terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Operação Limpeza": os afastamentos sumários de professores durante a ditadura no RS. Entrevista especial com Jaime Valim Mansan

janeiro de 2010

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/29182-operacao-limpeza-os-afastamentos-sumarios-de-professores-durante-a-ditadura-no-rs-entrevista-especial-com-jaime-valim-mansan

No começo desta semana, a Folha de S.Paulo revelou que documentos produzidos por um órgão de perseguição política criado durante a ditadura militar foram descobertos no acervo da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Esses documentos, pertencentes ao arquivo pessoal do então professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Laudelino Teixeira de Medeiros, são compostos por centenas de páginas com atas de uma Ceis (Comissão Especial de Investigação Sumária): essa comissão, instalada em maio de 1964, buscava iniciar uma "caça às bruxas", estimulando a delação na UFRGS de docentes, alunos e funcionários envolvidos em "subversão política".

Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Jaime Valim Mansan, mestre em História, relata mais detalhes desses documentos, tendo sido o primeiro pesquisador a utilizá-los como objeto de estudo, sendo a matéria-prima para a defesa de sua dissertação na PUC-RS, em 2009.

Para Mansan, o objetivo dessa comissão, revelada pelos documentos, era "afastar sumariamente (`expurgar`) das Forças Armadas e dos órgãos públicos civis que pudessem ter alguma ligação com o governo deposto e com as esquerdas em geral". Segundo o historiador, na UFRGS, os expurgos não tinham a ver com corrupção ou improbidade administrativa. "Todos foram motivados por questões político-ideológicas, ficando evidente, assim, o caráter autoritário da medida", afirma.


Jaime Valim Mansan é mestre em História pela PUC-RS e licenciado em História pela UFRGS. Com Helder Silveira e Luciano Abreu, organizou o livro "História e ideologia: perspectivas e debates" (Ed. UPF, 2009). Membro-fundador e atual vice-coordenador do GT História e MarxismoANPUH-RS, é professor de História na rede pública estadual em São Leopoldo e em escolas particulares de Porto Alegre e Cachoeirinha.


Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há poucos dias, foram revelados documentos que comprovam a existência de uma espécie de "caça às bruxas" para que professores da UFRGS fizessem a delação de colegas envolvidos com "subversão política", por meio da chamada Comissão Especial de Investigação Sumária (Ceis). Como funcionavam essa Comissão e as delações?
Jaime Valim Mansan – Após o golpe de 1964, os militares e civis que assumiram o poder instauraram no país um processo por eles chamado de "Operação Limpeza". Seu objetivo principal era afastar sumariamente ("expurgar") das Forças Armadas e dos órgãos públicos civis todos que pudessem ter alguma ligação com o governo deposto e com as esquerdas em geral. Como se sabe, além dos expurgos, foram presas milhares de pessoas, e muitas sofreram outros tipos de violência, dentre eles a tortura.

"A `Operação Limpeza` tinha o objetivo de afastar sumariamente (`expurgar`) das Forças Armadas e dos órgãos públicos todos que pudessem ter ligação com o governo deposto e com as esquerdas"

No âmbito dessa operação, em várias universidades do país as chamadas "comissões especiais de investigação sumária" foram criadas, por ordem do então Ministro da Educação e Cultura Flávio Suplicy de Lacerda. A UFRGS não foi, portanto, uma exceção. Uma das especificidades da universidade gaúcha, entretanto, foi a criação de uma comissão que contava com um representante de cada unidade de ensino. A Ceis criada na USP naquela época, por exemplo, contava com três professores, além do reitor Gama e Silva que, aliás, havia assumido o Ministério da Justiça logo após o golpe.

Outra especificidade da UFRGS foi a criação de subcomissões, pequenos grupos de dois ou quatro membros da comissão geral, organizados com o objetivo de agilizar os trabalhos de "investigação". Esse trabalho baseava-se fundamentalmente na delação, voluntária ou coagida, por parte de professores, estudantes e servidores técnico-administrativos, bem como em informações fornecidas pelo DOPS/RS (Departamento de Ordem Política e Social) e pelo III Exército.

Para isso, a CEIS/UFRGS contou, desde sua reunião de instalação e em todas as reuniões, com a participação bastante ativa do Gen. Jorge Cesar Garrastazu Teixeira, indicado pelo Comando do III Exército por solicitação do próprio ministro Suplicy de Lacerda. Como as faculdades de Direito e de Odontologia de Pelotas, que em 1969 deram origem à UFPel, eram, na época, vinculadas à UFRGS, uma subcomissão com professores de lá também foi montada e igualmente supervisionada por um "assessor militar", no caso o Cel. Bento Pena Fernandes.


