quarta-feira, 30 de novembro de 2011

TRF livra militares de ação por tortura. Acusado por Dilma, ex-agente comemora decisão

30/11/2011


http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=49967


O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo) decidiu que os militares acusados de torturar presos políticos na Oban (Operação Bandeirante) durante a ditadura não podem mais ser condenados porque seus supostos crimes já prescreveram.

A reportagem é de Bernardo Mello Franco e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 30-11-2011.

A decisão beneficia quatro ex-agentes do regime. Entre eles está o tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, que foi apontado como torturador pela presidente Dilma Rousseff em depoimento à Justiça Militar, em 1970.

A Procuradoria Regional da República recorreu ontem ao TRF contra a decisão. No processo, os réus negaram a participação em maus-tratos.

O Ministério Público Federal pedia que os militares fossem responsabilizados na esfera cível, já que a Lei de Anistia livra os ex-torturadores de qualquer condenação penal.

A ação pedia que eles fossem declarados responsáveis por maus-tratos a 20 presos políticos, incluindo Dilma, e obrigados a devolver a aposentadoria e a restituir os cofres públicos por indenizações a vítimas do regime.

Para a Procuradoria, os militares ainda poderiam ser condenados com base no tratado que criou o Tribunal Penal Internacional, assinado pelo Brasil. O documento considera imprescritíveis os crimes contra os direitos humanos, como a tortura.

Ao julgar o caso, a 6ª Turma do TRF se amparou na decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de manter a validade da Lei de Anistia, em abril do ano passado.

"Não reconhecendo o STF a aplicação do referido tratado sobre os crimes de tortura (...), não existem fundamentos para afirmar que os seus efeitos civis possam ter repercussão", escreveu o relator do processo, o juiz federal convocado Santoro Facchini.

De acordo com o magistrado, a ação não apontava a tortura como "fato ocasional ou delimitado", e sim como "prática sistematizada e institucionalizada" da ditadura.

O voto foi aprovado por unanimidade na sessão de 27 de outubro, e a decisão foi publicada no último dia 10.

Segundo o Código Civil, os crimes descritos em ações civis públicas como esta prescrevem em até dez anos.

O Exército instalou a Oban em julho de 1969 na rua Tutoia, no Paraíso (zona sul).

Quando os nomes dos réus apareceram na lista de torturadores divulgada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em 1975, o órgão já não operava mais.

MODELO

No livro "A Ditadura Escancarada", o jornalista Elio Gaspari descreve a Oban como "instituição modelar de repressão" do regime.

Por isso, esta ação era considerada uma das mais importantes do grupo de trabalho Memória e Verdade do Ministério Público Federal, que investiga crimes da ditadura.

Atuaram na Oban alguns dos principais acusados de torturas no período, como os majores Waldyr Coelho e Bernoni Albernaz e o delegado Sérgio Paranhos Fleury.

A Procuradoria processou quatro remanescentes do órgão: os militares reformados Homero César MachadoInnocêncio Beltrão Maurício Lopes Lima e o ex-capitão da PM João Thomaz.

A ação se baseou em documentos dos órgãos de espionagem e no livro "Brasil Nunca Mais", organizado pela Arquidiocese de São Paulo.

A obra cita o depoimento em que Dilma aponta Lima como torturador. Em 2009, ela disse à Folha que o militar não a torturou, mas "entrava na sala e via tortura".

Acusado por Dilma, ex-agente comemora decisão

"Está começando a se fazer justiça." Foi assim que o tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, 76, comemorou ontem a decisão do TRF que o livra de responder a processo por tortura.

Ele foi apontado como responsável por maus-tratos a presos políticos em depoimento da presidente Dilma Rousseff à Justiça Militar em 1970, ano em que ela foi presa por militar contra o regime.

"A acusação é inverídica. Mas jornalista só entende a palavra do terrorista", disse Lima por telefone, de seu apartamento próximo à praia no Guarujá (litoral de SP).

"O terrorista falou, é verdade. A direita falou, é mentira. Quem faz isso é o Partido Comunista", afirmou.

Mantendo a pregação dos tempos da Guerra Fria, o militar negou as acusações de torturar na Oban (Operação Bandeirante) e sustentou que Dilma e os demais presos que o responsabilizaram por maus-tratos teriam mentido.

