouvi essa mesma pergunta várias vezes depois
e não tenho dúvidas de que a delação foi uma das causas para a
intensificação das torturas que sofri.
Foi somente há cerca de
seis anos que descobri que não era um, mas dois pastores que me haviam
denunciado. As denúncias foram feitas por escrito nas margens de uma
cópia do “Unidade”, um jornal artesanal da juventude metodista que eu editava e que era bastante crítico da liderança conservadora da Igreja.
As denúncias dos irmãos Sucasas foram enviadas ao escritório do Serviço Nacional de Informações – SNI
em São Paulo. Esse documento consta do conjunto de documentos a meu
respeito que estão hoje no Arquivo do Estado de São Paulo. E há cerca de
três anos descobri que ambos eram informantes do DEOPS. Um estudante que estava trabalhando em sua dissertação de mestrado teve acesso ao diário do bispo Sucasas e nele encontrou dois registros, feitos em 2008. No primeiro, o bispo narra que ele e seu irmão foram ao DEOPS
e se colocaram à disposição para colaborar com a repressão. No segundo
registro, feito alguns dias depois, ele descreve a segunda visita que
ele e seu irmão fazem ao DEOPS para retirar suas respectivas carteiras de informantes.
É interessante registrar que eles não sabiam do meu envolvimento com a Ação Popular.
Fica claro nas anotações que fizeram nas margens do jornal que a
delação praticada por eles estava relacionada aos conflitos internos na
igreja entre os setores progressistas, principalmente a juventude, e os
setores conservadores. Em outras palavras, usaram a delação aos órgãos
de repressão da ditadura como um meio de repressão contra a juventude da Igreja Metodista.
Fantasma das torturas
Não
sei dizer exatamente o que sinto hoje sobre eles. Com eu já afirmei
publicamente em outras ocasiões, durante muito tempo, no meu período de
exílio, fui perseguido pelo fantasma das torturas. Depois de muito
esforço consegui perdoar os torturadores e também os que me denunciaram.
A partir daí os pesadelos desapareceram. Foi um processo terapêutico
para mim, uma forma que encontrei de vencê-los. Já disse também que há
situações em que o perdão é mais importante para quem perdoa do que para
quem é perdoado. Mas isso, em minha opinião, só faz sentido no âmbito
subjetivo, nas relações interpessoais. No âmbito político, essas pessoas
têm que ser responsabilizadas judicialmente porque seus crimes não
foram somente contra os presos políticos individualmente, mas
principalmente contra a sociedade brasileira. E a sociedade tem o
direito e a obrigação de responsabilizá-los judicialmente.
IHU
On-Line – Como o senhor se sentiu ao partir para o exílio com a esposa
grávida, sendo obrigado a ficar distante da família, sem conviver com
seu filho – hoje o médico Alexandre Padilha, ministro da Saúde? Quais as
principais consequências que esse processo gerou para o senhor e sua
família?
Anivaldo Padilha – Após conseguir liberdade
condicional, permaneci no Brasil vivendo na clandestinidade durante
cerca de cinco meses. Nesse período vivi com o auxílio do Conselho Mundial de Igrejas. Isso me possibilitou retomar contatos com meus companheiros da AP,
especialmente com minha companheira (não éramos casados) que também
estava na clandestinidade. Nesse período ela ficou grávida. Foi um
período muito difícil para mim. Eu estava fisicamente muito debilitado e
psicologicamente abalado devido às condições precárias da prisão e às
torturas que havia sofrido. Não podia conseguir emprego regular, pois as
empresas exigiam atestado de antecedentes. Meu pai havia praticamente
perdido a visão devido a um derrame, não tinha aposentadoria e vivia sob
os cuidados da minha mãe. Eles dependiam totalmente de mim
financeiramente.
Ao mesmo tempo, o cerco da repressão contra a
AP e as organizações de esquerda em geral se intensificava e estava
claro que se fosse preso novamente eu seria morto, pois essa tinha sido a
ameaça que sofri por parte do capitão Homero, um dos
torturadores, quando saí da prisão. Durante esse período de
clandestinidade, agentes do DEOPS foram à casa dos meus pais por duas
vezes para me prender. No final de abril de 1971, fui convencido de que
não havia mais possibilidades de eu permanecer no Brasil.