IHU On-Line – Você foi uma peça chave para que esse material fosse encontrado no acervo da biblioteca da UCS. Como conseguiu encontrá-los? E como esses documentos foram parar na UCS e nunca vieram à tona antes?
Jaime Valim Mansan – Comecei a estudar esse tema dos expurgos em 2004, durante a graduação em História, realizada na UFRGS. Em 2006, creio que foi o Prof. Benito Bisso Schmidt, da UFRGS, quem me disse que estavam na UCS documentos que haviam pertencido ao Prof. Laudelino Medeiros. A valiosa biblioteca do falecido sociólogo tinha sido vendida, pela família, à universidade serrana. Junto com os livros, foram documentos. Não sabíamos o teor deles, apenas que Laudelino fora membro da comissão em 1964.

Era possível que lá houvesse algo interessante e, ainda naquele ano de 2006, estive em Caxias do Sul pesquisando no Centro de Documentação da UCS, juntamente com o Prof. Enrique Serra Padrós (na época meu orientador). Só então tomei conhecimento da existência das atas e de outros documentos relacionados à UFRGS, lá arquivados de maneira primorosa e exemplar.

"Laudelino Teixeira Medeiros foi um dos membros da CEIS/UFRGS mais ativos e mais alinhados com as diretrizes do governo ditatorial"

Isso, claro, não significa que ninguém tenha sabido daquela documentação antes de mim, no mínimo porque a competente equipe envolvida no tratamento e catalogação do acervo obviamente tomara conhecimento de seu conteúdo antes de qualquer pesquisador. Portanto, não me julgo no mérito de ser referido como pioneiro na descoberta das atas da comissão ou algo assim. Apenas fiz o que entendo que qualquer pesquisador deve fazer: segui as pistas que fui encontrando, na busca do maior número possível de fontes que pudessem ajudar a responder as questões que eu formulara sobre meu objeto de estudo.

O que ocorreu é que, até onde pude verificar, ninguém havia utilizado, antes de mim, as atas da CEIS/UFRGS em uma pesquisa acadêmica, conforme afirmei ao jornalista Mário Magalhães, da Folha de S.Paulo. A par disso, nos últimos anos, outros pesquisadores também trabalharam com aquela documentação.

Isso é extremamente saudável, tanto pela construção de diferentes perspectivas sobre um mesmo objeto, quanto pela riqueza da documentação, com potencial para embasar estudos sobre outras questões.

Exemplo disso é o caso do historiador Marcos Fontana Cerutti, que atualmente é mestrando em Educação na Unisinos. Com orientação da Profª Beatriz Daudt Fischer, Cerutti pesquisa sobre os estudantes que foram investigados pela CEIS/UFRGS (o alvo da comissão não era apenas os professores, mas também os estudantes e os servidores técnico-administrativos).


IHU On-Line – Os documentos pertenciam ao sociólogo Laudelino Teixeira de Medeiros, um dos 15 docentes da comissão de denúncia. Quem era Laudelino e qual a sua importância dentro desse contexto de delações?
Jaime Valim Mansan – Laudelino Teixeira Medeiros foi professor de Sociologia na UFRGS, sendo considerado por muitos como um pioneiro nessa área aqui no Estado. Das 43 entrevistas que realizei, ao longo da pesquisa, com atores daquele processo, em inúmeras há referências a Laudelino como um estudioso bastante reconhecido em sua área de atuação e, politicamente, um conservador convicto. Foi um dos membros da CEIS/UFRGS mais ativos e mais alinhados com as diretrizes do governo ditatorial.

"Na UFRGS, não houve um expurgo sequer promovido por corrupção ou improbidade administrativa. Todos foram motivados por questões político-ideológicas"

Há um pequeno equívoco quanto à composição da CEIS/UFRGS. Ela foi formada por 14 docentes, cada um representando uma congregação da universidade, organizados em três subcomissões em Porto Alegre e uma em Pelotas. Havia a intenção de criar uma quinta subcomissão, em Porto Alegre, para investigar especificamente os funcionários da Reitoria, mas não foi possível encontrar provas de sua instalação. Ao longo das "investigações" da comissão, três docentes foram substituídos por motivos diversos. Portanto, 17 docentes da UFRGS passaram pela comissão, além dos dois "assessores militares" que supervisionavam os trabalhos em Porto Alegre e Pelotas e da participação eventual do reitor José Carlos Fonseca Milano.