"Eles combinavam os depoimentos na cadeia. A Dilma exerceu o direito de não criar provas contra si para se livrar do processo", disse.

"Esse pessoal estava contra o Brasil. Quando você fala em comunista, não pode admitir que seja brasileiro."

O tenente-coronel criticou a criação da Comissão da Verdade, que foi sancionada por Dilma no dia 18.

"Ela vai colocar sete comunistas ilibados lá?", perguntou. "Vai ser uma lenga-lenga. Revanchismo total."

Apesar dos protestos, ele disse que Dilma tem mantido posição equilibrada no debate sobre os crimes da ditadura. Mas aproveitou para criticar o ex-presidente Lula, cujo governo idealizou a Comissão da Verdade.

"Ela vem se portando de maneira digna, muito melhor do que o Lula. Não está deixando a coisa sair pelos extremos", afirmou.

O militar também atacou a Procuradoria. "O Ministério Público, como é ignorante em assuntos de verdade, foi procurar as declarações [dos ex-presos] na Justiça Militar", disse. "Qual é a ideia de abrir uma ação 40 anos depois?"

Em dezembro passado, Lima relatou à Folha ter integrado a ação que levou à morte dos guerrilheiros Antônio dos Três Reis de Oliveira Alceri Maria Gomes da Silva, metralhados em maio de 1970 no Tatuapé (zona leste de SP).

Foi a primeira vez que um militar admitiu participação no episódio. Os guerrilheiros são considerados desaparecidos até hoje.

Ontem, o tenente-coronel reformado disse não ter procurado os ex-colegas da Oban após saber da decisão do TRF. "Por que eu ia procurá-los agora? Só se fizerem uma festa", disse, aos risos.

domingo, 27 de novembro de 2011

Militares ainda temem Comissão da Verdade

27/11/2011


http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=49845

Não deram certo as longas negociações e concessões do governo para acalmar os militares em relação à Comissão da Verdade. Desde que foi aprovada pela presidente Dilma Rousseff, nove dias atrás, observa-se uma crescente inquietação nesse meio quanto aos rumos da comissão. Teme-se, sobretudo, a possibilidade de caminhar para um processo de judicialização.

A reportagem é de Roldão Arruda e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 27-11-2011.

Com os militares da ativa legalmente impedidos de se manifestar sobre questões políticas, a reação ocorre por meio de oficiais da reserva. Fala-se até na formação de uma frente para impedir ações da comissão.

Na semana passada, o capitão da reserva José Geraldo Pimentel divulgou em seu site uma carta na qual afirma que o primeiro passo da comissão será criar bases legais para um processo de mudança naLei da Anistia. Em seguida, continua, os agentes das Forças Armadas serão levados a tribunais.

"Condenar os militares e agentes do Estado que lutaram contra os ex-terroristas e ex-guerrilheiros é o grande objetivo", diz. Para evitar que isso ocorra, o autor recomenda aos militares que ainda mantêm documentos sobre aquele período que não os apresentem.

"Se vocês tiverem em seu poder registros dos acontecimentos da luta travada contra os comunistas, desfaçam-se dos documentos, ou os guardem em lugar seguro", assinala. "Só a posteriori, quando o rancor da vingança desaparecer, é que poderão torná-los públicos."

Manifestações semelhantes partiram de vários outros pontos na internet. O Clube Militar do Rio criou um link em seu site para abrigar manifestações sobre a comissão. Um dos artigos, assinado pelo general da reserva Maynard Marques de Santa Rosa, qualificou-a de "estratagema de um grupo de vingadores obstinados, dirigida aos que lhes frustraram o projeto de aqui implantar a tirania contraditória".

Críticas

Entre familiares de mortos e desaparecidos no período da ditadura, assim como no meio de partidos à esquerda do espectro político, o movimento ocorre é contrário: critica-se o governo pelas concessões.

Segundo o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), esses militares da reserva ainda acreditam que têm força para criar uma crise institucional e política no País tentam intimidar o governo. "Mas isso não existe. Eles não têm projeto para o País nem representam a nova geração de oficiais, que não devem carregar a canga daquele passado", diz o deputado. "O melhor para a nova geração seria apoiar a apuração dos fatos."

Nesse cenário, segundo o deputado, o pior papel é o do governo, que cede às pressões. "Foi vergonhosa a decisão de impedir que um representantes dos familiares falasse na cerimônia de instalação da comissão", lembra.

