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4/8/2011
Em um ato na casa presidencial, e após 27 anos de angústias, expectativas e lutas de muitas mulheres feitas com amor, o Estado da Guatemala pediu perdão pelo desaparecimento de três jovens estudantes provocado pela Polícia.
O artigo é de Alejandro Fernández, comunicador popular, e está publicado na revista nicaraguense Envío, n. 352, julho de 2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Na manhã de 15 de maio de 1984, o jovem Carlos Cuevas Molina andava de motocicleta pelo centro histórico da cidade de Guatemala quando foi interceptado por dois carros que trafegavam na via. Testemunhas que puderam anotar as placas dos veículos, viram como bateram nele e como desaparecia atrás de grossas portas de uma viatura da polícia. Nunca mais se soube do seu paradeiro. Sua esposa, María del Rosario Godoy, não duvidou um instante de qual seria seu destino: “Ou me devolvem o Carlos ou me levam também”. Foi assassinada na quinta-feira santa do ano seguinte. A crueldade inaudita de seus algozes chegou ao ponto de torturar o seu filhinho de apenas dois anos, para infringir mais sofrimento a uma das mulheres mais corajosas que a terra guatemalteca deu, reconhecida hoje pela Igreja latino-americana como Mártir da Fraternidade.
O sequestro de Carlos deu início a uma trágica semana; entre o dia 15 e 21 de junho daquele ano, outros seis companheiros da Associação de Estudantes Universitários, da qual ele era secretário-executivo, tiveram sorte similar.
27 anos de torturas
Na Guatemala atual os períodos trágicos não são contados por semanas, mas por décadas. Em 36 anos de conflito armado, 200.000 pessoas perderam a vida, e 45.000 homens e mulheres, entre eles 5.000 crianças, engrossam a lista dos desaparecidos forçados, veladas por um dos mantos de impunidade mais impenetráveis que se forjaram na América Latina, para favorecer os interesses econômicos das oligarquias nacionais e de seus aliados transnacionais.
Após 27 anos, no dia 2 de junho de 2011, nos jardins do Palácio Nacional da Guatemala, o primeiro presidente Álvaro Colom presidia um ato público para protestar por Carlos Cuevas e outros dois dos mártires universitários daquela fatídica semana: Héctor Interiano e Gustavo Castañón. Assim mesmo, e respondendo aos compromissos de um acordo amistoso, pedia perdão público aos seus familiares e a toda a sociedade em nome do Estado da Guatemala.
O perdão de 2 de junho não restitui de jeito nenhum a dor atroz do desaparecimento dos jovens. “O Estado da Guatemala nos torturou durante 27 anos”, disse Ana Lucia Cuevas, irmã de Carlos, que teve que sair do país imediatamente para nunca mais voltar a morar na Guatemala. Mas é um perdão que abre a porta para a esperança de que a memória e os sonhos destes jovens, a quem se arrebatou o bem mais precioso, sejam algum dia reivindicados em sua integridade, com um julgamento justo contra os seus agressores.
“Os desaparecidos começam a aparecer”
Não é a primeira vez que o governo guatemalteco pede perdão pelos crimes cometidos durante o conflito armado. Fê-lo alguns meses atrás diante da família do poeta Otto René Castillo e há um ano diante de mais de mil famílias camponesas a quem ofereceu uma compensação econômica. Fizeram-no também o presidente Berger e o vice-presidente Stein em casos similares. Embora, até agora, tanto perdão não se tenha revelado frutífero quanto à consecução da justiça, não cabe dúvida que renova o ânimo daqueles que estão há anos esperando contra toda esperança.
“Os desaparecidos estão começando a aparecer”, disse Ana Lucia Cuevas, em uma afirmação que ilustra a inquebrantável vontade destas famílias, atravessadas pelo amor aos seus parentes e à terra que os viu nascer. Mesmo quando este perdão apenas toca a outrora inexorável couraça que protegia aqueles que cometeram e ordenaram estes atos desumanos, a coragem de algumas pessoas, em sua maioria mulheres, está abrindo espaço para que a justiça renasça.
Primeiro foi o julgamento pelo assassinato de dom Gerardi, em 2001, que condenou três militares à prisão, sentenciados pela execução extrajudicial do bispo. Um ano depois, em 2002, o caso Mirna Mack semeou outro precedente fundamental, ao condenar a 30 anos de prisão um dos autores intelectuais do assassinato da antropóloga, o coronel Juan Valencia Ososio. Recentemente, os assassinos do sindicalista Fernando García foram condenados a 40 anos de prisão. São sinais que deixam entrever que ainda é possível que a lei seja aplicada na Guatemala.