IHU On-Line – Afirma-se que, no total, foram 41 os professores cassados. Esse número procede? Qual era o perfil desses professores? O que aconteceu com eles a partir das denúncias, em termos de "resposta" por parte da ditadura?
Jaime Valim Mansan – Esse número corresponde ao total de expurgos que pude contabilizar ao final de minha pesquisa. Corresponde ao somatório dos casos verificados em 1964 e 1969. É possível, portanto, embora improvável, que outros casos ainda não tenham sido descobertos.

É importante diferenciar os expurgos de 1964 dos ocorridos em 1969, tanto pelo modo como foram promovidos quanto pelo perfil dos atingidos. De 1964 para 1969, a cúpula ditatorial adquiriu experiência e transformou-se, em parte devido ao crescente fortalecimento da chamada "linha dura". Transformações semelhantes ocorreram no aparato repressivo, que se complexificou e cresceu bastante.

Devido a isso, se em 1964 haviam sido instauradas comissões nas universidades, em 1969 o MEC possuía a CISMEC (Comissão de Investigação Sumária do MEC), órgão interno ao ministério que cumpria a mesma função das antigas comissões, só que de forma muito mais centralizada.

A CISMEC era alimentada com dados produzidos por órgãos de informações e de segurança, bem como por militares instalados permanentemente nas universidades. Estes compunham as "assessorias de segurança e informações" (ASI).

Na UFRGS, o Cel. Natalício da Cruz Correa respondia por tal função, tendo ocupado o cargo desde 1969, quando a ASI foi criada naquela universidade, até 1979, quando foi oficialmente extinta. Há indícios, contudo, de que o militar tenha permanecido ainda um tempo na função de modo extra-oficial, trabalhando na mesma sala que ocupara por uma década, no mesmo andar do Gabinete do Reitor. Tudo isso não constituiu especificidade da UFRGS, mas foi uma prática adotada pelos governos ditatoriais para controle político-ideológico do meio universitário em todo o país.

No que diz respeito ao processo decisório sobre quais indivíduos deveriam ser expurgados, houve na UFRGS três tipos:
  1. interno, quando a decisão coube exclusivamente a membros da universidade (um caso em 1964 e um em 1969);
  2. externo, quando a definição se deu em instituição externa, independentemente do apoio de setores da universidade na "investigação" (16 casos em 1964 e 19 em 1969);
  3. indireto, quando o próprio docente decidiu afastar-se, em função de perseguições e constrangimentos relacionados ao contexto de arbítrio e medo (um caso em 1964 e três em 1969).
É fundamental destacar ainda que, na UFRGS, não houve um expurgo sequer promovido por corrupção ou improbidade administrativa. Todos foram motivados por questões político-ideológicas, ficando evidente, assim, o caráter autoritário da medida.



 
IHU On-Line – Que outras informações relevantes esses documentos informam sobre a ditadura?
Jaime Valim Mansan – Esses documentos têm uma importância enorme para os estudos históricos, particularmente porque permitem traçar a dinâmica das relações internas à universidade, os conflitos, os diferentes modos de ação de indivíduos e grupos face a um contexto marcado pelo arbítrio, pelo medo, pela progressiva perseguição a tudo que divergia do padrão comportamental imposto pelos governos ditatoriais.

"Na UFRGS, havia professores como Laudelino Medeiros, que eram católicos fervorosos e viam a ditadura como algo válido e justificável"

Assim como houve indivíduos convictos de que o trabalho da CEIS/UFRGS era fundamental para o "bem-estar da nação" – como dizia Castello Branco, o primeiro dos ditadores – também houve diversos tipos de resistência, desde as mais tímidas até as mais apaixonadas. Quando se fala no tempo da ditadura, a primeira lembrança é a da imposição de regras abusivas por parte de um governo ilegítimo. Correto, mas como as pessoas comuns, como nós, se comportaram frente a isso? Quais foram as estratégias de sobrevivência que utilizaram? E mais: como o funcionamento de uma universidade, as relações entre seus membros – docentes, discentes e servidores técnico-administrativos – foram afetadas por aquela conjuntura atípica? São questões como essas que a documentação disponível em Caxias do Sul permite responder.


IHU On-Line – Como se dava a relação entre a Igreja e os esquemas de denúncias? Havia padres ou religiosos professores da UFRGS envolvidos no esquema?
Jaime Valim Mansan – Como se sabe, houve um setor da Igreja Católica, correspondente às instâncias hierárquicas mais elevadas, que apoiou abertamente o golpe de 1964 e, inclusive, os diversos tipos de perseguições promovidas pelos governos ditatoriais. Em sua maioria, viam aquilo como um "mal menor" face ao que entendiam como o "perigo do comunismo". A par disso, um importante setor da igreja formava a chamada esquerda católica, que também foi duramente atingida tanto em 1964 quanto depois.