Nos dois lados do debate as atenções estão voltadas agora a escolha das sete personalidades públicas que farão parte da comissão. As manifestações dos militares destinam-se em grande parte a influir na decisão da presidente Dilma.

'Só um dos lados envolvidos será julgado'

Em entrevista, o general da reserva Clóvis Bandeira, vice-presidente do Clube Militar do Rio, disse que a maior preocupação observada entre os sócios daquela instituição é quanto à parcialidade nas ações da comissão. Esse risco será agravado, na avaliação dele, pela ausência de militares entre seus integrantes.

Eis a entrevista.

Como o sr. vê essa inquietação entre os militares em relação à comissão?
Em primeiro lugar quero deixar claro que não falo em nomes dos militares. Isso cabe aos comandantes das Forças. O que eu tenho observado entre os sócios do clube, da reserva e da ativa, é que a inquietação se deve ao fato de ser uma comissão unilateral, o que torna fácil a ocorrência de injustiças.

Por que unilateral?
Em primeiro lugar porque a gente não tem assento na comissão. Em segundo, porque só um dos lados envolvidos naquela guerra será julgado. Esse é o desacerto que nossos sócios apontam. Trata-se de uma comissão com feição quase jurídica, que só vai ouvir um lado do problema. Como não se trata de gente neutra, já está definido quem será o mocinho e o bandido da história.

Por que acha que não será gente neutra?
Pelos balões de ensaio que têm sido lançados, não será uma comissão isenta. Mas é claro que temos que esperar pela nomeação da pessoas.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Tolerância brasileira à tortura rasga Declaração Universal dos Direitos Humanos

Posted: 22 Nov 2011 09:48 AM PST
Transmitamos a nossos filhos e a nossos netos a rejeição veemente ao ato de torturar
A criação da Comissão da Verdade repõe em debate a questão da tortura contra presos politicos no regime ditatorial. Ao sancionar a lei que criou a Comissão da Verdade, disse a Presidente Dilma Rousseff: "Hoje o Brasil inteiro se encontra, enfim, consigo mesmo, sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silêncio".


Serve de introito a este artigo uma decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em vinte e nove de abril de 2010.


Pretendo contribuir, através deste escrito, para uma discussão ética, que não se prende no tempo, não se localiza no calendário, porque é perene.


No infeliz nove de abril de 2010, o Supremo, por maioria, entendeu terem sido abrigadas pela lei de anistia todas aquelas pessoas que, durante o regime de exceção instaurado em 1964, torturaram opositores do regime. 
Leia também:
Cingiu-se o Supremo a uma interpretacão textual da lei de anistia. Fundamentou seu entendimento no princípio da segurança jurídica que estaria ameaçado se, por via da interpretação judicial, fosse dada dimensão restrita ao leque dos anistiados, deixando ao desamparo da anistia os torturadores.


Parece-me que, neste caso, a razão esteve com a minoria, ou seja com os dois ministros derrotados no seu entendimento: Ayres Britto e Ricardo Lewandovski. Entenderam esses magistrados que a tortura é crime comum, não é crime politico, daí que não foi abrangido pela anistia.


A decisão do Supremo, que tivesse posto a tortura fora da anistia, não levaria os torturadores do antigo regime, de imediato, para a prisão. Eles estariam ao desabrigo da anistia, mas teriam de ser submetidos a processo, com direito de defesa. A efetiva participação nos atos de tortura, relativamente a cada um dos acusados, teria de ficar configurada.


O que a consciência ético-jurídica nacional esperava do Supremo Tribunal é que decidisse: “Tortura não é crime politico, os torturadores não foram anistiados. Prossigam-se os processos para julgamento de todos aqueles acusados de terem praticado a tortura ou de terem sido coniventes com essa prática ignóbil.”


O que fica, do lamentável aresto do mais alto tribunal do país, é a afirmação de que a tortura, amplamente praticada numa fase de nossa História Contemporânea, teve a ressalva de crime politico, razão pela qual os praticantes da tortura foram anistiados.


Na verdade, e isto deve ser proclamado com todas as forças, em homenagem ao Brasil de amanhã – a tortura não é crime politico. Nenhuma razão política, nenhum credo, nenhum motivo que se alegue, nenhuma causa de qualquer natureza, nenhuma excludente, nada, absolutamente nada justificou, no passado, ou autorizará, no futuro, a prática da tortura. A tortura é um crime contra a humanidade, é sempre um escárneo à dignidade humana. Fere o torturado e degrada o torturador.