Dívida
Só
eu sei a angústia que senti ao ter que deixar minha companheira,
grávida de três meses, sabendo que ela também corria riscos de ser
presa, torturada e talvez assassinada juntamente com nosso filho que
ainda estava por nascer. Meu filho nasceu enquanto eu estava no exílio!
Esse é um dos traumas profundos que ainda me perseguem, pois só pude
conhecê-lo, abraçá-lo e conversar com ele quando ele estava com oito
anos, quando vim ao Brasil logo após a assinatura da Lei de Anistia
para, então, formalmente reconhecer a sua paternidade e fazer seu
registro de nascimento. Só pude conviver com ele, em uma relação de
pai/filho, depois de regressar ao país definitivamente em outubro de
1983.
Eu disse em várias ocasiões que essa é uma dívida que a
ditadura tem para comigo e com todos nós e que nunca poderá ser paga. A
dívida só não é maior porque minha companheira (por quem tenho o maior
respeito e admiração) e minha mãe tiveram sempre o cuidado de explicar
para ele os motivos por eu não estar no Brasil. Ele cresceu sabendo que
eu estava distante, mas não ausente. Durante esse período, apesar de
todas as dificuldades de comunicação e os necessários cuidados com a
segurança, houve trocas de mensagens entre nós, algumas por fitas
cassetes e desenhos, outras por fotos. E o mais salutar disso foram as
trocas de comunicação entre o Alexandre e os meus dois filhos (Celso e Paulo) que nasceram no exterior. A amizade entre eles é muito grande e há claramente um clima de admiração mútua entre eles.
IHU On-Line – De que maneira o senhor relaciona a ditadura militar com os mais de três séculos de escravidão?
Anivaldo Padilha – Creio que há vários pontos que estabelecem uma íntima relação entre a ditadura e o nosso passado escravagista.
Poderia mencionar vários, mas vou citar somente dois. Um é o profundo
preconceito social e racial que ainda prevalece entre setores
importantes e poderosos da elite brasileira. Alguém disse (não lembro
quem, neste momento) que a nossa elite saltou de uma sociedade
escravagista para a modernidade sem passar pela Revolução Francesa,
ou seja, não sofreu o impacto dos valores republicanos de liberdade,
igualdade e fraternidade; esses preconceitos têm se traduzido, em vários
momentos da nossa história, em verdadeiro ódio de classe. Basta ver
como esse ódio e esses preconceitos são (re) produzidos em alguns meios
de comunicação atualmente; é uma elite que nunca se educou pelos valores
humanistas de verdade e por isso é incapaz de conviver com a democracia
e usa de todos os meios para criminalizar qualquer movimento social que
possa representar uma ameaça, mesmo que remota, aos seus interesses;
uma decorrência natural dessa mentalidade é tratar qualquer questão
social como caso de polícia, seja em questões ligadas ao mundo do
trabalho, moradia ou até saúde pública, como temos visto na cidade de
São Paulo ultimamente com a violência policial
contra usuários de crack; essa elite sabe exatamente o que a escravidão
representou e por isso sempre tratou de mistificá-la nos livros
escolares. A abolição da escravatura no país é apresentada como um ato
de benignidade de uma representante da nobreza e com isso trata de
apagar a memória dos horrores que a escravidão representou para uma
parcela enorme da população brasileira no passado e suas consequências
para seus descendentes. Eu diria que essas são as raízes
ideológico-culturais da enorme desigualdade social que caracteriza a
sociedade brasileira.
O outro é o também profundo desrespeito à
dignidade humana que se traduz na perpetuação da violência das nossas
polícias contra os pobres e o uso sistemático dos diferentes métodos de
tortura. Antes era usada contra os escravos que se atreviam a
transgredir a ordem estabelecida pelo sistema escravagista e,
posteriormente, foi aprimorada para uso contra dissidentes políticos,
como aconteceu durante a ditadura civil/militar. Hoje, continua a ser
usada contra prisioneiros nas delegacias e prisões.
IHU
On-Line – O que lhe motiva, mesmo depois desta experiência, a assumir a
condição de protestante e de líder ecumênico latino-americano?