Na UFRGS, havia professores como Laudelino Medeiros, que eram católicos fervorosos e viam a ditadura como algo válido e justificável. Ao mesmo tempo, lá havia docentes como Ernani Maria Fiori, fundamental referência para a esquerda católica gaúcha e importante membro da Ação Popular. É sintomático da heterogeneidade de posições assumidas pelos católicos o fato de que, em 1964, Ernani Fiori acabaria sendo expurgado por indicação da comissão na qual atuava Laudelino Medeiros.

Sobre esse assunto é interessante ver, para um plano geral, o clássico trabalho de Kenneth Serbin ("Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura"), bem como, para o caso específico da UFRGS, a dissertação de mestrado em Ciência Política de Lorena Madruga Monteiro, intitulada "A estratégia dos católicos na conquista da Sociologia da UFRGS (1940-1970)".


IHU On-Line – Pode haver outros documentos ainda perdidos em acervos pessoais de outros professores? Que perguntas ainda sem respostas eles poderiam ajudar a solucionar?
Jaime Valim Mansan – É provável. No decorrer de minha pesquisa, tive a sorte de contar com a contribuição de algumas pessoas que gentilmente me franquearam acesso a seus acervos particulares. Esse tipo de postura, contudo, é bastante raro. Muitos têm grande receio de que seus documentos sejam extraviados ou danificados. Mas essas pessoas estão no seu direito, já que se trata de documentação particular.

Diverso é o caso de documentos pertencentes ao Estado. O acervo do ex-Ministro da Educação e Cultura Tarso Dutra, localizado pelo Ministério Público em 2004, é um exemplo significativo disso. Pelo que se sabe, essa era uma prática comum até a década de 1980. Muitos políticos de vulto costumavam guardar para si, de forma preventiva, documentos relativos às suas atividades públicas.

"Na Igreja Católica, as instâncias hierárquicas mais elevadas apoiaram abertamente o golpe de 1964. Viam-no como um `mal menor` diante do `perigo do comunismo`"


IHU On-Line – Em 2009, você defendeu, pela PUC-RS, sua dissertação "Os expurgos na UFRGS: Afastamentos sumários de professores no contexto da Ditadura Civil-Militar (1964 e 1969)". Que novas luzes sua pesquisa conseguiu trazer sobre o período de repressão no Rio Grande do Sul? Como esses novos documentos podem ajudar a incrementar sua pesquisa?
Jaime Valim Mansan – As atas da CEIS/UFRGS e outros documentos disponíveis no CEDOC/UCS, juntamente com as entrevistas com os expurgados e outros tantos documentos, foram fundamentais para a realização da análise que apresentei na primeira parte da dissertação, focada nos processos de 1964. Dentre o que entendo que sejam as principais contribuições do estudo que desenvolvi, destaco:
  1. ter evidenciado que (e como) a especificidade dos afastamentos sumários de docentes da UFRGS ocorridos durante a ditadura esteve na interação entre as correlações de forças interna e externa à referida universidade;
  2. ter traçado um perfil político-ideológico dos docentes sumariamente afastados, demonstrando a heterogeneidade do conjunto dos indivíduos e grupos atingidos e a ampliação do espectro ideológico dos expurgados de 1969 em relação aos de 1964;
  3. ter indicado as formas repressivas utilizadas em 1964 e em 1969, seus critérios, métodos e quais instituições foram responsáveis por sua aplicação.
Também foi possível esclarecer questões que, até então, permaneciam duvidosas, como, por exemplo, no caso do expurgo do Prof. Angelo Ricci, que pude demonstrar ter sido causado unicamente por sua atitude quando da ocupação da Faculdade de Filosofia por centenas de estudantes, em junho de 1968. Ricci, que era diretor daquela unidade de ensino, não permitiu que forças do aparato repressivo invadissem a universidade para desmobilizar os estudantes. Isso custou seu afastamento sumário e, segundo contam os que com ele conviveram depois, ele nunca conseguiu se recuperar daquele golpe, falecendo em um acidente automobilístico em 1977.


O texto integral da dissertação está disponível em Domínio Público (www.dominiopublico.gov.br) e no sítio da biblioteca da PUC-RS (www.pucrs.br/biblioteca).
(Reportagem de Moisés Sbardelotto)



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