A Declaração Universal dos Direitos Humanos repudia, de forma absoluta, a tortura: Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Observe-se o uso do pronome ”ninguém“, no texto. O mesmo pronome de significado total é utilizado nas diversas linguas em que a Declaração Universal é proclamada. Confira-se, por mera curiosidade, o repúdio à tortura, em seis idiomas:


NO ONE shall be subjected to torture or to cruel, inhuman or degrading treatment or punishment. (Inglês).

NADIE será sometido a torturas ni a penas o tratos crueles, inhumanos o degradantes. (Espanhol).

NUL ne peut être soumis à la torture ni à des traitements ou peines cruels, inhumains ou dégradants. (Francês).

NESSUN individuo potrà essere sottoposto a tortura o a trattamento o punizioni crudeli, inumani o degradanti. (Italiano).
NIEMAND darf der Folter oder grausamer Behandlung oder Strafe, unmenschlicher oder erniedrigender Behandlung unterworfen werden. (Alemão).

NINGÚ podrà ser sotmès a tortures ni a tractes o penes cruels, inhumans o degradants. (Catalão).
Leia mais:


A tolerância para com a tortura jogaria por terra toda a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Transmitamos a nossos filhos e a nossos netos a rejeição veemente ao ato de torturar.
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João Batista Herkenhoff, Direto da Redação

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Vergonha: Brasil vira motivo de chacota por ser conivente com torturadores

http://www.pragmatismopolitico.com.br/2011/11/vergonha-brasil-vira-motivo-de-chacota.html



terça-feira, 1 de novembro de 2011


Autor: Gabriel Bonis

O ácido sarcasmo da mídia argentina em relação ao Brasil, geralmente direcionado a rixas futebolistas, agora é de fato plausível

Enquanto Argentina e vizinhos punem os responsáveis 
pelos crimes da ditadura, Brasil optar por esquecer torturadores


A ironia preenche as entrelinhas de uma das manchetes do site do jornal argentino Página 12 na quinta-feira 27. O curto texto sobre o Brasil manda uma mensagem direta: “estamos à frente”.

O parágrafo diz: “No mesmo dia em que a Argentina condenava os repressores, a presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, conseguiu aprovar no Senado a criação de uma Comissão da Verdade para investigar as violações de Direitos Humanos ocorridas na última ditadura militar (1964-1985). O grupo especial poderá determinar responsabilidades, mas não terá como levar os possíveis acusados perante à Justiça, pois uma Anistia ratificada em 2010 pelo Supremo Tribunal ampara os torturadores.”

O ácido sarcasmo da mídia argentina em relação ao Brasil, geralmente direcionado a rixas futebolistas, é de fato plausível. O país conseguiu aquilo que nossos ativistas de Direitos Humanos, ex-perseguidos políticos e parte da sociedade brasileira almejam: o julgamento de agentes do Estado responsáveis por crimes contra a humanidade no período ditatorial.

Eleito presidente pelo voto direto em 1983, após a queda do regime autoritário na Argentina (1976- 1983), Raul Alfonsín suspendeu a autoanistia dos militares. Seu governo julgou a Junta Militar e condenou a cúpula da ditadura à prisão, mas não resistiu a pressões políticas e sancionou duas novas leis de anistia.

No entanto, oito anos após derrubar essas mesmas leis, a Justiça do país condenou à prisão perpétua, na quarta-feira 26, 13 ex-militares e outros três agentes a mais de 18 anos de detenção. Eles foram julgados por crimes cometidos pela Escola de Mecânica da Armada (Esma) durante a ditadura contra 86 pessoas.

O veredito, transmitido ao vivo pela televisão e em um telão próximo ao tribunal em Buenos Aires, mandou para a prisão o ex-capitão Alfredo Astiz, de 59 anos, o “anjo loiro da morte”, e o ex-capitão de corveta Jorge “Tigre” Acosta, inventor do atroz “voo da morte”, no qual prisioneiros políticos eram atirados sobre o Rio da Prata ou no oceano ainda vivos.