Anivaldo Padilha
– O que me motiva hoje são os mesmos princípios protestantes e
ecumênicos que me levaram a me engajar na luta por uma sociedade mais
justa e democrática, inicialmente como parte dos movimentos pelas
reformas de base no período anterior ao golpe de estado de 1964
e, posteriormente, na luta contra a ditadura. Sou ecumênico porque sou
protestante. Devido à minha formação protestante, desde muito jovem
compreendi os limites da Igreja institucional e sei que ela é repleta de
contradições, para dizer o mínimo. A história do cristianismo nos
mostra que foram poucos os momentos em que ele – o cristianismo –
realmente foi fiel aos princípios do Evangelho e aos valores do Reino de Deus.
Na maior parte das vezes, os grupos dominantes na Igreja-instituição se
aliaram aos poderes dominantes do mundo na manutenção do status quo. Ao mesmo tempo, sempre houve minorias que procuraram ser fiéis à tradição bíblica profética na qual o movimento de Jesus
se insere. E, para mim, o movimento ecumênico é parte dessa tradição. É
um movimento que, por sua própria natureza, tende a ser transgressor e a
constantemente desafiar as igrejas. É essa natureza do movimento
ecumênico que me motiva e dá sentido ao meu envolvimento político e
eclesial na luta constante pela defesa, promoção e garantia dos direitos
humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.
IHU On-Line – Quais são hoje os principais desafios que envolvem a luta contra as violações de direitos humanos no Brasil?
Anivaldo Padilha –
Os desafios são muito grandes e multifacetados, pois a garantia e
defesa dos direitos humanos envolvem várias frentes de luta que estão
relacionadas: econômicos, sociais, culturais e ambientais. Por isso, sem
desprezar as outras frentes, vou me concentrar na questão da violência
que hoje ocupa grande parte da agenda nacional.
Uma das heranças
mais perversas da ditadura, perpetuada e disseminada pelo oligopólio da
mídia sensacionalista, é que a defesa dos direitos humanos significa uma
ameaça à ordem estabelecida. Na época da ditadura, quem defendia os
direitos humanos era identificado na mídia como protetor de
“terroristas” e não como defensores da democracia. Hoje, somos acusados
de defender bandidos e não como defensores da justiça para todos os
cidadãos e cidadãs. Enquanto isso, as ações das polícias militares e de
milícias nas periferias das grandes cidades e de pistoleiros a serviço
de fazendeiros continuam a assassinar, impunemente, lideranças
comunitárias, camponesas e indígenas. Apesar da existência de um número
cada vez maior de organizações da sociedade civil que têm na promoção e
na garantia de direitos uma de suas prioridades, ainda não conseguimos
inverter a balança de poder. E esse desequilíbrio se manifesta em
praticamente todas as esferas da sociedade, incluindo aquelas
instituições que, por sua natureza, supostamente deveriam ter outra
compreensão, como igrejas e universidades. Essa é uma luta ideológica
que temos que travar todos os dias. É uma luta desigual como sempre foi
(e provavelmente sempre será) porque os instrumentos que possuímos são
frágeis e enfrentamos poderosos meios de comunicação que estão a serviço
da manutenção do status quo – e aqui me refiro tanto à grande mídia tradicional quanto aos blogs e redes de direita na internet.
Arcabouço jurídico de garantias
Creio
que temos tido vários avanços, especialmente no âmbito
jurídico-institucional. Conseguimos, no período pós-ditadura, construir
um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca).
Entretanto, paralelamente a esses avanços mantivemos estruturas e
instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias
civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de
cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no
estadual. Por exemplo, nem o governo federal nem aqueles governos
estaduais que sabemos ter compromissos com os direitos humanos até agora
foram capazes de promover uma reforma profunda no sistema de segurança
pública com a formação de uma polícia unificada focada numa política de
prevenção, de inteligência e de proteção da sociedade. Ao contrário, a
ênfase tem sido na ação das polícias militares. Como sabemos, a PM é uma
invenção da ditadura, criada sob a ideologia de segurança nacional para
a luta contra o “inimigo interno”. Ela é treinada para matar e não para
proteger a sociedade. Uma nova política de segurança
e uma nova polícia já representaria um grande avanço em direção à
proteção de direitos. Mas sabemos que dificilmente chegaremos lá sem a
mobilização da sociedade.
IHU On-Line – Como se sente
tendo sido vítima de sofrimento do regime militar, num período sombrio
da nossa história, das lutas pela construção de um Brasil mais justo e
democrático?