Luzes em um caminho obscuro
A longa e obscura noite de 27 anos esteve balizada por lampejos de esperança. O mais luminoso fez tremer conhecidos e estranhos há mais de 12 anos. Em 1999, foi publicado o Relatório da Comissão de Esclarecimento Histórico (CEH), que sacudiu os fundamentos da sociedade guatemalteca. O relatório foi fruto do compromisso assumido pelas partes em conflito após a assinatura dos Acordos de Paz, em 1996. Ainda com muitas incógnitas sem revelar – explicitamente se concordou em que o relatório não poderia revelar nomes próprios, mas apenas responsabilidades institucionais – o relatório foi demolidor para o Estado e expressou publicamente o que todos sabiam, mas muito poucos se atreviam a denunciar abertamente: que o Estado foi o responsável direto por 90% dos crimes cometidos durante o prolongado conflito armado que se estendeu entre 1962 e 1996.
Nesse mesmo ano, os nomes próprios começaram a aflorar com a publicação, em Washington, do chamado Diário Militar, expediente da Direção de Inteligência do Exército da Guatemala, que foi publicado em 1999, onde se evidencia a participação de altos cargos militares nos sequestros e desaparecimentos de estudantes.
Seis anos depois, em 2005, devido a uma inspeção casual na sede da Polícia Nacional, foi descoberto, abandonado entre baratas e morcegos, um imenso arquivo que sem dúvida havia sido escondido ali para que a história não conhecesse a terrível responsabilidade do estamento policial durante 36 anos de guerra civil. Obrigada pela evidência, a justiça guatemalteca colocou esta documentação nas mãos da Procuradoria dos Direitos Humanos. Milhões de documentos desfiam as operações da polícia contra os civis. Neles escarafuncharam, com o coração apreensivo, os familiares dos desaparecidos e torturados por aquele regime de terror. Entre eles, as três famílias que no dia 2 de junho receberam das mãos do Colom um perdão longamente aguardado.
“Iam buscando a vida!”
Longos e tortuosos degraus foi preciso superar um a um até chegar na manhã de 2 de junho. No pátio da chamada Praça da Paz, em pleno coração do palácio presidencial, um Presidente eleito democraticamente, mas manietado pelas estruturas de poder que há décadas consolidaram um Estado dentro do Estado, se levantou de sua cadeira para expressar solenemente o perdão às famílias.
Rodeando-o na mesa presidencial estava Ruth Molina de Cuevas, mãe de Carlos Cuevas, Elizabeth Florian, esposa de Héctor Interiano; o pai de Gustavo Castañon; Ruth del Valle, diretora da Comissão Presidencial Coordenadora da Política Executiva em Matéria de Direitos Humanos (COPREDEH) e Emilia García, mãe do desaparecido Fernando García e uma das fundadoras do Grupo de Apoio Mútuo (GAM), criado em 1984 por mulheres que lutaram com dignidade para vencer o terror com que quiseram dobrá-las. Muitas dessas mulheres admiráveis estavam presentes neste dia 2 de junho na casa presidencial para gritar a verdade que ardia dentro do peito há um quarto de século.
“Iam buscando a vida!”, gritou uma antiga companheira dos desaparecidos e cerca de cem convidados e convidadas ao evento repetiram. É imprescindível reafirmar, como uma vacina contra o cinismo estéril daqueles que pretendem desmerecer aquelas lutas clandestinas, que Carlos, Gustavo e Interiano não trabalhavam para semear o caos, como o exército quis fazer crer à opinião pública uma e outra vez. Buscavam a vida e a dignidade de milhares de guatemaltecos.
Naqueles anos sombrios, milhares de mulheres e homens haviam começado a sofrer a doutrina genocida da terra arrasada, hoje bem conhecida graças ao prodigioso trabalho do sacerdote jesuíta Ricardo Falla, doutrina abominável que, sob os governos dos generais Ríos Montt e Lucas García, arrasou mais de 600 aldeias indígenas eliminando delas qualquer rastro humano.
“Há vidas que duram muito”
Ruth Molina de Cuevas, a mãe do Carlos, foi a primeira a tomar a palavra. Com emoção contida, limitou-se a ler dois poemas escritos para o seu filho há mais de duas décadas, naqueles dias em que, em seu exílio na Costa Rica, trabalhava bravamente para ser, como diz um dos seus versos, “o eco da dor de muita gente”. Esta mulher, de fortaleza louvável, que há mais de 30 anos perdeu também, em circunstâncias nunca esclarecidas, seu marido, o ex-reitor da Universidade São Carlos e ativista de Direitos Humanos Rafael Cuevas del Cid, recebeu a notícia do sequestro de seu filho já exilada na Costa Rica, onde ainda mora. Seu compromisso com os “que ficaram” foi incansável e tenaz.