Enquanto isso, as Forças Armadas brasileiras ainda relutam em reconhecer sequer a existência de crimes contra a humanidade durante a ditadura e manifestam-se de forma arredia contra iniciativas capazes de punir agentes do Estado responsáveis por tais violações. Com isso, a imagem da instituição e do Brasil seguem arranhadas junto aos cidadãos e à comunidade internacional, pois países vizinhos agem para esclarecer os crimes do período em seus territórios.

O atraso brasileiro gerou críticas da organização de Direitos Humanos Anistia Internacional em um relatório divulgado em maio deste ano. Além disso, o Brasil foi condenado em 2010 pela Organização dos Estados Americanos (OEA) por não investigar os crimes cometidos pelo regime militar na repressão à Guerrilha do Araguaia na década de 1970.

A negativa do País em condenar criminalmente agentes do Estado envolvidos em violações dos Direitos Humanos no período integra uma série de particularidades do Brasil sobre o assunto, aponta a cientista política e pesquisadora da Unicamp, Glenda Mezarobba, autora de Acerto de Contas com o Futuro – A Anistia e suas Consequências: Um Estudo do Caso Brasileiro (Humanitas, 272 págs., R$ 28,00). “A Justiça reconhece o crime e a sua responsabilidade na esfera civil. Oferece reparações, mas não identifica o agente das ações. Isso é peculiar.”

Segundo a especialista, doutora pela Universidade de São Paulo com uma tese abordando as posições de Brasil, Argentina e Chile sobre crimes de militares na ditadura destes países, a configuração da Justiça brasileira também é responsável pelo atraso nacional neste quesito. “Na Argentina e Chile, as vítimas podem entrar na Justiça para responsabilizar os agentes do Estado envolvidos, mas no Brasil precisamos da abertura do caso pelo Ministério Público”, destaca. “Na época da ditadura, o MP estava alinhado aos militares. Depois dela, não se movimentou a respeito.”

A legislação brasileira apresenta ainda mais empecilhos para solucionar esses crimes. “Somos pouco permeáveis à jurisprudência, tratados e acordos internacionais, que, de modo geral, possibilitam alguma responsabilização por crimes contra a humanidade, por exemplo.”

Além disso, a cientista política aponta que, enquanto a Argentina rechaçou suas leis de anistia, o Brasil fez um movimento para conseguir esse recurso na legislação, o que também dificulta o seu questionamento. “É obvio que o teor da lei brasileira tem o tom desejado pelos militares, mas a tramitação no Congresso, o debate e as propostas de emendas, embora não aceitas, proporcionam alguma legitimidade.”

Esse engajamento popular foi inclusive utilizado como justificativa para a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em considerar a lei constitucional em 2010. Na época, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionou a validade da anistia para agentes estatais que praticaram tortura, pedindo que o artigo 1º da Lei 6683 não incluísse agentes públicos autores de crimes como homicídio e desaparecimento contra opositores do regime.

A pesquisadora da Unicamp, porém, defende que a decisão do STF não impossibilita o julgamento de torturadores. Segundo Mezarobba, o Judiciário ainda interpreta a lei com a visão desejada pelos militares e isso impede que a mesma seja testada pelo Ministério Público. “Apenas recentemente estão surgindo algumas iniciativas isoladas no Rio Grande do Sul e em São Paulo para tentar definir os responsáveis por alguns crimes durante a ditadura.”

Wálter Maierovitch, jurista e colunista de CartaCapital, discorda da pesquisadora e explica que essa discussão se encerrou com o posicionamento do STF. “Está aí o grande problema da Comissão da Verdade, que vai realizar uma apuração e não poderá fazer mais nada.” No entanto, o ex-desembargador aponta que a Corte Interamericana de Direitos Humanos considera a lei brasileira de anistia ilegal por ser um autodecreto militar.

Em 2010, o STF também alegou não poder alterar e reescrever a Lei da Anistia por esta ser uma função do Legislativo. Por isso, os deputados Luiza Erundina (PSB-SP) e Chico Alencar (PSOL-RJ) apresentaram propostas de revisão da lei no Congresso. Contudo, uma decisão semelhante à ocorrida no Parlamento uruguaio, que derrubou na última semana a prescrição de crimes cometidos durante a última ditadura militar (1973-1985), parece distante no Brasil. As propostas dos parlamentares foram rejeitadas no final de setembro pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

Os projetos ainda estão em tramitação e vão passar pela Comissão de Constituição e Justiça antes de ir a plenário. Contudo, o revés ocorrido poucos dias após a aprovação da Comissão da Verdade na Casa dificulta a transformação em lei.