Anivaldo Padilha – Sou grato por ter
pertencido a uma geração, ou melhor, a uma parte da minha geração que
não se calou diante da tirania. No fundo, me considero não um
privilegiado, mas um dos sobreviventes dos anos de chumbo que percebe na
memória da passagem pelo vale das sombras da morte, como diria o
salmista, a força para olhar o futuro com esperança e reconhecer que
tudo valeu a pena.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor
faz do trabalho que vem sendo feito pela Comissão Nacional da Verdade?
Considera-a um avanço ou pensa que ela já nasce limitada? Possibilitará
romper a impunidade que se impôs sobre os anos de chumbo com a Lei da
Anistia?
Anivaldo Padilha – Eu preferia uma Comissão Nacional da Verdade – CNV mais robusta, com prazo mais longo para executar seu trabalho, com orçamento próprio e com autoridade para recomendar ao Ministério Público o indiciamento dos agentes do Estado que cometeram crimes de violação dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, sabia que um CNV
no Brasil só seria constituída por meio de negociações políticas que
levassem a uma decisão consensual – e foi o que ocorreu. Ela não poderá
propor indiciamentos; outro limite é o prazo com que ela trabalha, pois
terá que apresentar seu relatório final até maio de 2014. E terá que dar
conta de várias frentes de investigação. Para poder cumprir com essa
tarefa monumental, a CNV tem estabelecido relações com
centros de pesquisa e com organizações da sociedade civil que já têm
pesquisas acumuladas sobre a ditadura. Alguns estados e municípios
também estão criando suas comissões da verdade como um meio de colaborar
com a CNV. Essas parcerias e iniciativas que se desenvolvem como uma forma de suprir o que parece ser um limite da CNV
pode muito bem se transformar em um de seus aspectos muito positivos,
que é a participação de setores da sociedade e a de ampliação do seu
impacto.
Entranhas dos porões da ditadura
Já
sabemos muito sobre o que aconteceu durante a ditadura e sobre o papel
que muitas instituições e setores da sociedade desempenharam naquele
período. Entretanto, há ainda muito a se descobrir e também muito a se
comprovar. Creio que ao expor publicamente as entranhas dos porões da
ditadura e mostrar como a repressão se estruturou, qual a sua linha de
comando, como atuou, quem apoiou e quem foram seus agentes, dificilmente
a CNV deixará de causar um impacto positivo. Por
exemplo, creio que seu relatório contribuirá para fortalecer a
necessidade de o Brasil intensificar a discussão sobre a necessidade de
se remover os resquícios autoritários tanto ideológicos quanto
institucionais que herdamos da ditadura, aquilo que Ulisses Guimarães chamou de entulho autoritário. Um desses entulhos é a interpretação da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal – STF, interpretação que dá continuidade à tradição brasileira de impunidade e de acordo entre as elites.
Minha esperança é que, além de produzir um relatório robusto e inquestionável sobre os crimes cometidos durante a ditadura, a CNV
produza na sociedade o sentimento de que seu trabalho não se refere
somente ao passado, mas, acima de tudo, aponta para o futuro a fim de
que aquele passado nunca mais se repita.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?
Anivaldo Padilha – Sim, gostaria de dar uma informação e de fazer um convite, quase um apelo. Quero informar que a CNV
decidiu investigar o papel das igrejas durante a ditadura. Um grupo de
trabalho já foi constituído. Ele é formado por pesquisadores que já têm
trabalho acumulado nesse campo. Tenho a honra de compartilhar a sua
coordenação com o Paulo Sérgio Pinheiro, membro efetivo da CNV. Pretendemos nos concentrar em quatro áreas:
1) o papel das igrejas na preparação do golpe;
2) papel que desempenharam na legitimação e consolidação da ditadura;
3) a colaboração de setores das igrejas com a repressão; e
4) resistência de setores das igrejas à ditadura e repressão sofrida por grupos dissidentes internos.
Como
sei que grande parte dos leitores desta publicação estão no mundo
acadêmico e ou têm relações com o campo religioso, aproveito para
solicitar a colaboração no sentido de me enviar informações que possam
contribuir para o trabalho do GT. Desde já agradeço e disponibilizo meu email aqui: apadilha@distopia.com.
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