Carlos teve cinco irmãos, a quem o impacto brutal do exílio espalhou por dois continentes. Estiveram presentes no ato de perdão na casa presidencial sua irmã Ana Lucia, que mora na Inglaterra, e sua irmã Rosario, que mora na Costa Rica.
Ambas leram um comunicado, longamente meditado, cheio de vida e de paixão. Em alguns momentos, suas palavras umedeceram o olhar dos presentes: “Há vidas que duram assombrosamente muito, como as de nosso irmão; celebremos a vida daqueles que se deram sem pedir nada em troca”.
“Pode-se pedir perdão nesta Guatemala?”
Depois foi a vez de Elizabeth Florian, viúva de Interiano. Sua alocução foi extensa, mas ninguém sentiu que alguma palavra estivesse sobrando. O momento mais emocionante chegou quando Betty – como todos e todas a conhecem – começou a se perguntar em voz alta sobre o que pensaria seu esposo desaparecido sobre este ato de perdão: “Pode-se pedir perdão quando as coisas pelas quais eles lutaram não mudaram, quando a fome persiste, o desemprego é maior, e as mortes violentas seguem imperando na Guatemala?”
Suas palavras soaram como um prato sobre o piso, mas ajudaram a dotar a cerimônia de seu sentido mais profundo: “Nossa reivindicação é que este ato de perdão se traduza em vontade política para mudar este país”, sentenciou Betty.
“Não estão sozinhos na morte”
Quando Gustavo Castañon foi preso, uma mulher jovem ficou aguardando seu telefonema. Sua prometida naquela época, Isabel Chaxom, tomou o microfone neste dia 2 de junho e sua primeira lembrança foi para o prédio que essa manhã nos acolhia placidamente. “Por estes mesmos corredores que agora vemos, fomos transladados e torturados por pedir justiça para os desaparecidos”.
Eram os tempos do governo do general Mejía Víctores, que, assim como seus antecessores, reprimiu com ódio de qualquer vestígio de dignidade que reclamasse a vida. Mas a dignidade sobreviveu e se expressava esta manhã na voz de Isabel: “Eles não estão sozinhos na morte. Hoje viemos para lhes dizer que seguimos o caminho que eles nos traçaram”.
Se a cerimônia reverberou algo foi o valor moral das vítimas. Diante de uma situação vital aparentemente insuportável, foram capazes de tirar o melhor de si mesmas e escolher o caminho do amor, nunca do rancor. Testemunho disso foi a eloquente carta lida na cerimônia de perdão escrita pelo filho de Interiano, Diego Alejandro, que mora fora do país por razões econômicas: “Minha mãe teve que esconder até a sua dor, para que eu tivesse uma infância normal”.
“O que pensariam os mártires aos quais pedimos perdão?”
Quando o presidente Colom se levantou para fazer formalmente o pedido de perdão, os sentimentos de todos os presentes estavam eletrizados e uma corrente invisível de dignidade longamente tecida tomava conta do espaço.
Imediatamente, quando Colom tomou a palavra, meia dúzia de jovens se levantaram e abriram seus cartazes. Protestavam pelos mártires do Valle de Polochic, na região de Alta Verapaz, onde foram assassinadas três pessoas, num conflito por posse de terra, como quase sempre acontece na Guatemala, envolvendo a população indígena contra um pequeno grupo de pessoas de sobrenomes poderosos.
As mensagens dos cartazes não podiam ser mais diretas: “O que pensariam os mártires aos quais hoje pedimos perdão pelo que acontece em Polochic?”. O público assistiu em silêncio eloquente à analogia. Não era hora para fazer análises, tampouco para aplacar o descontentamento daqueles que demandam do governo maior coerência entre seus discursos e suas práticas.
Como aceitar o perdão quando, pelas mãos dos mesmos esquadrões, os mais pobres continuam morrendo? Na Guatemala, as instituições democráticas são frágeis, mas felizmente, as mulheres não o são. Bastava ouvir como dona Emilia encerrou o ato. Com mais de 70 anos, segue presidindo o Grupo de Apoio Mútuo que ajudou a fundar: “Este perdão é um impulso para pedir que as investigações continuem”.
Dito e feito. Enquanto escrevo este artigo, no dia 10 de junho de 2011, foi preso Héctor Rafael Bol de la Cruz, que fora o diretor da Polícia Nacional entre 1983 e 1985. Com a prisão de um dos supostos responsáveis intelectuais pelo desaparecimento dos estudantes, espera-se que o processo impulsionado por seus familiares para fazer justiça – o que realmente importa para elas –, avance a passos decididos.
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