Por outro lado, a Comissão, que aguarda a sanção de Dilma Rousseff para entrar em vigor, é a aposta do governo no esclarecimento de fatos durante o período ditatorial. No entanto, não há a possibilidade de punir agentes do Estado envolvidos em violações dos Direitos Humanos.

Mesmo assim, houve atrito com os militares que pressionaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para alterar o texto original da proposta em 2010. A corporação não ficou satisfeita com o termo “apurar violações de direitos humanos praticadas no contexto da repressão política”. Após pressão, houve uma alteração para “violações praticadas no contexto de conflitos políticos”.

Desta forma, segundo os integrantes da caserna, a comissão investigaria também militantes de grupos armados, por exemplo. Este, diga-se, não foi o único desalinhamento do governo com os militares. Em 2009, o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os três comandantes das Forças Armadas ameaçaram deixar os seus cargos devido à possibilidade da revisão da Lei da Anistia.

O comportamento dos militares e de alas mais conservadoras da sociedade brasileira reflete uma máxima irreal de que não é possível punir apenas agentes do Estado por crimes durante o regime autoritário, pois grupos de oposição e civis também praticaram atos de resistência violentos.

Mezarobba é, porém, enfática ao questionar os defensores deste argumento. Para a cientista política, não há como desconsiderar que inúmeros prisioneiros políticos e opositores de grupos armados cumpriram penas por seus atos. “Milhares de documentos nos arquivos da Unicamp mostram processos que tramitaram no Supremo Tribunal Militar. Essas pessoas foram processadas, condenadas e cumpriram pena com base em uma lei completamente arbitrária”, diz. E aponta: “Os militares envolvidos na repressão jamais foram condenados criminalmente.”

A pesquisadora também destaca outros fatores que acentuam a diferença nas políticas adotadas por Brasil e Argentina sobre o tema. “No Brasil, os exilados retornaram com a preocupação de fazer política, criar partidos e disputas eleitorais. Abandonaram a luta pela solução dos crimes da ditadura.”

Além disso, os argentinos possuíam um movimento de Direitos Humanos bem estruturado antes do regime militar, ao contrário do Brasil, explica. Esses grupos ganharam força no País apenas na luta pela anistia, que também envolvia a redemocratização, o fim das torturas e a condenação de responsáveis por estes crimes. “No entanto, por algum motivo peculiar a palavra de ordem vira anistia, que significa esquecer, perdoar. Enquanto isso, Argentina e Chile utilizam como bandeira a justiça.”

Apesar de adotar uma política de “não confrontar o passado”, o Brasil é pego em mais uma de suas “particularidades” ao ser capaz de reconhecer participantes de regimes autoritários de países vizinhos. Prova disto são as extradições de militares supostamente envolvidos em violações de Direitos Humanos na América do Sul.

Em 2010, o País extraditou para a Argentina o militar Manuel Juan Cordero Piacentini, um uruguaio acusado de perseguir opositores da ditadura no continente nos anos 70. Além dele, o militar argentino Norberto Raúl Tozzo foi enviado de volta a sua nação na última semana, onde deve responder pela participação no fuzilamento de 22 presos políticos em 1976.

Uma prática de extermínio comum na Argentina, país marcado pela mais violenta ditadura da América do Sul. De acordo com estimativas de ONGs argentinas e internacionais, 30 mil civis foram mortos durante o período militar, cinco mil deles pelas mãos da Esma.

Enquanto isso, uma aula de preparação do Ministério da Educação aponta em 384 os desaparecidos políticos ou mortos pela ação de agentes do Estado entre 1964 e 1985 no Brasil. Contudo, segundo ONGs e levantamentos de associações de parentes de vítimas da ditadura, o número pode ser maior. “Temos mais esquecimento que a Argentina nesta luta”, diz Mezarobba.

Para a pesquisadora, esse é um dos “méritos” do regime militar brasileiro e de João Figueiredo. Ao enviar ao Congresso o projeto da Lei da Anistia, quiseram a pacificação das famílias e o fim das lembranças, mas o principal objetivo era, claro, blindar os integrantes da caserna de punições. “Essa jogada conseguiu capturar corações e mentes e até hoje faz o mesmo seguindo a lógica da ditadura.” Cabe aos brasileiros livrar-se dela.
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